Uma artéria que ferve em lume brando

Considerado no mês pasado o ‘Melhor Destino Europeu’, o Porto repete a façanha de 2012. E uma artéria em particular começa a dar nas vistas – a Rua dos Caldeireiros. Entre prédios devolutos e negócios centenários, novas ideias ganham forma. Já há quem fale da febre dos negócios e compare o fenómeno dos Caldeireiros ao das Galerias…

António Rodrigues recorda-se bem dos tempos em que a Rua dos Caldeireiros, na freguesia da Vitória, mesmo ao lado da Torre dos Clérigos, ainda fazia jus ao nome. “Vim para aqui trabalhar antes do 25 de Abril, tinha 19 anos. Era tudo muito diferente. O martelar dos caldeireiros era o relógio da rua inteira. Ao meio-dia calavam-se e sabia-se que era hora de almoçar. À uma voltavam à carga. Às seis da tarde silenciavam novamente e marcavam o fim do dia de trabalho”. António também fez caldeiras, alambiques e cilindros. O processo era longo e implicava passar horas a martelar, aquecer e dobrar. “O cobre era recozido para se poder trabalhar. Era preciso dar-lhe pancadas para ele ir endurecendo. Um alambique, por exemplo, cozia-se muitas vezes para ser moldado. Sentávamo-nos num triângulo de madeira e íamos batendo no cobre, que assentava num molde de ferro, até este ganhar a forma que queríamos. No fim ia tudo para um ácido para ficar branco e depois era limpo com sal grosso e areia”.

Entretanto os tempos mudaram e o último caldeireiro fechou as portas há menos de dez anos, como recorda Serafim Cunha, criado e nascido nesta rua há 53 anos. “Aqui, das oito da manhã às seis da tarde, era uma barulheira incrível. Já não tem nada a ver com que o que era. Agora há muitos hotéis, bares e restaurantes. Toda a gente anda à procura de um espaço para abrir negócio. É uma febre que anda por aqui”. Mesmo ao lado da casa de Serafim encontra-se um desses espaços novos. Foi um dos primeiros a abrir as portas, neste novo ciclo da rua. Paula Lopes e Ana Luandina, as proprietárias do Miss’Opo, um restaurante e guesthouse, explicam que, ao contrário do que acontece noutros locais da Baixa do Porto, na Rua dos Caldeireiros ainda há um espírito bairrista e um lado pitoresco, que torna a zona familiar. “A rua está com uma nova vida. Têm crescido coisas interessantes”, refere Paula.

Porta sim, porta não espreita um estabelecimento. Os mais recentes abriram nos últimos dois anos. Como o Emília’s & Companhia, onde é possível beber um café de saco e saborear uma especialidade com o nome da casa, confeccionada com farinha de arroz, chila e noz. Descendo um pouco a rua, deparamo-nos com os sabonetes artesanais da Arte Sana e, quase ao chegar à Rua das Flores, é possível, na porta n.º 85, experimentar as mais populares sanduíches do Porto na Sandeira.

Mas a nova vida coabita com negócios centenários, instalados nesta artéria há dois séculos. É o caso da Casa Xavier, a mais antiga loja dos Caldeireiros (e, em produtos ortopédicos, do país) com 129 anos de vida. Américo Xavier, o bisneto do fundador, está neste momento à frente do estabelecimento: “A nossa loja foi fundada em 1885. Há 50 anos havia por aqui todo o tipo de negócios: mercearias, tascos, caldeireiros, casas de electrodomésticos, armazéns de fazendas, até uma fábrica de guarda-chuvas. E depois foi tudo desaparecendo. Parece Domingo todos os dias. Resistimos nós, a Vidraria Fonseca, a Carvalho e Irmão, a Central da Borracha, o Armador e a Casa das Lâmpadas, que fechou há pouco tempo”, refere resignado. “Talvez os novos espaços possam trazer outra energia”.

Em frente à loja de Américo Xavier, acaba de abrir um novo espaço. Conta ainda poucos dias de vida. Folias de Baco é o nome desta reinvenção de taverna, que aproveitou a estrutura e elementos do negócio que antes ocupou o local. Esta opção é coerente com o propósito de “fazer renascer a ligação da cidade com o Vale do Douro e com o negócio do vinho do Douro. Aqui só temos a nossa marca de vinho, Olho no Pé, e produtos regionais do Douro, que provamos pessoalmente”, explica César Figueiredo, um dos sócios. Conjuntamente com Natasha e Tiago Sampaio, decidiu abrir um espaço onde pudessem promover o negócio familiar de produção de vinho. “Tentamos manter a estrutura original da casa, que pelo que sabemos tinha uma relação com a Ortopedia Xavier”.

As sonoridades suaves da bossa-nova que enchem esta taverna, forrada com madeira e ambientada com luz de velas e panos de crochet, contrasta com o som que encontramos no estabelecimento vizinho. José Augusto Pereira tem o rádio sintonizado na Festival (uma das rádios mais ouvidas do Porto). É sapateiro há 70 anos e está na rua há 40. O local de trabalho acusa o tempo de vida, materializado nas teias de aranha – “são as cortinas”, explica José Augusto Pereira – e no pó acumulado sobre bonecos de loiça, emblemas do FC Porto e calendários com mulheres despidas. Também ele trabalha com a casa Xavier, fazendo e adaptando botas ortopédicas. Aliás, toda a rua parece estar ligada por uma teia invisível de relações, que fazem dela uma artéria com vida própria e calor humano.

Ao fim da tarde de sexta-feira, no Dar à Sola, é possível ter uma amostra da ‘fauna’ heterógenea que frequenta a rua: moradores e jovens estudantes estrangeiros, habitués da vida nocturna tripeira, velhos e novos juntam-se por aqui para ouvir cantar o fado. Este espaço, que durante quatro décadas abasteceu uma grande parte das lojas de calçado do Porto, até há 12 anos foi habitado por um soleiro. No seu lugar, abriu em 2013 uma Associação Cultural que quer promover as artes tradicionais portuguesas. Quando o espaço foi ocupado “havia solas por todo o lado”, recorda Inês Caetano, uma das responsáveis do Dar à Sola. “Aproveitámos o possível, como o balcão que todos reconhecem. O nome também é uma homenagem. Esta rua já foi muito forte em ofícios. Porta sim, porta sim havia uma oficina. Temos concertos de músicas do mundo e oficinas relacionadas com artesanato tradicional: sabonetes, fiação, bordados… Às sextas temos as tardes de Fado Vadio, algo típico da cidade do Porto. Qualquer um pode cantar. Temos todo o tipo de gente, inclusive os moradores, que nos receberam muito bem”.

Ao lado desta Associação Cultural encontra-se outra das casas mais antigas da rua, a Vidraria Fonseca, criada pelo pai de Francisco Fonseca em 1908. Ali viveu o poeta e escritor António Patrício. Segundo o actual proprietário, antes de chegarem as oficinas, entre os séculos XVIII e XIX, a rua foi habitada por gente “de bem”, que entretanto se foi mudando para a Foz do Porto. “Aos sete anos eu vinha fazer os deveres para a loja. Esta rua tinha de tudo. Até uma casa de pianos, um carvoeiro, um dentista… não faltava nada. Era conhecida por ‘rua dos martelinhos’, por causa do bater dos caldeireiros”. Francisco, que viu a rua passar por vários ciclos, está optimista: “Acredito que esta nova leva de negócios vai trazer mais vida. Ultimamente faz-me lembrar Milão, Bolonha e Dusseldorf, onde as pessoas vivem no meio na rua, com um copo na mão”.

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