Campeões no tapete

São sete da tarde e está prestes a começar uma aula de judo que é também uma lição de vida. No Clube Judo Total, no bairro da Lapa, em Lisboa, a modalidade é praticada por cegos, surdos-mudos e pessoas com paralisia cerebral. Uns chegam de cadeira de rodas, outros vêm acompanhados pelo cão-guia, outros vêm…

Os deficientes visuais entram no dojo (a sala de judo) e procuram de imediato o pilar de madeira à entrada. Em sinal de respeito, fazem uma saudação. Dizem que passam a aula “às vénias uns aos outros”. O respeito e a disciplina são valores do judo que mestres e parceiros levam muito a peito.

Os cegos correm pelo lado de dentro junto dos que não têm deficiência visual. Marcelo, que não anda, fica sentado no tapete a fazer outros exercícios de aquecimento.

Todos sabem que a vida é uma sucessão de tentativas e nem sempre as coisas correm bem. Mas isso não os impede de terem objectivos ambiciosos: alguns até treinam para ir aos Jogos Paralímpicos em 2016 e querem trazer medalhas.

Miguel Vieira, 28 anos, deficiente visual desde os 20, é um deles. Treina quatro vezes por semana no Clube Judo Total e esteve na primeira participação portuguesa de judo em competições paralímpicas. Em Março vai à Alemanha participar na sua quarta competição em nome de Portugal. Numa dessas competições, na Lituânia, trouxe o ouro para cá. Treina com um afinco e com uma capacidade competitiva fora do normal. A vida ensinou-lhe a seguir em frente quando tudo o empurrava para trás.

Miguel era fiel de armazém quando, numa pausa do almoço, dormiu um pouco. Ao acordar começou a ver mal. Um descolamento da retina cegou-o – agora vê as coisas como n’O Principezinho de Saint-Exupéry: o essencial é invisível aos olhos. “A nossa vida é feita de altos e baixos e temos de estar preparados para o amanhã. Nós nunca sabemos o que nos pode acontecer. Ser cego ou ter outra deficiência não é motivo para as pessoas pararem por aí”. Não ficou agarrado à tristeza e fez-se à vida. Hoje é assistente operacional na Agência Portuguesa do Ambiente, faz judo de alta competição (cinto castanho) e não consegue viver sem aquelas aulas.

Sérgio Neves, de 27 anos, é o único cego em Portugal com um mestrado em Engenharia Informática. Quando recebeu uma carta da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) a informá-lo da existência destas aulas de judo, não hesitou. A família tentou dissuadi-lo: podia perder-se, podia ser mau, podia ser isto, podia ser aquilo. A tendência para a superprotecção abafa os sonhos de muitos. “Falei com a minha mãe, disse-lhe que a minha vida não podia continuar assim. Ela começou com desculpas para eu não vir. Tive de vencer essas palavras. Respeito muito a minha mãe, mas nisto não podia concordar com ela”. É capaz de ir sozinho de autocarro do bairro da Graça para a Lapa, onde se realizam as aulas que lhe devolveram a vida social. Era um rapaz tímido e hoje socializa com grande à-vontade com aqueles que também se tornaram a sua família. Não tem a ambição de ganhar medalhas, mas orgulha-se do cinto azul, até porque aqui ninguém recebe graduações sem as merecer. “Apercebi-me que já não consigo viver sem o judo. A minha vida era entre a casa e a faculdade – não tinha mais do que isso. Agora tenho este lugar onde me posso divertir, praticar desporto, exprimir-me de outros modos e até falar…”.

Foi Sérgio quem criou o site do Clube Judo Total e faz a sua manutenção. Quer recomeçar a trabalhar na sua área – mas está desempregado. Conforta-o ouvir as palavras de estímulo dos seus mestres.

Um deles é Ricardo Valentim, 40 anos, actual campeão nacional veterano e presidente do Clube Judo Total. “Preocupamo-nos uns com os outros, gostamos uns dos outros e procuramos construir uma coisa muito para além do que se faz no tapete”.

Manuel Costa e Oliveira, 64 anos, presidente da Federação Portuguesa Judo (FPJ), está também no tapete a treinar u e chama “colega” a cada participante. É o sócio número um do Clube Judo Total (foi ele quem trouxe este projecto para Portugal em 2006) e não desiste de procurar as mais variadas respostas para a vida de cada um dos seus parceiros de judo: “Um dos nossos atletas estava desempregado e conseguiu-se um estágio no Montepio. Damos atenção a estas vertentes – e até às familiares. Já tivemos situações de divórcios, álcool e problemas de pais e filhos. Estamos cá para ajudar. Queremos que sejam campeões no judo, mas também na vida”, sublinha.

Costa e Oliveira diz que estas pessoas também o ajudam a ser resiliente na adversidade: “Hoje sou um homem diferente. Os meus amigos portadores de deficiência ensinaram-me a ter coragem, resistência e até humildade. Há aqui grandes exemplos e eu transportei isso para os meus comportamentos. Se olharmos para a forma como alguns destes judocas ultrapassam os seus problemas, temos autênticas lições”. O presidente da FPJ está a treinar com o amigo Marcelo. Este jovem de 19 anos, que vai para a faculdade no próximo ano lectivo, tem paralisia cerebral – mas não tem os sonhos paralisados. Chega numa cadeira de rodas acompanhado pela mãe e salta da sua parceira de duas rodas para o tapete. Marcelo não anda e fala com alguma dificuldade – mas percebe tudo o que lhe dizem e tem um sorriso que enche a sala.

Marcelo vem de Mafra e duas vezes por semana comparece às aulas de judo. “Sempre o estimulei desde pequeno a fazer as coisas; se não conseguia duma maneira, conseguia doutra. E sempre fomos a todo o lado. Mesmo aos sítios mais inacreditáveis”, conta Ana Almeida, mãe do judoca. “As pessoas perguntam-me: ‘Como é que conseguem ir com a cadeira de rodas?’. Eu respondo: ‘Fecha-se a cadeira e vai no carro. Não tenho nenhuma nave espacial’. O Marcelo vai a discotecas. Dizem-me que é perigoso – mas pode ser perigoso para ele e para os outros, é igual. O receio e a superprotecção sufocam. As pessoas com deficiência têm de estar onde estão as outras”.

O jovem já enverga o cinto laranja. Trabalhou para ir subindo nas graduações e tem um duplo ganho: “É um estímulo muito grande a nível motor. Ele estava saturado da fisioterapia e muitos exercícios do judo são idênticos aos da fisioterapia. Há várias maneiras de se chegar onde queremos e com prazer”.

É também com muito prazer que Mariana Couto, surda-muda e aluna do 1.º ano de Medicina, faz judo. Começou há poucos meses e por isso ainda é cinto branco. A intérprete de língua gestual que a acompanha às aulas para lhe explicar o que os mestres pedem aos judocas, traduz-nos o que ela vai dizendo: “Aqui aprendi a aceitar e a lidar com a diferença. Como não oiço, o choque é brutal. Surdos e cegos aprendem a comunicar. Na verdade, é muito difícil um surdo comunicar com uma pessoa que não vê e não sabe língua gestual – mas é um ambiente fantástico e estou aqui para ter outro mundo”. Um mundo que só entende quem pisa aquele tapete.

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