quase todos os domingos, na companhia de um amigo enfermeiro, fazia questão de ir passear até ao jardim da estrela, por muitas dificuldades que essa deslocação lhe causasse. nunca se rendeu, dizem os amigos. “na própria terça-feira [29 de outubro], quando deu entrada no hospital com problemas graves de respiração, continuava a projectar ideias. nunca se rendeu à evidência da sua doença”, diz ao sol josé manuel lopes, amigo e realizador do documentário, lançado em 2011, zé da guiné – crónica de um africano em lisboa.
o filme, transmitido novamente esta semana na rtp2, recorda a vida do guinense chegado a lisboa nos anos de 1970, mostrando como se tornou uma das figuras mais emblemáticas da vida cultural e nocturna de lisboa na década seguinte. a decisão de concretizar o documentário chegou, inclusive, por insistência do próprio zé da guiné. “éramos amigos, ele sabia que eu tinha a produtora e andou durante muito tempo a tentar convencer-me a fazer um filme sobre aqueles tempos. a ideia inicial era um bocadinho diferente, mas sempre achei fascinante como é que alguém vindo de uma aldeia nos trópicos traz tanto cosmopolitismo a lisboa”, comenta o realizador.
apesar de essa pergunta assaltar várias vezes as figuras da cultura e da vida boémia da altura, o empresário hernâni miguel – que, em 1985, criou as noites longas com zé da guiné, no antigo palacete do casa pia atlético clube, onde mais tarde foi a discoteca africana b.leza – sempre considerou que, por vir de áfrica, trazia “uma mentalidade diferente, mais descontraída e desinibida”. “ele era uma personagem. foi um dos precursores de um movimento que modificou hábitos e comportamentos em lisboa. era um homem extraordinário que tanto podia estar aqui, como em londres, nova iorque ou tóquio”.
miguel esteves cardoso também o recorda assim. “zé da guiné é um grande artista. não foi só uma inspiração, um exemplo e um catalisador, embora também fosse essas coisas. criou ambientes e criou mentalidades. abriu caminhos e diversões. a noite de lisboa era fechada, triste, mesquinha e clandestina antes do zé e do manuel reis [frágil/lux], cada um à maneira dele. contra todas as más vontades, burocracias, pessimismos e letargias, estes dois artistas públicos conseguiram abri-la, alegrá-la, engrandecê-la e mergulhá-la no presente”, escreveu o jornalista numa crónica no jornal público, de agosto de 2010.
nascido em 1959, numa aldeia na guiné-bissau, josé osaldo barbosa ganhou a alcunha de zé da guiné à porta do teatro d. maria ii – onde parava habitualmente, entre fascistas, retornados e africanos. sociável e simpático, travava amizades com facilidade e depressa se foi introduzindo em meios privilegiados. era um apaixonado por desporto, treinou karaté – atingindo o cinturão negro – e atletismo. chegou a conhecer carlos lopes e fernando mamede e, a convite destes, ficou três anos no sporting. era um atleta. todos os dias treinava no estádio universitário e era normal vê-lo “às duas da manhã a fazer alongamentos ali no meio do largo camões”, recordam os amigos.
o corpo musculado garantiu-lhe trabalhos como segurança nocturno, nomeadamente à porta do browns, na avenida de roma. foi aí que começou a conhecer a elite intelectual lisboeta. depois, foi convidado para criar o rockhouse, na rua do diário de notícias, participando na afirmação do bairro alto como o lugar por excelência da lisboa cultural dos anos 80. mais tarde inaugurou o jukebox, no local do antigo rockhouse. era conhecido de artistas, músicos, cineastas e jornalistas, mas embora se movimentasse na noite, “era muito conservador”. “não fumava, não bebia, não se drogava”, diz josé manuel lopes. tornou-se um dos símbolos de uma cidade que se queria moderna, ao ponto de o jornal francês libération, em 1986, o descrever como “a estrela da capital”. morreu na semana passada, a 1 de novembro, no hospital de são josé, em lisboa. tinha 54 anos e uma vida cheia de histórias para contar.