Quando começou em Portugal a discutir-se o assunto, eu era ferozmente contra o Acordo Ortográfico, embora baseado em questões comezinhas: não me sentia bem a escrever ‘arquiteto’ em vez de ‘arquitecto’, e coisas assim.
Convencido das minhas razões, entrei um dia em casa do meu pai e perguntei-lhe em tom cúmplice, certo de que conhecia a resposta: “Então pai, o que achas do novo Acordo Ortográfico?”. Para minha surpresa, ele respondeu: “Não sei nada sobre isso, mas estarei a favor de qualquer acordo que envolva os países de língua portuguesa. A língua é o nosso grande património, e só se defende se formos capazes de nos ir entendendo quanto à grafia das palavras. Caso contrário, vamos divergindo – e deixará de haver língua portuguesa para haver brasileiro, angolano, etc. E devemos ter noção de que o Brasil tem 150 milhões de habitantes e Portugal tem dez. Teremos de ser nós a fazer as cedências…”.
Devo acrescentar que, como muitos sabem, o meu pai foi autor, com Óscar Lopes, de uma das histórias da literatura portuguesa mais lidas de sempre, apesar de nunca ter sido livro oficial – não podendo considerar-se, pois, uma pessoa ignorante ou desinteressada em relação à língua.
Curiosamente, passados vários anos sobre esta conversa, num almoço organizado por Ernâni Lopes – que se revelaria depois ser uma espécie de ‘almoço de despedida’ -, em que participaram meia dúzia de pessoas públicas por quem tinha alguma estima (como Vítor Bento, António Carrapatoso e o seu sócio Poças Esteves), ele disse-nos no fim da refeição: “Tenham sempre uma coisa em mente: não são os outros países de língua portuguesa que precisam de nós, somos nós que precisamos deles. Resta saber se ainda vamos a tempo…”.
Sobre o mesmo tema, Pedro Santana Lopes – o responsável governamental que lançou as negociações sobre o Acordo Ortográfico, quando era secretário de Estado da Cultura – contou-me que o tema lhe foi ‘encomendado’ por Cavaco Silva, na altura primeiro-ministro, porque este começava a ver que os documentos que circulavam em várias instâncias internacionais eram escritos maioritariamente em ‘brasileiro’.
“Qualquer dia não há nada escrito em português de Portugal”, disse-lhe Cavaco, pedindo a Santana para tentar negociar com urgência, com o Brasil, Angola, Moçambique e os outros países onde se fala português, uma escrita comum.
Santana Lopes contou-me ainda que, aquando da cerimónia na Ajuda onde se ia assinar o Acordo, os brasileiros foram os últimos a chegar – e ele receou que não aparecessem, pois tinham sido os mais renitentes a aceitar as propostas de consenso. E compreende-se porquê: é que, significando já nessa altura quase 200 milhões de falantes, achavam que não precisavam de Portugal para nada.
Quando se discute o Acordo Ortográfico, é preciso ter tudo isto em conta. É ridículo, perante uma questão tão importante para Portugal – a existência de uma escrita comum nos vários países que falam português -, estar a discutir se esta ou aquela palavra deveria escrever-se com mais um ‘c’ ou um acento.
A língua é uma convenção. Antes, onde se escrevia ‘ph’, hoje escreve-se ‘f’. Claro que há argumentos científicos que sustentam esta ou aquela grafia. Mas isso é para os especialistas, para os historiadores – sendo irrelevante para o comum dos cidadãos. Para estes, para o país, o importante é terem uma língua escrita por 600 milhões de pessoas e não apenas por 10 milhões. Portugal não pode ser a ‘Aldeia dos Gauleses’ do português.
Os que resistem ao Acordo Ortográfico fazem-no, na esmagadora maioria, por conservadorismo ou por caprichismo. Estão habituados a escrever de determinado modo e não querem mudar. Acho ridículas aquelas notas onde se diz “O autor escreve de acordo com a antiga ortografia”. Mas porquê? Qual é o argumento para recusar a mudança, para lá do conservadorismo?
Há cerca de cem anos, escrevia-se como consta da placa acima: “É prohibido collocar cartazes e annuncios em todo o edificio d’esta ordem”. Quereremos voltar a escrever assim? Achamos que não deveria ter havido simplificações na grafia? Então, se aceitamos as alterações do passado, por que recusamos as actuais mudanças? Os outros deveriam tê-las feito mas nós não? Porquê?
Contra o argumento do conservadorismo, dir-me-ão que há muita gente ‘progressista’ que recusa o Acordo. Isso decorre de uma confusão hoje existente. Os conceitos de ‘progressismo’ associado à esquerda e de ‘conservadorismo’ associado à direita estão desactualizados.
Nos tempos que correm, a esquerda é mais imobilista do que a direita. Já se viu gente mais conservadora do que os militantes do PCP? Dizem que querem a revolução – mas depois, nos hábitos, nos gostos, nas decisões, são profundamente conservadores. Não querem que nada mude.
A direita, pelo contrário, é mais aberta à mudança e ao futuro. Porquê? Porque é menos ideológica, mais pragmática, e por isso acompanha melhor a evolução dos tempos.
Para terminar, devo dizer que tenho lido boa parte do que se tem escrito sobre o Acordo Ortográfico e ainda não encontrei nenhum argumento que me convencesse, para lá da recusa à mudança e do conservadorismo mental.
É certo que há as razões científicas, mas essas deixo-as para os linguistas – que têm sempre a história à disposição para ver a origem das palavras.
Os opositores do Acordo (onde avulta Vasco Graça Moura, uma pessoa que respeito mas não creio que tenha razão) adiantam como supremo argumento que os outros não querem agora aderir à ideia de uma grafia comum.
Mas isso não é razão para desistirmos. O nosso interesse é que se aplique o Acordo. Para que o português que escrevemos não fique reduzido aos que habitam este rectangulozinho à beira-mar plantado.
Recordo o pensamento de Ernâni Lopes, que entretanto partiu: “Não são eles que precisam hoje de nós, somos nós que precisamos deles”.
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