Esse passado diz respeito aos três anos de actividade dos Silence 4 (1998-2001), quando a banda de Leiria se tornou um dos maiores fenómenos na história da música portuguesa, colocando um país inteiro a cantarolar refrões como ‘there’s nothing left for me to borrow/I guess I’ll try again tomorrow’. Num país que nunca firmou a tradição de se venderem canções avulsas – como acontece nos Estados Unidos e Reino Unido -, o single ‘Borrow’ fez com que o primeiro disco da banda permanecesse semanas consecutivas no primeiro lugar da tabela de vendas e o resultado foi um sucesso imediato: Silence Becomes It (1998) conquistou seis platinas, vendendo mais de 240 mil cópias. Dois anos depois, surgiu Only Pain Is Real e a adesão em massa continuou. De tal maneira que provocou uma “saturação extrema” nos quatro membros da formação – além de Sofia (voz) e David (voz e guitarra), Rui Costa (baixo) e Tozé Pedrosa (bateria) – e precipitou o fim dos Silence 4 em 2001.
Treze anos depois da separação, os quatro músicos preparam-se agora para um reencontro com vários concertos agendados. Normalmente são os números redondos que ditam momentos como este, mas aqui o mote é diferente. Partiu de Sofia, numa altura em que a cantora ainda nem sabia se conseguiria voltar a subir a um palco. Diagnosticada com uma leucemia há cerca de três anos, foi enquanto estava doente que desafiou David, Rui e Tozé a reunirem-se para tocarem novamente ao vivo em jeito de celebração da vida.
Gravidez interrompida
Sofia estava grávida de três meses quando descobriu que tinha leucemia. “Era um [primeiro] filho muito desejado e foi difícil engravidar”, conta. “Quando fui fazer os exames do início do segundo trimestre, apareceram aqueles valores malucos”. Em três dias foi diagnosticada a doença, realizado o aborto e iniciada a quimioterapia. “Era um prognóstico muito mau. Era um ‘cancrão’!”. Os dias que se seguiram foram, naturalmente, violentos. “Quando te dão a notícia é indescritível. Acaba-se tudo naquele dia. E quando se iniciam os tratamentos, não sabemos se vai acabar bem ou mal, mas também é indiferente porque naquele dia em que te diagnosticaram acabou tudo”, explica, usando o plural, empenhada em fazer da sua história uma chamada de atenção colectiva. “Para mim foram três anos, mas há gente no Instituto Português de Oncologia [IPO] que enfrenta isto há oito, nove, dez anos… E há muitas mais mulheres que passam por isto do que aquilo que se pensa. O cancro já é uma coisa horrível, grávida então é muito mais complicado”.
Apesar do drama por que passou, Sofia conta a sua história sempre com um sorriso nos lábios. E está convicta que essa atitude influenciou a recuperação. “Tem-se muita vontade de desistir, mas a determinada altura pensei, ou fico a vida toda a chorar e a ser uma desgraçada ou acredito que isto não é o fim do mundo e que há mais coisas reservadas para mim”. David, que esteve a par da situação desde os primeiros momentos, confirma a enorme força interior da cantora. “Ela nunca deixou de ser a pessoa que era. Às vezes, nestas situações limite, as pessoas vitimizam-se muito. Mas a Sofia nunca deixou de rir, de ter sentido de humor, grande parte das vezes até muito negro. Se eu reproduzisse algumas das nossas conversas as pessoas ficariam chocadas”, comenta, provocando mais uma gargalhada a Sofia.
A vontade de convocar os antigos parceiros surgiu após os primeiros tratamentos, mas quando Sofia ainda não estava totalmente fora de perigo. “Estava no início dos tratamentos e já tinha uma série de obrigados para retribuir. Por isso, pedi-lhes que, independentemente de cá estar ou não, se juntassem e, de alguma forma, contribuíssem para a Liga Portuguesa Contra o Cancro [LPCC]”.
Depois do susto e dos primeiros tratamentos de quimio e radioterapia, veio a fase mais optimista, nomeadamente quando os médicos perceberam que a irmã de Sofia era compatível e podia ser dadora para o transplante de medula óssea. Só não se esperava o que aconteceu a seguir. “Tive a doença do enxerto contra hospedeiro, que é normal ter-se um bocadinho quando o transplante é bom. Mas a mim veio crónico”, partilha, revelando que ficou em “estado vegetal”. “Tive tudo o que podia acontecer de mau. Estive em coma, acamada, de fraldas… a precisar de tudo e de todos”.
Antes de adoecer, Sofia diz que era “a optimista de serviço”. Por isso – apesar de ter interrompido a gravidez e de ter ficado a saber que nunca mais poderá engravidar – o que mais lhe custou durante todo o processo “foi ter perdido a capacidade de sonhar”. “Pensava muitas vezes, ‘mesmo que sobreviva, o que vai sobrar de mim, física e psicologicamente?’“. Para não se render ao pessimismo, obrigou-se a ter um sonho por dia. Um dos primeiros foi reunir os Silence 4 para, através da música, retribuir tudo o que os médicos fizeram por si e, ainda, celebrar a vida de quem sofre de cancro em Portugal.
“Quando a Sofia nos pediu para fazer isto mesmo que ela não superasse, dizia-lhe sempre que isso nem sequer era uma opção”, conta David, recordando a primeira vez que Sofia abordou o assunto. Dois anos depois desse primeiro pedido, os quatro músicos começaram a ensaiar juntos, em Leiria, a sua terra natal, no início do ano.
Durante este mês de Março e até ao início de Abril vão realizar quatro concertos – dia 15 em Ponta Delgada, 22 no Funchal, 29 em Guimarães e 5 de Abril em Lisboa – e, por cada bilhete vendido, 1 euro reverte para a LPCC. Mas antes desta mini-digressão arrancar, a banda fez questão de promover um showcase, há uma semana, no IPO. “Foi uma explosão de emoção, com muita choradeira pelo meio”, descreve Sofia. E David concorda: “Mais emocional era impossível. Para onde quer que olhasse, só via pessoas em lágrimas”.
Se essa reacção se vai prolongar aos outros concertos agendados, Sofia e David não conseguem prever, mas acreditam que serão espectáculos muito festivos. Nos ensaios, pelo menos, o ‘regresso ao passado’ tem sido “surpreendente”. “Ao longo destes dez anos, cantei duas ou três canções dos Silence 4 nos meus concertos. Mas nunca era a mesma coisa. Os Silence 4 têm uma forma de ser musical que só é possível com estas pessoas. É um formato acústico que vive claramente de duas vozes, uma bateria, uma guitarra acústica e um baixo. Voltar a tocar estas canções é muito bom porque elas estão tão vivas agora, como na altura”.
O primeiro disco dos Silence 4 foi lançado em 1998, mas a banda formou-se três anos antes. Como qualquer projecto em início de carreira, receberam muitas negas antes de assinarem um contrato com a editora PolyGram (actualmente Universal). David recorda que até editarem o primeiro trabalho, os convites que recebiam chegavam com exigências: “Diziam-nos que se cantássemos em português editavam, ou que deveríamos mudar isto ou aquilo nas canções. Nunca cedemos”.
Essa persistência valeu-lhes o sucesso que alcançaram. Em Junho de 1998 editaram Silence Becomes It e, seis meses depois, esgotaram o Pavilhão Atlântico (actualmente Meo Arena), afirmando-se como um fenómeno sem precedentes em Portugal e totalmente transversal: “Tocávamos para crianças, adolescentes, adultos e idosos. Toda a gente conhecia a nossa música”. Durante esses três anos percorreram o país de Norte a Sul com a sua música e, só num ano, chegaram a dar “cem concertos”. “Foi um ritmo alucinante”, diz Sofia, recordando que, às vezes, tinham oito ou nove actuações por semana. “Fazíamos um de tarde e outro à noite. Era uma loucura”. “Costumava dizer ‘se tenho de tocar mais uma música dos Silence 4 desmaio”, acrescenta David.
“Completamente exaustos”, os quatro músicos decidiram ir de férias em Junho de 2001 e, durante uns tempos, voltar cada um à sua anterior vida. Quando se reencontraram, Tozé já dava aulas no ensino superior, Sofia tinha abraçado um negócio de família, David estava a terminar o primeiro disco a solo e Rui já namorava outros projectos musicais, como a Filarmónica Gil, que formou depois com João Gil.
“Os Silence 4 nunca foram uma banda projecto, aquela coisa de dizer ‘vamos fazer disto a nossa vida’. E apesar de termos feito muito dinheiro, nunca houve a tentação de transformar isto num negócio”, comenta David, garantindo que ninguém se zangou. “Hoje, quando olho para trás, é inegável que os Silence 4 foram uma coisa incrível e acho que essa imagem passa para os fãs porque, como saímos lá em cima, cristalizou-se na memória das pessoas”. E Sofia sublinha: “Resistimos à passagem de bestial a besta. E ainda bem. Espero que essa imagem positiva perdure na cabeça das pessoas, as influencie a vir aos concertos e que isso resulte em muito dinheiro para a LPCC”.