Fé na maçã

Num artigo recente publicado no diário britânico Guardian, o escritor norte-americano Jonathan Franzen proclamava, em milhares de caracteres, que era um fã do tradicional PC (computador pessoal da Microsoft, para ser-se mais exacto). O autor de Correcções louvava o seu “conteúdo” em detrimento da “forma”, do apreço pela estética e pouco mais do que isso,…

A indignação tem um motivo forte. É que este engenheiro informático de 50 anos não se limitou a gerir o produto quando se encontrava na marca. Ele foi, e ainda é, um evangelizador da Apple. Ouviu bem: trata-se de uma religião e quem espalha a palavra do Deus Mac e do seu representante na Terra, Steve Jobs, define-se mesmo como alguém que anda pelo mundo a espalhar o evangelho. É ele que assina o prefácio e as notas do mais recente livro sobre o guru da marca, Pensar como Steve Jobs: 27 Lições do Fundador e CEO da Apple para Inovar, de Daniel Smith. 

E se olharmos de perto o fenómeno dos lançamentos dos novos gadgets, ou a relação dos entusiastas com a figura de Steve Jobs, está lá tudo – a Macworld, iniciativa que mostra ao mundo novos produtos, é o templo, onde se reúnem fiéis cujas rezas se limitam a onomatopeias mais ou menos intensas perante as maravilhas dos milagres (os novos aparelhos). Jobs era o profeta e depois da sua morte, a 5 de Outubro de 2011, passou a ser o mártir.

O culto estava montado. Mas por que é uma religião que precisa de apóstolos, ou, para definir com precisão o cargo, evangelizadores? A resposta remonta aos anos 80 do século passado, “um tempo em que a Apple tinha de se impor”, recorda Pedro Aniceto. A marca entrava num mundo em transição radical, que só há pouco tinha abraçado a electrónica e estava numa expansão aceleradíssima. Nem é preciso recordar o que mudou na nossa relação com computadores e com o surgimento dos dispositivos móveis nestes últimos 30 anos… 

Um dos evangelizadores mais famosos, Guy Kawazaki, desempenhou o papel durante alguns anos, a partir de 1983, antes de fundar empresa própria e de integrar, desde o ano passado, a equipa da Google. A empresa nunca mais parou de ter pessoas para este cargo, dentro e fora dos EUA. Aniceto chegou à Apple em Portugal em 1998, já bastante convertido à fé na maçã, mas com muito espaço para surpresas ao longo dos anos. 

E acabou por entrar, como apóstolo ou crente na marca, no campo de distorção da realidade. O termo, tomado de empréstimo à série/filme Star Trek, significa, de uma forma muito simplificada, uma espécie de entrada hipnótica noutra dimensão, perante o carisma de Jobs e a capacidade do líder em fazer os outros acreditarem em tudo o que dizia. Terá sido cunhado em 1981 por Budd Trible, hoje vice-presidente da Tecnologia de Software da Apple.

Pedro Aniceto acabou por sentir o efeito do campo de distorção da realidade. “Houve situações em que eu não conhecia o produto, mas, depois da apresentação, saía louco por tentar vendê-lo”, recorda-se. Esse choque positivo deu-se, por exemplo, com algumas linhas de computadores portáteis, “revolucionárias para o tempo”. E não era só o design ou a facilidade de utilização dos aparelhos que o moviam. Viu, só para dar um exemplo, questões como a ligação por USB – hoje “só as máquinas de lavar ainda não a têm”, nota Aniceto – ou o facto de o sistema operativo não ter mais do que três níveis de submenus para o utilizador, que assim não se ‘perde’.

Acabou por conhecer Jobs mas nunca foi além de uma relação profissional com o ‘guru’. A fama de duro do patrão da Apple é reconhecida. Mas, afirma Aniceto, “ele foi amigo pessoal de pessoas até em meios de distribuição pequenos, como o português” e nos últimos anos tinha perdido essa dureza de carácter. Mas o controlo obsessivo sobre os detalhes da empresa nunca o abandonaria. “Tinha o controlo total sobre todos os aspectos do marketing da marca. É um bocado dogmático, lá está, voltamos à religião”.

Esse mundo obsessivo e quase totalitário valeram-lhe várias críticas em vida. Talvez só as questões laborais lhe tenham escapado: em fábricas de parceiros responsáveis pela linha de montagem de alguns dos seus aparelhos móveis, como a Foxconn, na China, há quem se suicide devido às condições de trabalho.

Essa linha de convicções muito fortes e até dogmáticas ter-se-á perdido com a ascensão de Tim Cook a CEO da marca. Mas o carisma fica. Pedro Aniceto diz-se privilegiado não só por ter participado nesse conjunto de grandes revoluções ao longo dos anos, mas também por ter vivido essa transição alucinante no mundo da informática. “Quando estava a estudar, tudo estava no início”, recorda-se. E nunca pensou, ao sair da escola industrial onde tirou o curso, que iria conhecer de perto o trabalho de Jobs, alguém “que persistentemente e com épicas doses de mau feitio reinventou diversos aspectos das nossas vidas”, como escreve nas notas ao livro.

ricardo.nabais@sol.pt