Rui Chafes: ‘Separo a vida da arte’

Ainda não tinha 30 anos quando foi descrito como génio pela revista K, de Miguel Esteves Cardoso. Na altura era um principiante, mas ainda hoje continua a achar que “os génios são só aqueles seres que saem das lamparinas quando as esfregamos”. Se na altura não se deixou envaidecer pela grandeza do elogio, garante que…

Não percebe nada de arte?

Da minha percebo pouco. Percebo da arte dos outros, de alguns outros.

É mais fácil analisar os outros?

Sim. O meu próprio trabalho artístico é um bocado enigmático.

Não tem o devido distanciamento?

Não tenho o distanciamento e são formas que vêm de um território que ainda não existe, que passa a existir. Continuo sem a entender, mesmo durante estes anos todos. Aliás, o que está a acontecer com esta exposição é exactamente isso. É uma ocasião em que revejo peças que não via há muito tempo e que continuam a resistir à minha interpretação. Mas isso é um bom sinal.

Em que sentido?

As peças de arte que se deixam compreender são as piores. Significa que a sua formulação não foi suficientemente cuidada para as manter no nível da incompreensão, que é onde devem permanecer. As coisas que têm de ser compreendidas são da área da comunicação. E a arte tem a ver com captação de forças no espaço. Isso é um território do inominável.

Se não é para ser compreendida porque se expõe e se dá tanta atenção ao número de visitantes?

A quantidade é uma questão absolutamente absurda e errada. Fala-se da quantidade de visitantes em espectáculos, circo, futebol… Quando uma exposição se mede pelo número de visitantes é porque a arte, de certeza, não é lá grande coisa e estamos a trabalhar mais ao nível da ignorância do que propriamente de coisas do espírito. A mim, basta-me um visitante que realmente veja e está salva a arte. A arte não é para multidões. É só para alguns e são poucos, porque só poucos têm olhos para ver e ouvidos para ouvir. As multidões são cegas e surdas. E o artista não pode oferecer lixo às pessoas para que elas pensem ‘afinal não era assim tão difícil’. Isso é prolongar um mal entendido, de que este trauma, do Marcel Duchamp, finalmente foi resolvido. E isto não tem nada a ver com elitismo social. Tem a ver com a disposição das pessoas, a sua educação e informação.

Esta exposição mostra 25 anos de produção. Era o momento para olhar para trás?

Todos os momentos são certos para esse exercício. Qualquer artista deveria ter este privilégio porque olhar para trás abre portas para o futuro. Ter uma ideia de conjunto do trabalho passado é ter uma visão do que foi feito, do que foi mal feito e do que está por fazer.

Foi difícil decidir as obras que entrariam nesta retrospectiva?

Gosto mais da palavra antológica porque tem um ar menos pomposo. Retrospectiva é mais para os mortos e eu ainda me sinto bem vivo. A escolha das peças foi feita em íntimo trabalho com a curadora, Isabel Carlos [directora do CAM], e é uma das muitas possibilidades. Fizemos uma escolha que se relaciona com a arquitectura, o espaço, a luz da Gulbenkian e, naturalmente, com o pensamento que a curadora queria desenvolver. No fundo poderia ter sido outra exposição, mas foi esta.

Traz quatro inéditos. Foram feitos propositadamente para a Gulbenkian?

Sim. Há duas sentadas nos bancos do museu, outra grande no jardim que se relaciona com uma peça de dentro e uma quarta que está na cafetaria e que olha para as pessoas que estão lá dentro. Exploro isso noutras peças. Há ali uma que parece um balão, que não é obvio que se relaciona com a de fora, mas relaciona-se. É como se fosse alguém a soprar uma bolha de sabão, que vai a voar e aterra noutra escultura no jardim, que também é feita de bolhas de sabão e de balões.

O que lhe interessa nesse jogo interior/exterior, luz/sombra?

A passagem de um ao outro. A arte é uma coisa absolutamente artificial, tem a ver com memória, história, forma, imagens, sons, palavras… E tem que ter um sítio. Noutros tempos, a arte encontrava o seu sítio na igreja, ou na paisagem, ou nos templos e era uma arte que cumpria o seu destino num ponto onde o ser humano encontrava o divino. Com o modernismo tudo isso se perdeu, a igreja e a arte moderna viraram costas e a arte passou a existir nesta espécie de hospitais chamados museus e galerias, que são clínicas para a arte doente, órfã, que não tem sítio. Nessa condição, interessa-me testar estes locais, seja o interior-exterior, a sombra-luz, os espaços profano-sagrado.

A arte nunca é natural, espontânea?

Isso não existe. A arte é sempre uma construção com códigos e metodologias que não têm nada de intuitivo, de ingénuo ou inocente. Só a arte naïf, em última instância, é que podia ser arte natural. A arte dos adultos que não loucos, pelo menos patologicamente, é sempre uma construção e, nesse sentido, absolutamente artificial.

A sua obra é, então, uma representação da forma como vê o mundo enquanto artista ou pessoa?

Só existe o Rui artista. Separo completamente a vida da arte. Não há nenhum trabalho meu que fale ou que tenha uma relação com a minha vida. Isso só não me interessa, como não seria interessante para ninguém.

Porquê?

Esse impulso de misturar arte e biografia é uma coisa da pobreza. Não é arte desenvolvida, bem pensada.

Abre esta exposição com a série Lições de Trevas. Porquê trabalhar consecutivamente em séries?

Há trabalhos que exigem uma continuidade e o meu pensamento, muitas vezes, precisa de desenvolver uma série, como as variações de Bach. São variações até não ser possível variar mais.

Funcionam como linhas que percorrem a sua obra?

Tenho a certeza que é sempre a mesma escultura. Estou sempre a fazer a mesma peça, há 25 anos. Não são várias, é uma.

Porque está sempre incompleta?

E provavelmente ficará incompleta, mesmo que viva mais 80 anos.

Diz com frequência que só vai compreender a sua arte aos 80. É um número de que gosta particularmente?

Oitenta é a imagem de uma certa maturidade. Acho que uma pessoa com 80 anos já consegue ter um olhar mais lúcido sobre o mundo que a rodeia e o seu passado.

Recuando então ao seu passado, quando entrou para Belas Artes já tinha o objectivo de fazer carreira como artista?

Não compreendo a palavra carreira… isso é o que fazem os advogados. Tenho um percurso, talvez. Mas sim, quando entrei para Belas Artes já era escultor, em certo sentido.

O que o levou à escultura?

O filho do Almada Negreiros disse-me para ser escultor e obedeci. . Tinha 17 anos e fui-lhe mostrar os meus desenhos. Ele olhou e disse: você é um escultor. Gostava de lhe ter agradecido, mas não o conhecia, só o vi nessa noite, e nunca mais nos voltámos a encontrar.

Já sentia essa predisposição?

Pareceu uma boa ideia. A nossa vida é feita de encontros e de despedidas e se soubermos aproveitá-los evoluímos, vamos de um ponto ao outro. Um encontro pode demorar cinco minutos e mudar para sempre a nossa vida. Este encontro marcou-me porque me abriu uma porta que estava fechada.

Acredita no lado metafísico da vida?

Acredito em tudo. Foram os deuses que nos criaram, da mesma maneira que foram os homens que criaram os deuses. Essa relação é a única que dá sentido ao nosso desamparo e fragilidade. Não há outra. E, por isso, podemos pensar, dizer e acreditar em tudo, sobretudo naquilo que não vemos.

Crê então em Deus?

Acredito na arte. O meu Deus é a arte.

Apesar da escultura ter sido logo uma certeza, não sentiu curiosidade de experimentar outras expressões?

Não, detesto experimentações. Gosto de experiências, mas não de experimentações. Desenho desde criança e o desenho é a raiz de tudo nas artes visuais e, naturalmente, todas as pessoas experimentam muito até compreenderem qual é a sua forma justa de dizer o que têm a dizer. Para mim sempre foi a escultura. Nunca tive de a procurar. Veio ter comigo. Vem sempre tudo ter comigo. Tenho muita sorte.

Depois das Belas Artes foi estudar para a Alemanha, um país que adora…

É o país onde me sinto em casa e senti necessidade de ir consumar essa paixão. É um país maravilhoso, com a língua mais bela do mundo. É uma língua geométrica, arquitectónica. Para mim era fundamental viver na Alemanha. Foram dois anos, mas é um país onde volto sempre.

Nunca se mudou definitivamente para lá. Portugal é um bom abrigo para criar?

É importante estar no sítio onde nasci e ter uma relação quase de ninho com o local. O meu ateliê é o sítio onde passei a infância, onde brincava. Agora continuo a brincar, mas com brinquedos maiores.

Onde é?

É uma casa de férias, ao pé do Guincho. Estou lá desde sempre, desde a infância. E isso não é indiferente. Nunca fiz nenhuma escultura noutro sítio, nem na Alemanha. É a ideia de casulo e, na verdade, tenho 47 anos mas não mexi um milímetro do sítio onde estava em criança.

De certa maneira, esse enraizamento que tem com a terra acaba por trazer a sua vida para o seu trabalho.

Tem a ver com o local, não com questões pessoais. Tem a ver com a luz, a temperatura, o ar que se respira… Até hoje só consigo trabalhar naquele sítio e ao pé daquelas árvores que o meu pai plantou. É o sítio onde o meu corpo se habituou a estar. E aí não há nada de cultural. É uma escolha do local, como as obras de arte, que dependem do sítio onde estão: numa igreja, museu ou na rua. Sempre pensei que ia ser um nómada escritor e afinal sou um sedentário escultor. Mas tenho o privilégio de estar no sítio da minha infância. É uma sorte.

Repete muito as palavras sorte e privilégio…

Não tenho qualquer dúvida de que sou um privilegiado e que tenho muita sorte. Faço o que quero e como quero. A escultura é uma coisa muito difícil, é só para alguns. E não tive de a procurar. Ela veio ter comigo. Sou absolutamente um privilegiado.

Trabalha exclusivamente ferro. Também não o procurou?

O ferro apareceu de forma definitiva por volta de 1987. Até lá, como qualquer estudante de Belas Artes, experimentei vários materiais: pedra, madeira, canas, plástico. Mas aos 21 anos percebi que o ferro era o que me interessava mais e que se adequava ao que queria fazer. Tal como o fogo, que tem uma dimensão dupla entre o mágico e o industrial. O ferro e o fogo têm uma certa banalidade por causa da sua natureza industrial, mas ao mesmo tempo são puros.

E, na sua obra, o ferro é leve. Porquê?

É um reflexo daquilo em que acredito e não acredito. Não acredito em objectos, eles não existem, são meras possibilidades. A tentativa é desmaterializa-los, torná-los numa fábula de ferro imaterial.

É isso que faz: fábulas?

É isso que quero e tento fazer. Mas, com todo o realismo, ainda estou a começar. Até agora tenho feito tentativas. Umas mais bem conseguidas, outras menos, mas nada de especial. Até agora…

alexandra.ho@sol.pt