No domingo, já com as festividades encerradas e antes de grande parte da comitiva de artistas, editores, programadores, agentes e jornalistas regressar aos seus países de origem, Tcheka ofereceu um churrasco na sua terra natal, Ribeira da Barca, uma aldeia piscatória a nordeste da ilha de Santiago, onde ainda hoje a sua família vive. Por isso, em vez de encantar os convidados com a sua voz e o dom para tocar guitarra, a preocupação do músico é tudo menos artística. É o lado humano, a vontade de receber o melhor que sabe “todos estes amigos” que o visitam, que o ocupa agora.
Transportados de Ribeira da Barca para uma praia deserta, com acesso apenas por barco, Tcheka assume a cem por cento o papel de anfitrião. Numa correria constante, controla o peixe pescado nessa manhã pelos locais que repousa no grelhador, garante que todos provam Chã, o vinho produzido na ilha vizinha Fogo, insiste para que mergulhem no mar. E o sorriso que rasga a cara de todos os convidados é a melhor reacção que pode receber. Quando insistem para cantar, o músico afasta-se e vai procurar outro afazer. “Não fiz isto por causa da música”, diz ao SOL. “Quis trazer-vos aqui para perceberem como isto é belo, esta natureza toda”, acrescenta, apontado para a paisagem que o cerca. É fácil perceber que aquele é o seu habitat natural. E vê-lo ali a interagir com os pescadores locais e testemunhar a sua relação umbilical com o mar ajuda a entender ainda melhor a sua música, cujo último disco se chama, precisamente, Dor de Mar.
Esta ligação à sua terra é transversal a todos os artistas cabo-verdianos. Lura comenta várias vezes que durante anos sofreu por não ter nascido no arquipélago. Por sua vez, Neuza nasceu em Santiago, mas diz-se do Fogo, terra de sua mãe, a pessoa que lhe ensinou a amar a ilha vizinha e que nesta tarde de domingo marca o horizonte com a silhueta do seu vulcão. “Somos de onde vem o nosso sangue e a música que fazemos está intimamente ligada à ilha de onde somos”, explica, alguns momentos antes de Nhelas, irmão de Tcheka, a provocar para um despique musical.
“Se tivesse que dormir com uma mulher do Fogo, preferia dormir com uma de Santiago”, canta, provocando reacção imediata de Neuza. “Se é para passar a noite com homem que não presta, prefiro dormir com as formigas que me comem”, responde, gerando uma risada geral.
A probabilidade de se experienciar momentos destes é grande em Cabo Verde. A comunidade musical costuma reunir-se no restaurante Quintal da Música, criado pelos músicos Mário Lúcio (actual ministro da Cultura) e Tété Alhinho há quase 20 anos. Foi lá que vimos, há uma semana, Lura saltar da mesa onde jantava para dançar com as batucadeiras que actuavam e Dany Silva ‘intrometer-se’ na actuação de uma cantora local. O restaurante é ponto de encontro obrigatório e um dos palcos mais cobiçados na cidade, ou não tivesse já servido de trampolim para artistas como Orlando Pantera, que inspirou esta nova geração de músicos que têm em Tcheka, Lura e Mayra Andrade os seus principais embaixadores.
Foi por isso que Cati Freitas fez questão de apresentar ali algumas canções do seu álbum de estreia, Dentro (2013). A cantora portuguesa candidatou-se a actuar na AME – uma feira que atrai nomes fortes da indústria mundial, co-organizada pelo Ministério da Cultura de Cabo Verde, a produtora e editora Harmonia e o fórum mundial Womex –, mas não foi seleccionada. Ainda assim, isso não a impediu de viajar até Cabo Verde e tentar a sua sorte. “Hoje em dia não basta fazer canções e gravar discos. Os artistas têm de estar a par do negócio”, diz ao SOL. E a AME é uma “excelente” feira para se começar. “É pequena, o que permite conhecer gente todos os dias. Na Womex [o mais importante mercado de world music, que anualmente se realiza em Outubro, numa cidade diferente], por exemplo, a concorrência é bem mais feroz. Há muito mais gente e às vezes não se consegue sequer chegar à fala com os agentes mais importantes”, contextualiza a manager Carmo Cruz, da Uguru.
Além de Cati Freitas, Carmo Cruz também representa Aline Frazão, esta sim seleccionada para actuar. A julgar pela reacção dos presentes no showcase da cantora angolana, a deslocação a Cabo Verde valeu a pena. Christine Semba, a delegada do Womex responsável pela AME, confirma isso mesmo ao SOL: “A Aline foi uma das revelações deste ano. Muito pouca gente a conhecia e ficou tudo encantado com ela. Tenho a certeza que vai colher frutos por ter estado aqui”. Outra das revelações que Semba destaca é Dino D’Santiago, o cantor cabo-verdiano que deu nas vistas em Portugal quando participou, há dez anos, no programa da RTP Operação Triunfo. Aplaudido por praticamente todos os presentes, o espectador mais emocionado foi o sul-coreano Jung Hun Lee, director do Festival Ulsan World Music. “Foi maravilhoso. Este é o tipo de artistas que ando sempre à procura. Gente genuína, que canta com a alma. Tenho de o levar ao meu festival em Outubro”, disse ao SOL após o showcase.
Ambos a residir em Lisboa, Aline Frazão e Dino D’Santiago são unânimes a dizer que “não é fácil actuar para uma sala cheia de profissionais”. “Nas primeiras duas músicas senti que isso me estava a afectar. Tive de fazer um esforço para me abstrair e, ao mesmo tempo, conseguir que os presentes também viajassem comigo, se esquecessem de que estavam ali a trabalhar. Correu bem, mas nestas situações é muito fácil correr mal”, frisa Aline.
Para um mercado tão saturado como o da world music, feiras como a AME são fundamentais para qualquer artista se promover. Mas nada é garantido. Ou melhor, a única garantia é a de que o investimento é suportado, na totalidade, pelo artista. Aqui não há cachets, nem passagens de avião pagas. Apenas a vaga promessa de que alguém pode mudar a vida de um artista para sempre.
Apesar de todas estas contingências, o empresário Djô da Silva – figura incontornável em Cabo Verde e conhecido como o homem que revelou Cesária Évora ao mundo – considera indispensável estar-se ali e garante que quando alguém presta atenção a um artista o impacto é enorme. “A prova disso mesmo são dois dos artistas que represento: a Neuza e o Zé Luís”.
No ano zero do evento, em 2012, Zé Luís foi ‘descoberto’ quando cantava num restaurante da Cidade Velha. Aos 59 anos, gravou o primeiro disco e realizou uma digressão pela Europa. Já em 2013, foi a vez de a música deixar de ser um ‘passatempo’ de fim-de-semana para Neuza e tornar-se a sua única ocupação. São só dois exemplos, mas ilustram bem as oportunidades que podem surgir nesta feira e, simultaneamente, também revelam a realidade musical cabo-verdiana. Tenham ou não acesso directo ao AME, todos vêem no certame uma oportunidade. No hotel onde ficou instalada a imprensa estrangeira, um dos empregados aproveitou a oportunidade para divulgar a sua música junto de vários jornalistas, inclusive os portugueses.
O mais inatingível dos bens
Crentes de que a música é o “único recurso natural” do país capaz de alavancar a economia nacional, o Governo está empenhado em torná-la a marca de Cabo Verde no mundo. A_AME foi criada com esse fim e não há governante que esconda a estratégia de marketing: na cerimónia de abertura estiveram presentes seis ministros, incluindo o chefe do Executivo, José Maria Neves, e na de encerramento o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca. A aposta neste caminho para dinamizar a economia nacional é tão forte que, em jeito de balanço, a imprensa estrangeira foi convocada para uma conferência conjunta com Mário Lúcio e a ministra das Finanças e do Planeamento, Cristina Duarte. “Temos uma posição geográfica estratégica no meio do oceano e vamos tirar proveito disso”, diz Cristina Duarte, explicando que o mote da AME é ser, exactamente, um mercado vocacionado para o espaço transatlântico, unindo através da música três continentes: África, Europa e América. “A música é o bem mais intangível que temos, mas vai ser a nossa marca”, reforça em inglês, repetindo a mensagem logo de seguida em francês para garantir que todos a entendem. “É a única hipótese de Cabo Verde!”.
Apesar das convicções da ministra, ninguém sabe exactamente quanto vale esta actividade criativa. De acordo com declarações de Mário Lúcio aos jornalistas locais, citado pela Lusa, o sector que tutela representa 10,6% da força de trabalho de Cabo Verde, emprega mais de 21 mil funcionários, e nos últimos três anos só a música gerou seis milhões de euros de receitas. Mas à imprensa estrangeira Cristina Duarte não é tão especifica. Diz que não há estatísticas especializadas e que grande parte desta economia é informal. “Baseamo-nos nas evidências e temos de ver para lá das estatísticas”.
Outro dos grandes objectivos da tutela é angariar, até 2016, financiamento privado para a AME, evento actualmente suportado quase integralmente pelo Estado. Nesta segunda edição, parte do propósito já foi alcançado, uma vez que houve um apoio substancial da Agência Luxemburguesa de Acção_Cultural. A par disso, o evento duplicou a sua dimensão. Segundo a organização terão passado pela Cidade da Praia cerca de 500 profissionais da indústria musical, entre artistas, produtores, editores, programadores, agentes e jornalistas, oriundos de cerca de 50 países.
Antes sequer de imaginar estes números, o ministro da Cultura afirmou na cerimónia de abertura que a AME é já “a terceira melhor feira de world music do mundo, logo a seguir ao Womex e ao Babelmed”. Christine Semba opta por um discurso mais moderado, mas garante que se no ano passado não conseguiam prever um “sucesso tão rápido”, perante os “excelentes” resultados de 2014 as expectativas para a terceira edição são grandes. De quanto tempo precisará Cabo Verde para transformar a música na sua imagem de marca internacional e viver economicamente dessa aposta, ninguém consegue prever. Para já a única certeza é a de que a música está, efectivamente, embrenhada no ADN de cada cabo-verdiano. No concerto de encerramento do Kriol Jazz Fest, o brasileiro Chico César constatou isso mesmo. Sempre que pedia ao público para o acompanhar num refrão, terminava o tema visivelmente impressionado. “Vocês são todos tão afinados. Não admira que o meu amigo Mário Lúcio queira fazer da Cidade da Praia a capital da world music”.
* em Cabo Verde