parece-me inacreditável – miraculoso, até – que estes delicados boiões, copos e jarrinhos tenham sobrevivido a quase 20 séculos de guerras, viagens e catástrofes naturais – já para não falar do normal uso doméstico, que ao fim de algum tempo costuma fazer baixas.
ao longo dos últimos quatro anos, se há coisa que a paternidade me tem ensinado é que quando uma criança pega nalguma coisa, geralmente, é para a estragar. por isso, quase tão espantoso como os vidros romanos do museu gulbenkian, parece-me o facto de alguns dos brinquedos da minha infância ainda existirem. significa que sobreviveram a uma das mais implacáveis máquinas de destruição à face da terra: as mãos de uma criança.
à primeira vista, aquelas mãozinhas amorosas e ligeiramente sapudas parecem incapazes de fazer mal a uma mosca. pura ilusão: as crianças têm um dom inato para descobrir os pontos fracos de um objecto. como um arrombador de cofres profissional – que consegue, em poucos minutos, violar um sistema de alta segurança –, eles conseguem com precisão quase científica abrir uma brecha no objecto que acabará por resultar em danos irreversíveis.
dado que os miúdos de hoje recebem montanhas de brinquedos – o que faz deles, desde muito cedo, consumidores vorazes –, tenho em casa caixas e caixas repletas de bonecos estropiados, jogos que não funcionam, puzzles incompletos, carrinhos a que as rodas foram barbaramente arrancadas, aparelhos electrónicos que emitem um ruído semelhante ao de um rádio dessintonizado. são coisas que temos algum pejo em deitar fora, seja por acharmos que ainda poderemos consertá-las, seja porque queremos conservar os brinquedos (ou o que resta deles)como recordações da infância dos nossos filhos.
entre outros inconvenientes, essa profusão de despojos obriga-me, sempre que vou receber visitas, a fazer uma ronda pela casa. se encontro algum desses fragmentos à vista, trato de ocultar a ‘prova do crime’ o melhor que posso. não gostaria de ter de explicar a alguém que o presente que ofereceu no natal ou no aniversário de algum dos meus filhos praticamente saiu da embalagem já partido…
que triste destino o de um brinquedo moderno! fabricado algures na china por um empregado mal pago, percorre milhares de quilómetros dentro de um contentor apenas para acabar irremediavelmente desfeito, pouco tempo depois, às mãos de um petiz no outro lado do mundo. l
jose.c.saraiva@sol.pt
