No estádio Amahoro, na capital Kigali, o Presidente ruandês Paul Kagame apelou à unidade e ao perdão. Mas não deixou de lançar a farpa directamente a Paris. “As pessoas não podem ser subornadas para mudarem a sua história. E nenhum país é suficientemente poderoso, mesmo quando pensa que é, para mudar os factos”, começou, em inglês. E acrescentou em francês (ele que trocou a língua gaulesa pela inglesa como segundo idioma oficial do país): “Afinal, os factos são teimosos”.
O jogo de palavras reitera acusações do PR em entrevista à revista Jeune Afrique, na qual denunciou “o papel directo da Bélgica e da França na preparação política do genocídio” e acusou as tropas francesas de terem participado de forma “activa” na chacina. Paris, que há 20 anos apoiava o Governo hutu, repudiou.
“Não aceito acusações injustas e indignas que poderiam deixar pensar que a França se fez cúmplice de um genocídio no Ruanda”, respondeu o novo primeiro-ministro Manuel Valls. Mas a crise diplomática instalou-se. A ministra da Justiça francesa cancelou a viagem a Kigali e o embaixador gaulês no Ruanda disse ter sido informado que “já não estava acreditado para as cerimónias”.
Quem compareceu foi Ban Ki-moon. No mesmo estádio onde, há 20 anos, os capacetes azuis protegeram centenas de pessoas, o secretário-geral da ONU reconheceu à multidão emocionada pelos testemunhos de sobreviventes: “Mas podíamos ter feito muito mais. Devíamos ter feito muito mais”. E admitiu que “no Ruanda as tropas retiraram quando eram mais precisas” – depois de dez soldados belgas (antiga potência colonizadora) terem sido assassinados.
Chacina concertada
Na noite de 6 de Abril de 1994, o avião que transporta o Presidente do Ruanda Juvénal Habyarimana e o seu homólogo do Burundi, ambos de etnia hutu, é abatido perto da capital. Rapidamente extremistas hutus propagam a mensagem de que os culpados são os rebeldes da Frente Patriótica do Ruanda (FPR), liderada por tutsis que vivem no exílio e comandada por Paul Kagame.
Estes negam (e em 2010 um relatório de peritos franceses corrobora: o míssil lançado contra o avião não podia ter partido da base da FPR). Mas está aceso o rastilho para uma sangria eficaz nos 100 dias seguintes.
As geografias não ditam nacionalidades na região. Os tutsis, minoria num país com 85% de hutus, são o bode expiatório – a par de opositores do Governo e hutus moderados. As rádios espalham mensagens de ódio, incitam à perseguição das “baratas” tutsis, dizem os nomes dos alvos a abater. As estradas são cortadas, milícias hutus exigem documentos a quem passa: as identificações, na altura, referiam a etnia dos cidadãos. A chacina atinge todos, transversalmente – no seio das famílias, entre amigos e vizinhos, com colegas de trabalho. Ser tutsi é ser morto.
Apenas a entrada em Kigali, a 4 de Julho de 1994, das forças da FPR, apoiadas pelo Uganda, vai reverter o cenário. O genocídio termina com a fuga dos cerca de dois milhões de hutus que terão passado a fronteira para a actual República Democrática do Congo, temendo represálias – que também se verificaram.
Um milhão de mortos depois, o país tenta sarar para se reconstruir. Primeiro, é preciso justiça. Mas o sistema judicial está destruído. Na vizinha Tanzânia, as Nações Unidas erguem um tribunal para julgar os mandantes do genocídio: mais de 50 pessoas são condenadas, cerca de dez absolvidas. E os executores?
São quase dois milhões os ruandeses que enfrentam julgamentos em tribunais comunitários, os gacaca. Até ao fim do processo, em 2012, réus, vítimas, testemunhas e juízes reúnem-se semanalmente, por todo o país, nas aldeias, mercados, ao ar livre. Cerca de 65% dos acusados são considerados culpados – e estima-se que 10 mil nem sequer tenham ido a julgamento porque morreram enquanto estavam detidos.
Milhares continuam a cumprir pena hoje. Só o perdão presidencial os pode livrar do cárcere e o último, há sete anos, libertou oito mil condenados. As mãos que mataram devem reerguer o país e juntar-se às das vítimas para a reconciliação, num país onde metade das pessoas tem menos de 20 anos.
Deus abandonou os tutsis
Nem todos enfrentaram a justiça. Somam-se relatos de membros da Igreja Católica que escaparam do Ruanda e vivem hoje na Europa – como o padre ruandês que mora a uma hora de Paris, apesar de ter sido condenado a pena perpétua in absentia no seu país por genocídio e violação. Está identificado, mas a Igreja não lhe toca nem destitui.
Também em Itália há casos de padres e freiras acusados de matar os tutsis que procuraram refúgio nas suas igrejas. E nem as denúncias de ONG, que apontam o “apoio indispensável” prestado pela Igreja às milícias hutus, comove o Vaticano.
A Santa Sé, nesta como noutras questões que colocam os verdadeiros propósitos da Igreja em causa, remete-se a um desconfortável silêncio, alegando apenas que não pode ser responsabilizada por estes crimes e recordando que cerca de 200 religiosos foram assassinados no genocídio. Uma mão lava a outra.