Gisela João: ‘O sucesso obrigou-me a ser mais regrada’

Lançou o disco homónimo em Julho de 2013 e, desde então, passou a estar nas bocas do mundo. Apesar disso, Gisela João diz que o sucesso não alterou substancialmente a sua vida, nem a nível financeiro. A única mudança talvez tenha sido a maior dedicação que dá agora à música, obrigando-se a horários inflexíveis para…

Recebeu o Prémio José Afonso, que distingue o melhor disco nacional do ano. O que significa receber este prémio?

É uma felicidade extrema. É muito bom ver o nosso trabalho reconhecido, fico mesmo feliz. Especialmente porque não estava nada à espera.

Depois do reconhecimento que conquistou em 2013 é mesmo uma surpresa?

Não tenho nada essa política de fazer as coisas à espera de ganhar prémios. Até porque se o fizer, estou sempre com expectativas e depois, se não ganho, fico desiludida. Quando temos expectativas altas, depois nada nos sabe muito bem. Felizmente até agora tem-me sabido tudo muito bem.

Na nota que justifica o prémio, o júri diz que é a melhor voz que apareceu após Amália. Concorda?

Não gosto muito de comparações. A Amália foi a Amália. Foi considerada uma das melhores vozes do século, transcendia qualquer pessoa. Eu não sei se tenho ou não uma voz maravilhosa. O que gosto é de cantar. Acho que cada um tem o seu talento, a sua maneira de ser, a sua maneira de fazer as coisas. A minha é esta, que está no disco e que mostro nos concertos.

Alguma vez se vai conseguir ultrapassar a herança de Amália?

Por um lado, acho que nunca nos devíamos libertar da memória dos grandes artistas, principalmente da Amália quando falamos de fado. Além de ter sido uma cantora extraordinária, foi uma pessoa que criou tendências, abriu portas, mudou a forma de se pensar o fado. A própria Amália, na altura dela, era muito criticada e também deve ter sofrido porque o que ela gostava era de cantar. Por outro lado, acho que as comparações nunca vão deixar de existir porque temos sempre de ter uma medida e, no fado, a Amália é essa medida.

Como se mantêm os pés no chão com vénias destas?

Trabalhando muito. Tenho para mim que quando alguém começa a devanear e a achar que está tudo feito é porque se começou a desleixar. Se estivermos atentos ao trabalho, percebemos que há sempre mais alguma coisa por fazer. Muitas vezes oiço o meu disco e há coisas que hoje já faço diferente. Estamos sempre a crescer enquanto artistas e seres humanos, logo aquilo que fazemos é o reflexo do nosso crescimento interior, humana e artisticamente falando.

Mas não é fácil uma pessoa distrair-se perante tantos elogios?

Para mim não é muito. Sou muito exigente comigo própria. Tenho sempre aqui aquele grilinho, o Grilo Falante do Pinóquio, a morder-me a orelha, a dizer-me ‘tens de fazer melhor, não é assim, isto está, mas ainda não está bem…’.

O álbum saiu em Julho e tem sido um ano cheio de solicitações. É possível destacar a experiência mais incrível que teve desde então?

Há alguns concertos que não me vou esquecer mais. Um deles foi na Festa do Avante!, porque o público é incrível. É uma coisa divinal, passa mesmo para a pele, mal se está a entrar em palco sente-se logo. Depois, antigamente, na maioria dos concertos as pessoas não sabiam quem eu era. Hoje é muito bom ver a quantidade de gente que vai mesmo para me ouvir, que sabe as letras e parece que me conhece um bocado a mim também. Isso tudo é lindo e mágico.

O sucesso alterou-a de alguma forma?

Obrigou-me a ser mais regrada. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, dá muito trabalho cantar. Tenho de abdicar de muita socialização com os amigos e com a família em prol da música. Essa foi a coisa que me alterou mais, aprendi a ter mais regras no meu dia-a-dia, a descansar muito, a ter uns horários inflexíveis para dormir, comer e estar calada.

Porquê calada?

A forma como mais destruímos a garganta é a falar e eu falo que me desunho. Tive que me obrigar a estar calada.

Em Portugal este sucesso reflecte-se, de facto, na melhoria de condições técnicas e financeiras?

Nem por isso. A nível técnico muitas vezes temos a indicação de que está tudo bem com um mês de antecedência e depois, chegamos lá, e não está. Não tem nada a ver com vedetismo, mas preciso de determinadas ferramentas para fazer o meu trabalho, como a qualidade que as pessoas esperam. Quando estamos a cantar dependemos de microfones, de cabos, de coisas que nos são externas. E, muitas vezes, as coisas não estão bem e não conseguimos dar o nosso melhor por causa de algo que não controlamos e eu fico frustradíssima com isso.

E o lado monetário?

Tem de se trabalhar muito! Nós trabalhamos a recibos verdes. Hoje posso ter dois espectáculos e depois passar o resto do ano sem subir ao palco. Nunca sabemos quando vamos receber dinheiro ou não. Às vezes as pessoas têm medo de falar de dinheiro, porque isto é tudo muito bonito, é arte e tal, mas sem dinheiro ninguém vive, ninguém come. Eu não tenho problema em falar de dinheiro e a verdade é que não é de todo fácil. Sinceramente, às vezes ainda dou por mim a pensar na altura em que trabalhava a tempo inteiro e tinha um ordenado fixo ao fim do mês. Pelo menos com aquele sabia que podia contar.

Aquela ideia romantizada de a vida artística ser só luxo é irreal?

É um mito. E depois ainda há aquela parte em que se alguém vir um artista com a mesma roupa em três concertos seguidos, há logo umas bocas. Eu estou-me marimbando, arranjo um trapinho qualquer, dou uns pontinhos e tenho qualquer coisa nova para vestir. Mas isso é outra coisa que não se tem em conta. A malta tem de estar sempre a investir em outras coisas para lá da música e, muitas vezes, são coisas dispendiosas.

alexandra.ho@sol.pt