Tunísia: Constituição tirada a ferros

Flores murchas – ou uma coroa funerária – são imagens associadas à Primavera Árabe, perante a violência que perdura e mata nos países onde estalou a revolução pela democracia em 2011. Mas a Tunísia, pioneira na revolta, tem sido mais um cacto: não é muito atraente, mas resiste. A Assembleia Nacional Constituinte (ANC) do Estado…

“sobrecarregados e cansados, os deputados viram o seu rendimento consideravelmente afectado por causa da desenfreada maratona parlamentar”, justificou o deputado de esquerda ahmed néjib chebbi à agência noticiosa tunisina tap.

a constituição divide-se em dez capítulos e 146 artigos, que começaram a ser debatidos, alterados e adoptados a partir de 3 de janeiro em três sessões diárias. os artigos são aprovados por maioria absoluta (há 217 eleitos), mas o texto da lei fundamental terá de ser validado por dois terços da anc. se isso não acontecer, novo debate e nova votação, respeitando os mesmos critérios. a terceira tentativa de aprovação passa pelo referendo popular.

esse é o cenário menos apelativo, já que leva mais tempo e pode extremar posições na sociedade tunisina. além disso, o chumbo do povo seria o equivalente a recomeçar todo o processo – e desestabilizaria mais um país já descontente, onde a taxa de desemprego ronda os 16%.

a nova constituição é um marco e um passo decisivo para a consolidação da democracia: nos seis meses após a sua adopção, terão de ocorrer eleições.

artigos no feminino

considerada uma das nações mais seculares do mundo árabe, em outubro de 2011 a tunísia depositou a maior parte dos votos (41%) nos islamistas moderados do partido ennahda. os mesmos que foram sendo contestados ao longo de 2012 e sobretudo 2013, pela demora em elaborar um esboço da constituição e após o assassínio de dois membros da oposição.

no verão de 2012, o ennahda fez cair queixos ao anunciar que pretendia introduzir na lei fundamental a noção de ‘complementaridade’ da mulher em relação ao homem. ong, oposição e sociedade civil cerraram fileiras e os islamistas tiveram de fazer marcha atrás. agora, o artigo 20, já aprovado, dita que “todos os cidadãos e cidadãs têm os mesmos direitos e os mesmos deveres. são iguais perante a lei, sem qualquer discriminação”.

ainda não é a definição ideal: não engloba, por exemplo, os estrangeiros no país, nem especifica discriminações – de cor, sexo, religião… mas “é um avanço muito importante, que terá um real impacto no mundo árabe”, opina ao nouvel observateur amira yahyaoui, da ong al bawsala, que monitoriza os debates na anc. “já não se poderá dizer que os direitos da mulher são um conceito ocidental, e o mesmo é válido para o conceito de democracia. a tunísia vai provavelmente votar a primeira constituição democrática do mundo árabe”, prevê a responsável.

ganha a batalha de legislar que o estado defenda e proteja a igualdade de oportunidades em todas as áreas (artigo 45), fica por resolver a questão das heranças. na tradição muçulmana, os filhos herdam mais bens do que as filhas. há famílias que fazem doações em vida, para não prejudicar as herdeiras. os legisladores tunisinos perderam a oportunidade de corrigir este desequilíbrio.

apesar de nos artigos iniciais a tunísia se definir como um estado “civil”, o islão foi adoptado como religião do país – mas não passou a proposta de fazer dele a “principal fonte de legislação”. ainda assim, há termos com carga religiosa. dizer que “o direito à vida é sagrado. ninguém o pode infringir, salvo em casos extremos fixados pela lei”, sem estipular o que é ‘sagrado’ ou ‘extremos’, nem o que isso implica, pode causar problemas. várias ong sublinharam a ambiguidade destas linhas, num país onde o aborto é legal até às 12 semanas e a pena de morte não foi abolida.

pr muçulmano

nos últimos dias foi também criticado o artigo 73, que dita que o presidente, além de tunisino de nascença, tem de ser muçulmano. não se conseguiu maioria para aprovação e a anc terá de voltar a ele.

na quarta-feira, centenas de magistrados, advogados e jornalistas manifestaram-se junto à anc, exigindo que a constituição garanta a independência da justiça, anteriormente subordinada ao poder executivo. mas o debate continua.

“vamos demorar mais tempo mas estamos no bom caminho”, defende amira yahyaoui. assim que a constituição for adoptada, o novo primeiro-ministro mehdi jomaâ, que tomou posse no dia 9 e vai liderar um governo independente, de gestão, poderá começar a preparar as eleições.

jomaâ, antigo ministro da indústria, substituiu o pm ali larayedh, do partido ennahda, que renunciou ao poder enquanto se debate a constituição.

a 17 de dezembro de 2010, o vendedor ambulante mohamed bouzizi imolou-se pelo fogo. as autoridades tinham-lhe confiscado a mercadoria por vender num local proibido e na câmara, onde se ia queixar, recusaram-lhe a entrada. morreria a 5 de janeiro de 2011, numa cama de hospital: o berço da primavera árabe, que a tunísia não desiste de embalar.

ana.c.camara@sol.pt