Um canto para as sereias

Não me chocou que o Prémio Nobel da Literatura tivesse sido atribuído a Alice Munro: é uma boa escritora, e sempre é mais uma pedrinha no árduo caminho da igualdade entre os sexos, já que, dos 110 premiados, só 13 são mulheres. Mas não posso responder à pergunta que me fizeram na TVI («Parece-lhe justo?»)…

em primeiro lugar, um prémio que abrange todos os países e todos os géneros literários nunca pode ser justo. eu sei lá que talentos existem em línguas para mim desconhecidas, e que nunca foram traduzidos.

o inglês é o esperanto contemporâneo: quem não chega a ele não chega a lado nenhum.

e é difícil chegar-lhe: na intensa produção editorial dos estados unidos da américa, as traduções de outras línguas representam menos de 3%. nessa triste percentagem, por sua vez, encontra-se já josé luís peixoto, mas não se encontra nenhuma obra de agustina bessa-luís – só para falar de uma escritora que mereceria o nobel de caras, e desde há longos anos.

o próprio josé saramago o disse – aliás, saramago teve a nobreza de considerar o seu nobel como uma distinção feita à literatura portuguesa, e de aproveitar a ocasião, nessa feira de frankfurt de há 15 anos, para chamar a atenção para vários outros escritores do seu país.

alice munro não desmerece – mas, perdoem-me a franqueza, não é melhor do que lídia jorge, luísa costa gomes ou teolinda gersão, antes pelo contrário.

e o conto é, sem dúvida, uma delicada forma de arte, mas o trabalho do contista não se compara à exigência arquitectónica implícita no trabalho de um bom romancista.

todos os romancistas são também contistas, mas a inversa não é verdadeira.

criem um nobel para o conto, mas não venham dizer-nos que escrever muito bem pequenas histórias de vidas banais é a mesma coisa que escrever a ronda da noite ou anna karenina.

pois é: tolstoi também não recebeu o nobel. na época, a academia disse que lhe faltava ‘idealismo’, seja lá isso o que for – e deu o nobel a um escritor cujo nome não me ocorre e que não vou procurar, porque não interessa nada.

clarice lispector, marguerite duras, marguerite yourcenar, sophia de mello breyner e virginia woolf nunca o receberam. fora as muitas outras que nunca chegámos a ler, porque escreviam em húngaro, checo ou árabe, e nunca sequer chegaram a ser traduzidas, ou mesmo publicadas.

thomas colchie, um dos poucos agentes literários americanos que trabalham com autores de língua portuguesa, dizia-me há tempos que, por uma questão de militância, entre um autor e uma autora de qualidade, escolhe a mulher – para tentar diminuir a escandalosa discriminação do mercado, que prefere sempre homens.

os homens, dizia-me ele, ganham mais prémios no seu país de origem, e por isso são mais traduzidos do que as mulheres – porque na literatura os prémios, como as boas críticas, são essenciais para conseguir interessar editores estrangeiros.

o famoso prémio portugal telecom, por exemplo, que comemora agora dez anos, não premiou até hoje uma única mulher. será porque nenhuma escritora de língua portuguesa chega aos calcanhares dos seus colegas do sexo masculino?

quando o nobel é entregue a uma mulher (porque, enfim, na suécia estas coisas caem mal), escolhe-se uma que não faça muita sombra aos génios que por aí andam.

um final feliz para a sereiazinha, como munro queria escrever quando era menina.