neste regresso a portugal traz o espectáculo uma travessia, que assinala os seus 50 anos de carreira. mas há uma curiosidade sobre o concerto de amanhã, em lisboa: faz 71 anos…
é verdade. é um presente muito grande, especialmente porque vou estar em palco com dois dos artistas que mais gosto no mundo: a carminho e o antónio zambujo. conheci-os no encerramento das festas de lisboa no ano passado e, depois, em janeiro, fiz o ano brasil – portugal com a carminho.
a empatia com eles foi imediata?
sim, tive a chance de criar uma relação próxima. o zambujo porque ele é quase um brasileiro e a carminho é uma das maiores cantoras do mundo. tão jovem e tão talentosa!
o que mais admira nela?
a carminho tem uma classe e sofisticação impressionante. é muito séria e tem uma relação com a profissão muito diferente de muitas cantoras novas. hoje em dia mal começam a ter fama mudam de postura. com a carminho não tem nada disso. quando a conheci, disse para ela que a gente nunca mais se ia separar. e acabou acontecendo. depois desse show em lisboa, a gente já cantou em fortaleza e no carnaval do recife, um dos mais lotados do brasil. agora imaginem uma cantora de fado abrindo o carnaval do recife. há dez anos seria impossível porque, durante muitos anos, o brasil tratou com distância a música portuguesa. mas a carminho e o zambujo estão fazendo o maior sucesso aqui e com muito mérito.
celebra habitualmente o seu aniversário cantando?
normalmente nunca aceito. gosto de ficar em casa, só com os meus amigos e família. mas quando me falaram deste convite para portugal, nem me apercebi que era o meu aniversário. quando dei conta fiquei mais feliz ainda.
além do concerto, como vai celebrar?
na tarde do show costumo ficar no hotel, fazendo revisão de repertório, ensaiando um pouquinho no quarto. mas parece que estão preparando uma surpresa para mim lá no coliseu…
esta digressão também já originou o lançamento de um álbum e de um dvd ao vivo. como é resumir 50 anos de carreira num disco?
foi muito difícil porque são mais de 400 músicas gravadas. escolher 23 é quase uma missão impossível, mas esta tournée está na estrada há um ano e a gente testou muita coisa antes de gravar. no entanto, nos concertos de lisboa e porto, não vamos fazer só as músicas do disco. vamos inventar alguns números especiais para dividir com carminho e zambujo. e com certeza também vou cantar fado.
gosta de cantar fado?
muito. a música portuguesa foi uma das coisas que mais me influenciou na formação como músico. ouvia muito quando era pequeno e é assim até aos dias de hoje. fui completamente apaixonado por amália rodrigues, mas infelizmente não tive a oportunidade de a conhecer. uma das coisas que mais tristeza me dá é não ter sido amigo da amália.
de resto conseguiu ser amigo e gravar com todos que admira?
aí sim… um outro grande amigo português que tenho e que sempre encontro é o sérgio godinho. é um compositor fantástico, um cara super legal e orgulho-me muito de ser amigo dele e de a gente ter gravado várias vezes. a nível internacional também trabalhei com muita gente que admiro. o wayne shorter, peter gabriel, jason mraz, pat metheny, paul simon, mais recentemente os duran duran. a última grande estrela a pedir música minha foi a esperanza spalding, com quem gravei. e a bjork também.
é um homem realizado?
com certeza, mas ainda quero mais uns 30 anos de carreira… [risos]
tem energia para isso?
se ficar em casa sem fazer show, não aguento mais do que uma semana.
na canção ‘clube da esquina’ canta “os sonhos não envelhecem”. a vida comprovou-lhe isso mesmo?
essa música entrou no disco clube da esquina só instrumental. foi feita com lô borges e, durante um tempo, não queria que colocassem letra. uns anos depois o mike borges colocou uma letra nela e ficou tão bonita que não tive outra opção a não ser gravar. é uma música que representa muito na minha carreira e todo o mundo lembra essa frase.
que sonhos ainda não concretizou?
os mais difíceis são as coisas relacionadas com o brasil. é verdade que o crescimento económico no brasil hoje está muito desenvolvido, mas a gente ainda tem que avançar em muitos pontos. a questão dos índios, da educação, da distribuição de renda, da própria exploração do trabalho adulto e infantil… gostaria de ver estes pontos resolvidos ou, pelo menos, amenizados. a questão indígena é muito séria. a gente tem o maior índice de morte indígena no mundo! claro que o brasil tem a maior comunidade do planeta, mas por isso tinha que ter um cuidado maior. mas acontece o contrário. os índios brasileiros estão sendo dizimados. isso é muito triste.
já teve oportunidade de falar com o governo sobre isso?
muitas vezes. em 1991 escrevi uma carta directamente para o presidente [fernando collor], onde cobrava uma posição. também fiz uma viagem à amazónia que durou 40 dias e que resultou num disco que se chama txai [1990]. grande parte da renda desse disco foi destinado para a aliança dos povos da floresta e ainda hoje contribuo. mais recentemente, em 2010, fui até ao estado de matogrosso do sul, o estado com maior taxa de morte indígena no mundo. o governo deslocou os índios e as terras foram destinadas a fazendeiros. eu fiz um show lá para chamar a atenção para esse assunto, mas a situação só tem piorado. o governo não está sensível a esse assunto, o que é uma vergonha. o único estado do brasil que cuida dos índios é o do amapá. estive lá no mês passado e deu para perceber que o amapá tem, se não me engano, 60% das suas terras demarcadas para índios. todos os estados deveriam seguir este exemplo, mas é o contrário. é lamentável.
essa consciência social sempre esteve muito presente na sua música…
a intenção é um pouco essa. se a gente não tomar partido das coisas que vê, não adianta fazer show, cantar…
no ano passado ganhou o quinto grammy da sua carreira, o lifetime achievement award. não se importa que olhem para si como ‘um veterano’?
não, as recompensas deixam-me muito feliz. quando ganhei esse prémio, não sabia que a cerimónia era muito diferente da entrega dos grammy normais. esta é feita numa sala separada e é muito mais emocional. na minha cerimónia estava lá a rita moreno, uma actriz [porto-riquenha] de quem sou muito fã, e jamais esperava que ela me conhecesse. fui morrendo de vergonha falar com ela e quando cheguei ela exclamou: ‘milton!’. foi a maior emoção da minha vida. não quero que isso passe nunca. quero cantar por muitos anos. queria mais uns 30, mas acho que uns 20 dá para aguentar.