Além desta, grande parte das outras canções do segundo trabalho de Ana, mais conhecida nas lides musicais como Capicua, são autobiográficas. Mas, garante a autora, não há por aqui qualquer tipo de exposição gratuita. Apesar de ainda se sentir “muito Peter Pan”, “já há uma maturidade e consciência daquilo que se quer ou não expor”. Esse amadurecimento também a obriga a ter de trabalhar melhor a escrita, a “procurar um registo mais metafórico ou encriptado”. ‘Vayorken’, por exemplo, é assumidamente sobre a sua infância, mas, ainda que a rapper esteja no centro da narrativa, “há várias histórias misturadas e não se sabe quando começa uma e acaba outra”.
Mas Sereia Louca não se faz apenas de vivências pessoais imediatas e absolutamente reais. Há por aqui um catálogo variadíssimo de emoções, com a autora a mostrar que o seu horizonte artístico é longínquo, extenso e, acima de tudo, multidimensional. O título do registo resume esta ideia: “As sereias têm duas dimensões: a aquática e a terrestre. São sedutoras e têm um canto encantatório, mas ao mesmo tempo fantasmagórico, que enlouquece marinheiros e faz com que se percam no mar. Identifiquei-me com isso porque também não me quero limitar, quero tentar coisas fora da minha natureza, de utilizar a voz para chegar às pessoas, seja, às vezes, um canto, outras um grito”.
A imagem da sereia, e vontade de a usar como mote deste segundo registo, surgiu depois de um sonho que a rapper teve. “Sonhei com esta sereia que queria sair do aquário e calçar os sapatos, mesmo não tendo pés. Comecei a cismar com aquilo, a contar a toda a gente e fui por aí fora”. Releu A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen, Odisseia, de Homero, encontrou o texto O Silêncio das Sereias, de Kafka, descobriu o poema ‘Estátua Falsa’, de Mário de Sá-Carneiro, e a frase cantada por Mísia, no fado homónimo, ‘sereia louca que deixou o mar’ e não resistiu a incluir o sampler no single de apresentação.
A decisão de adaptar toda esta carga mitológica tornou-se definitiva quando percebeu outra leitura para o título: serei a louca. “Quando nos propomos fazer um disco sabemos que vamos iniciar uma corrida de fundo, que vamos ficar meses, se não anos, dedicados a um projecto só porque temos uma motivação, um desejo de cumprir uma visão que é só nossa e expô-la na praça pública. É preciso uma certa dose de coragem e loucura para isso”, diz, realçando ainda a enorme “autodisciplina e capacidade de superação” a que a finalização de um disco obriga.
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