Quarenta anos depois de ter sido libertado do Tarrafal, Pedro Martins ainda reconhece o cheiro do seu carrasco. O arquitecto nem precisa estar na Cidade da Praia, onde foi torturado durante um mês pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), ou no Campo de Concentração do Tarrafal, onde esteve preso três anos, para ‘activar’ a memória. «Uma vez, a passear em Nova Iorque, senti o cheiro daquele homem. Saí do passeio, olhei à volta para ver se o via e só depois caí em mim. Um homem daquela natureza nunca estaria nas ruas de Nova Iorque», diz ao SOL o actual presidente da Associação Cabo-Verdiana dos Ex-Presos Políticos e um dos 20 cabo-verdianos que estiveram no Tarrafal.
Sentado numa esplanada da Praia, na ilha de Santiago, Pedro Martins fala pausadamente e num tom muito baixo. Às vezes é tão baixo, que temos de lhe pedir para repetir o que disse. Paciente, recorda que apelidou o agente que o torturou de ‘barba ruço’, «por ser grisalho», ter «um bigode ruço» e um aspecto físico de «torturador profissional». «O cheiro daquele homem tornou-se-me tão característico que ainda hoje poderia distingui-lo perfeitamente».
Se é sem esforço que descreve o agente da PIDE que se apropriou para sempre dos seus sentidos, ainda hoje não consegue precisar como foi denunciado. Tinha 19 anos e militava no Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) há três. Acredita que foi um primo, aliado de Lisboa, que indicou o seu nome, mas nunca conseguiu confirmar a suspeita. «Já estive na Torre do Tombo várias vezes, mas o Spínola mandou queimar muitos documentos». Ainda assim, confia na sua intuição e nos dados que foi relacionando ao longo destes 40 anos para apontar o dedo ao parente, como expõe no livro Testemunho de um Combatente, lançado em 1990.
Como qualquer testemunho de um ex-preso político, tratado desumanamente por desejar a liberdade do seu país, há passagens incómodas no volume, especialmente o capítulo ‘O Período da Tortura’, que contém descrições pormenorizadas da crueldade a que foi sujeito. Ainda assim, Pedro Martins explica que quis escrever o documento biográfico porque acredita ter vivido «com profundidade suficiente» aquele momento histórico «para contar a verdade dos factos». «Tanto que o livro nunca foi contestado», refere, orgulhoso.
Outro motivo para ter concretizado esta edição de autor prende-se com a crença de que, se não forem os ex-presos políticos a contar a história do Tarrafal, ela vai desaparecer. Prova disso, fundamenta, é a sempre adiada decisão de transformar o campo num museu. Com o apoio do político português e seu amigo pessoal Edmundo Pedro – também ele encarcerado no Tarrafal em 1936, com apenas 17 anos -, o arquitecto cabo-verdiano tem defendido que a antiga prisão passe a ser considerada monumento histórico internacional e conseguiu, inclusive, em 2005, que o World Monuments Fund o reconhecesse como uma das 20 infra-estruturas deste carácter em perigo de degradação. «Isso abria a porta à filantropia internacional, mas aqui o pessoal não aproveitou», lamenta.
José Vicente Lopes, jornalista cabo-verdiano e autor de Tarrafal Chão Bom, Memórias e Verdades (2010), confirma o mesmo ao SOL: «Fala-se na sua transformação em museu de memória anticolonial e antifascista, mas tenho de reconhecer que, para a minha gente, entre a intenção e o gesto vai uma grande distância. Estão nisto há 40 anos».
Pagando um ingresso de 100 escudos cabo-verdianos (o equivalente a 1 euro) é possível visitar o campo e constatar, em primeira mão, o estado de degradação para que Pedro Martins alerta. Em entrevista ao Público em 2009, o escritor angolano Luandino Vieira descrevia o complexo, em 1964, como «muito seco, árido». «Aquela montanha à volta, aquela planície, só com umas árvores muito esqueléticas, raquíticas, todas inclinadas para o mesmo lado, porque o vento as obriga». Hoje, a paisagem assim permanece, tendo-se apenas alterado talvez a tinta, devorada pelo tempo. Mas tal como há 40 anos – quando encerrou definitivamente como prisão política, a 1 de Maio de 1974 (data da libertação de Pedro Martins) -, o posto médico, instalado entre os dois edifícios compridos que serviam de celas, continua imaculado. Semelhante é também a presença de vendedoras ambulantes à entrada do campo. Pedro Martins não nos fala nelas, mas Luandino Vieira e Vicente Lopes recordam que era comum estas mulheres locais venderem, entre outras coisas, fruta aos prisioneiros.
São tantas as histórias sobre o Tarrafal, que foi essa multiplicidade que acabou por ditar o nome do livro de Vicente Lopes. Dividido em dois volumes – um com depoimentos e outro narrativo – o livro chama-se Mentiras e Verdades porque, segundo o autor, «sobre o Tarrafal não existe uma, mas sim várias verdades». «Ainda hoje há quem defenda que o Tarrafal era um paraíso e outros que o pintam muito mais negro do que era na realidade».
Pedro Martins – que foi transferido em Março de 1971, depois de permanecer sete meses preso na Cadeira Civil da Praia – descreve-o como «um campo de humilhação constante». «A tortura directa acabou na PIDE. No Tarrafal era uma tortura de outro tipo», diz, listando o primeiro mês e meio que passou «numa cela escura, sem entrar um único raio de luz», o castigo da ‘holandinha’ (nome dado à solitária), onde, com a sua «estatura [tem perto de 1,90 metros] nem curvado cabia», e as manhãs de domingo, quando obrigavam os prisioneiros a «perfilar diante da bandeira portuguesa, símbolo da opressão».
Campo de morte lenta
Criado em 1936 como Colónia Penal, o Tarrafal ficou conhecido como ‘campo da morte lenta’, nome atribuído pelas desumanas condições de clima, alimentação e regime carcerário, marcado, sobretudo, pela extrema violência psicológica. Numa primeira fase – de 1936 a 1954 – o Tarrafal recebeu presos políticos portugueses antifascistas. Sob fortes pressões internacionais, o regime de Salazar encerrou a estrutura quase duas décadas depois de a inaugurar, motivado igualmente pela intenção de Portugal entrar para as Nações Unidas, algo que se concretizou em 1955. Porém, sete anos depois o campo reabriu, desta vez destinado a presos anticolonialistas.
Segundo Vicente Lopes, o Tarrafal reactivou-se em Fevereiro de 1962 «quase como um improviso» para resolver um problema que surgiu em Luanda, com o Processo dos 50 – três processos políticos que se iniciaram em 1959, antes da guerra colonial, com prisões de vários nacionalistas angolanos, entre eles Luandino Vieira. Na altura, o Tarrafal «continuava a funcionar como penitenciária, mas para crimes de delito comum». Desejosos de afastar os prisioneiros do Processo dos 50 de Luanda – ou não fosse a «política repressiva portuguesa adepta de deslocar pessoas do seu meio para outro» – a chegada de 31 angolanos obrigou à criação de duas secções no Tarrafal: a dos presos políticos e a dos civis.
Instalada entretanto a guerra colonial na Guiné-Bissau, «a seguir aos angolanos vieram os guineenses», diz Vicente Lopes, acrescentando que só depois, mas em número bem mais reduzido, chegam os cabo-verdianos. «Inicialmente, os cabo-verdianos são mandados para Angola, mas depois chegam à conclusão que aquilo saía caro». É essa mesma razão económica que afasta os moçambicanos do Tarrafal.
Promovido como um centro de recuperação, «com lavagens cerebrais e outros trabalhos manuais que visavam reabilitar o indivíduo e reintegrá-lo no santo convívio da pátria portuguesa», são os guineenses «os mais irredutíveis». «Eram mesmo convictos da razão por que estavam ali e quando o director fazia a apreciação do preso, confirmando ou não se estava recuperado para ser devolvido à sociedade, os guineenses raramente apareciam como recuperados». Pedro Martins – discípulo de Amílcar Cabral, político guineense criado em Santa Catarina, na ilha de Santiago, a cidade onde o cabo-verdiano nasceu e cresceu – alinhava segundo a convicção guineense. Talvez por isso mesmo, era visto com um homem perigoso e, como tal, constituía um dos alvos preferenciais dos guardas.
Pedro Martins – entretanto formado em arquitectura nos Estados Unidos, país onde exerceu praticamente toda a sua actividade profissional – acredita que deve ao pai a «resistência» com que suportou a tortura física e psicológica. «Era uma pessoa que gostava de disciplina e tentava quebrar os filhos com açoites. Mas a mim chamava-me ’touro-boi’ porque eu nunca chorava e ainda lhe olhava nos olhos. Só depois é que percebi que o meu pai estava numa missão, que aqueles açoites me estavam a preparar para o que ia acontecer. Quando estava a ser torturado pela PIDE e chegava a um ponto em que sentia que ia ceder, dizia a mim mesmo: ‘Se o meu pai nunca me quebrou, não vão ser estes merdas a fazê-lo’». Hoje orgulha-se de ter sido dos poucos que nunca denunciaram um nome à PIDE.