Ouvem-se gritos de satisfação, os braços são atirados para o ar. A plateia está em êxtase e pula em compasso frenético, gerando uma massa corporal compacta que se movimenta de um lado para o outro enquanto berra em uníssono ‘be be bela’. Quando o tema termina e os presentes permitem ao corpo abrandar, uma adolescente diz-nos que a canção é “o grande hit de kuduro do momento”. “Isto é batida da boa”, comenta outro conviva presente no MusicBox, na última festa Príncipe, dedicada aos artistas da editora homónima. Criada em 2011, a Príncipe Discos edita, promove e distribui sobretudo música electrónica feita artesanalmente na periferia com forte influência africana e que tanto pode ser kuduro, batida, afro-house, funaná, tarraxinha ou semba.
De há dois anos para cá, a Príncipe Discos ocupa o bar do Cais do Sodré uma vez por mês, criando um evento que está a revolucionar a noite lisboeta. Nas palavras de Pedro Gomes, um dos fundadores da editora, “a Lisboa branca está, finalmente, a aproximar-se da Lisboa negra e vice-versa”. Resumidamente, este é o mote dos encontros mensais: dar visibilidade e contexto a uma criação artística que existe e tem vida própria há mais de uma década, mas que, até há dois anos, não ultrapassava as fronteiras dos bairros onde é maturada.
Marlon Silva, mais conhecido no meio como DJ Marfox, é um dos elementos u principais de toda esta operação. Realojado há sete meses na Quinta do Mocho, em Sacavém – depois de o bairro onde cresceu, na Portela, ter sido demolido –, Marfox, 25 anos, é uma referência para todos os jovens que estão a produzir este tipo de música nos quartos de suas casas. Conquistou esse patamar em 2006, quando lançou, com o colectivo DJ do Ghetto, a compilação DJ”s do Guetto Vol. 1. O registo propagou-se pela internet com a velocidade de um rastilho aceso e tornou-se um modelo para as gerações mais novas que trabalham estas sonoridades lusófonas. “Foi um estrondo dentro dos bairros”, diz Marfox, recordando que graças a esse registo viajou pela Europa, “com cachets e hotéis pagos”, no circuito das comunidades africanas. “Fomos os primeiros e isso acabou por influenciar muitos dos miúdos que agora produzem kuduro em casa”.
A par das comunidades africanas, surgiram outros convites e Marfox começou a tornar-se um artista em circulação global, com actuações em clubes e festivais em Inglaterra, França, Dinamarca, Alemanha, Polónia ou Itália. Seguiram-se outros três EP, desta feita em nome próprio: para a editora londrina Pollinate Records, para a Enchufada, dos Buraka Som Sistema, e para a Príncipe Discos, com quem começou a trabalhar em 2007. Para breve, prepara o lançamento de novo disco, com a norte-americana Liti City Trax.
“Conheci o Marfox na Gulbenkian, num evento chamado Nove Bairros Novos Sons, em que foram seleccionados nomes ligados às comunidades. Um deles era um cantor cabo-verdiano, o Kotalume, que estava a cantar um funaná digital, hiper comprimido”, recorda Pedro Gomes, da Príncipe. No dia seguinte a actuação repetiu-se, mas desta vez estava mais um elemento em palco, “com phones e uma mesa de mistura, mas com os pratos vazios”. Era Marfox, “a fingir que estava a passar discos”. Assim que soube que Kotalume tinha levado um beat seu à Gulbenkian quis marcar presença, “numa óptica de ‘fiz o beat, tenho de estar no palco’”.
Juntamente com Nélson Gomes, outro dos fundadores da editora, Pedro foi falar com Marfox e “a primeira reacção foi de espanto e desconfiança”. “O que é que estes dois gajos, de cabelo comprido e ar roqueiro, querem?”, recorda o editor. Aos poucos foram conquistando a confiança de Marfox, que passou a ter o papel fundamental: ser a ponte entre a Príncipe e os artistas locais. “O Marfox percebeu a importância do momento, não só musical e artisticamente falando, mas também as implicações sociais, políticas e culturais que isto tem”.
Anónimos no centro, heróis na periferia
Quando o conheceram, refere Pedro Gomes, Marfox “era uma estrela no meio”. “Era o DJ que estava a bombar mais. Lembro-me que, pouco tempo depois de o conhecer, não passava uma semana no centro de Lisboa em que, mal ouvia uns graves de um carro, aos berros, sabia à distância que era alguém a ouvir Marfox”. Aquela música, completamente desconhecida no centro da capital, já movimentava milhares de pessoas nestes bairros que cercam a cidade, os tais chamados guetos urbanos. E, garante Marfox, as festas que se realizam aqui, maioritariamente no Verão, chegam a receber enchentes de milhares de pessoas.
Além de Marfox, vivem no bairro da Quinta do Mocho – um dos mais estigmatizados de Lisboa, conhecido pela sua criminalidade e conflitos com a polícia – DJ Nervoso (Edney Magalhães, 29 anos ), DJ Firmeza (Cílio Manuel, 19) e DJ Liofox (Anacarias Bastos, 20). Tal como Marfox, Nervoso também é um herói entre os mais novos. “O estilo dele sempre foi uma grande inspiração para toda a gente dos bairros”, diz Liofox. “Como éramos miúdos, não nos deixavam entrar no salão de festas, mas nós ficávamos cá fora porque dava para ouvir o Nervoso tocar. Se não fosse por ele, provavelmente não estaria a fazer isto”, acrescenta Firmeza, que, como vários destes jovens produtores, vê na música uma alternativa à criminalidade.
Rapaz problemático desde o fim da infância – marcada, aos dez anos, pelo acto de violência que presenciou em casa e que provocou a cegueira da sua mãe –, Firmeza começou a interessar-se por música após este acidente. “Por causa desse problema, fui viver uns tempos com o meu pai e o meu irmão mais velho mostrou-me o Fruity Loops [um software para fazer música fácil de usar]. Como sempre fui fã do Nervoso comecei a tentar fazer batidas iguais às dele”, conta. Firmeza fala depressa e quase não pára para respirar. “Quando o meu irmão saía, ia a correr para o computador e ficava horas a tocar. Primeiro só para mim, depois para alguns amigos”. Aos poucos ganhou fama de DJ e começou a actuar em algumas festas africanas. Sem se aperceber, começou a passar mais tempo em casa a produzir e isso afastou-o das brigas na rua e das idas ao tribunal (como aconteceu de uma vez em que foi encaminhado para a Casa Pia de Lisboa). “Concentrei-me só na música e foi ela que me desviou das confusões”. Hoje, nas palavras do ‘mentor’ Marfox, “Firmeza é um king [rei] nos bairros” e enche, u “uma festa para cinco mil pessoas”. “Mas isto a cidade não absorve, não conhece, não tem acesso”, lamenta. A única excepção, diz, acontece uma vez por mês, no MusicBox.
Até à concretização da primeira Noite Príncipe, garante Pedro Gomes, um longo caminho foi percorrido. “As primeiras conversas com o Marfox aconteceram em 2007, lançámos a Príncipe no final de 2011 e as festas no MusicBox arrancaram em Fevereiro de 2012”. Antes de se fixarem no Cais do Sodré, a Filho Único (associação e produtora cultural também fundada por Pedro Gomes) testou alguns eventos com os artistas que viriam a fazer parte da Príncipe.
“Lembro-me de uma festa no antigo minimercado de Santos, onde tinhas pessoal black de um lado, parado, a olhar para o pessoal branco do outro, parado, a olhar para o pessoal black. Era a imagem paradigmática do apartheid que existia em Lisboa”. E continua: “Os brancos tiveram de perceber que ninguém ali os ia incomodar e o pessoal dos bairros também teve de perceber que os brancos não os iam colocar em perigo. Quando isto ficou claro, toda a gente começou a sentir-se e a dar-se bem”.
Quem vai hoje a uma destas festas – a próxima acontece já daqui a uma semana, no dia 11 –, constata isso mesmo. Raças, géneros, faixas etárias e grupos sociais misturam-se e as diferenças dão lugar à união em torno da música. “Há dois anos isto era uma raridade, mas hoje em dia há amizades que nascem ali”, frisa Pedro, descrevendo uma utopia que, pouco a pouco, se vai tornando realidade.
A utopia no MusicBox
Em Fevereiro, quando celebraram o segundo aniversário da editora, os artistas da Príncipe ficaram pasmados por verem, entre eles, uma actriz bastante conhecida da nossa praça. “Ninguém queria acreditar que a Alexandra Lencastre estava lá, a dançar, no meio do pessoal do bairro até às sete da matina”, diz, cheio de orgulho, Marfox. Além de Alexandra Lencastre, no campo dos famosos, também andavam por lá Jessica Athayde (que tem aulas de kuduro com Blaya, dos Buraka), Inês Castel-Branco, Rui Reininho e João Botelho.
Se por cá esta música electrónica africanizada começa a ser conhecida, no estrangeiro o reconhecimento que já tem é ainda mais impressionante. No último ano os elogios surgiram de todos os lados, mas os mais emblemáticos talvez sejam a referência de Thom Yorke, dos Radiohead, no site da banda, a Nigga Fox (outros dos artistas representados pela Príncipe), elegendo ‘Weed’ como o segundo melhor tema que anda a ouvir; e a extensa reportagem que a revista online Resident Advisor, considerada a ‘bíblia’ da música electrónica, publicou sobre este fenómeno, intitulando-o The ghetto sound of Lisbon (o som do gueto de Lisboa).
Na sua essência, é exactamente disso que se trata. De sonoridades que só podiam nascer nesta Lisboa multicultural que, apesar de todas os problemas de integração que ainda tem de resolver, cruza influências anglo-saxónicas com heranças luso-africanas. Marfox testemunha isso quase todos os dias. No contacto periódico que mantém com produtores de kuduro angolanos, é frequente a pergunta ‘Como fazes isso?’. “O kuduro aparece em Lisboa com os emigrantes que vinham de Angola e traziam em cassetes o que estava a bater lá. Foi assim que conheci e comecei a ouvir”, conta, acrescentando que quando se aventurou na sua própria música o instinto era copiar o que ouvia made in Angola. “Mas eu vivo em Lisboa, vejo televisão e oiço rádio aqui, como comida de São Tomé, de onde os meus pais são, mas também portuguesa, brasileira, italiana, chinesa… Tudo isso faz com que esteja exposto a influências completamente diferentes do pessoal de Luanda. O engraçado é que eu estou sempre a querer fazer beats como eles em Angola, e de lá estão sempre a perguntar-me como é que faço este kuduro europeu”.
DJ Nigga Fox (Rogério Brandão, 22 anos), que nasceu em Angola e veio para Portugal com três anos, concorda com Marfox. “Cresci a ouvir semba e música do Congo, porque a minha mãe é angolana e o meu pai é congolês. Isso ficou em mim e tiro inspiração daí, mas o que gosto de ouvir é hip hop, house, drum and bass, dubstep, reggae e rap português”. A sua música resulta de uma mescla de todas estas influências e, actualmente, a par de Marfox, Nigga Fox é um dos artistas da Príncipe mais procurados a nível internacional. Já tocou em clubes e festivais um pouco por toda a Europa e, em Junho, estará no Sónar, em Barcelona, um dos mais importantes festivais de música electrónica do mundo. “Conheci o director do Sónar na Polónia, quando fui lá tocar ao [festival] Unsound e quando acabei ele veio ter comigo e disse-me: ‘Tu vais tocar no Sónar’. O Pedro [Gomes] ficou super contente e toda a gente me dava os parabéns, mas na altura ainda não tinha noção da importância do festival”.
Nestes sete meses que está com a Príncipe e tem viajado pela Europa, o estudante de informática tomou igualmente consciência de que o kuduro e África estão na moda. “Vê-se que as pessoas querem perceber o que é”, diz, salientando que esta febre deve-se, e muito, aos Buraka Som Sistema. Marfox concorda: “Em todo o mundo as pessoas não sabiam o que era o kuduro. Era visto como uma coisa de macacos, de pretos, de gente burra, sem ideias. Os primeiros kuduros a aparecer na televisão eram coisas como o ‘Frique Frique’. As pessoas achavam que aquilo era pimba e não levavam a sério”.
Daí a importância da banda de Branko, Conductor, Riot e Kalaf. “Os Buraka educaram as pessoas a ouvir kuduro. Tinham o petróleo em bruto e refinaram-no. Têm esse grande mérito. Mas, por exemplo, o primeiro disco deles, From Buraka to the World, não teve expressão nos bairros. Já havia gente como o DJ Nervoso e eu a fazer kuduro acelerado há muito tempo”.
Para Marfox, a razão do sucesso desta música é tão simples quanto isto: “É quente, obriga-te a dançar. Metes o play e a música enfeitiça as pessoas”. Resta saber se Lisboa está preparada para a integrar a cem por cento. A utopia maior para Marfox é que a Noite Príncipe cresça para lá do MusicBox. Mas o DJ tem muitas reservas: “Crescer para onde? Para que casa?”. A discoteca Lux, arriscámos nós, uma vez que já recebe as Hard Ass Sessions, organizadas por João Barbosa, o Branko dos Buraka. “Será que as pessoas do bairro entram no Lux?”, lança de volta. “Tenho muitas dúvidas. Para isto fazer sentido, o pessoal do bairro não pode ser barrado à porta. Por isso é que estas noites no MusicBox são tão importantes. Ali a noite é livre, a integração é plena”.