O agravamento das carências reflecte-se em todas as respostas sociais, a maioria já sem capacidade para atender tantos pedidos, reconhecem os técnicos ouvidos pelo SOL. “A principal necessidade dos que nos procuram é a alimentação. Após tantos anos de intervenção social, isto revela um retrocesso social enorme. Quando estávamos quase a deixar de 'trabalhar o pão', voltámos ao patamar mais baixo”, alerta Ana Martins, responsável pela Acção Social da AMI (Assistência Médica Internacional).
Os dados recolhidos pelo SOL são preocupantes: 410 mil pessoas apoiadas através de 21 bancos alimentares (com cabaz ou através de refeições servidas nas instituições), 49 mil através das cantinas criadas pelo Programa de Emergência Alimentar do Governo, 13 mil pela AMI, sete mil da Dariacordar (movimento Zero Desperdício), seis mil do Centro de Apoio a Sem-Abrigo (CASA), 845 da Re-food (cidadãos que recolhem sobras), e mais duas mil da Cáritas de Coimbra. Isto sem contar com o apoio das restantes Cáritas, da Cruz Vermelha e de muitos outros.
Parcerias evitam repetições
Há ainda 134 mil famílias que em 2013 receberam produtos do Programa Comunitário Alimentar de Ajuda a Carenciados – que entretanto acabou e foi substituído por um fundo com dotação para Portugal de 157 milhões de euros, até 2020. Mas como estes alimentos foram distribuídos por entidades já referidas, algumas pessoas apoiadas entram nos dados anteriores.
A tentativa de “não alimentar duas vezes a mesma pessoa mas cada uma na medida da sua necessidade” – como diz Hunter Halder, que criou a Re-food – é uma preocupação manifestada pelos agentes no terreno ouvidos pelo SOL. Mas, mesmo com o esforço crescente para trabalhar em parceria, é difícil de levar à letra – como reconhece Nuno Jardim, presidente do CASA, que apoia utentes que lhes pedem ajuda directamente e outros encaminhados por juntas de freguesias e instituições. “Sabemos que algumas pessoas que apoiamos também têm cabaz alimentar, mas desde que precisem e não seja além do necessário, não nos opomos”, diz.
A expansão do CASA ilustra bem o agravamento da fome. Em 2007, começou por ser um movimento de distribuição diária de refeições aos sem-abrigo de Lisboa e hoje, entre as seis mil pessoas apoiadas, quatro mil são de famílias que vão buscar semanalmente um cabaz para cozinhar em casa ou refeições já confeccionadas pelos voluntários e dadas em locais fixos em várias cidades. São desempregados, famílias com filhos pequenos e salários baixos ou rendimentos quase inexistentes, beneficiários do rendimento social de inserção, idosos com pensões baixas ou agregados monoparentais. “Há de tudo. E há ainda um número crescente de pessoas que vão às carrinhas da rua buscar refeições e não são sem-abrigo”, explica Nuno Jardim.
Embora haja sobreposições, os dados recolhidos também não expressam o universo dos apoiados, acredita Isabel Jonet. A presidente do Banco Alimentar – que leva a cabo mais uma campanha de angariação nos supermercados, no próximo fim-de-semana (31 de Maio e 1 de Junho) – diz que surgiram muitos grupos informais que apoiam famílias nos bairros e paróquias, levando alimentos a “pobres conhecidos”.
Ana Paula Cordeiro, da Cáritas de Coimbra, também considera que “as pessoas estão mais sensíveis aos outros” e, por isso, contribuem com mais dádivas. Na diocese, há várias respostas, desde os cabazes do Banco Alimentar às cantinas, sendo que parte dos alimentos dados nos cinco centros de apoio social – que só atendem emergências – vêm de privados. Mas a procura não pára de aumentar: “Estamos a ter muitos segundos pedidos, de pessoas que já se tinham autonomizado e agora voltaram”.
Um 'exército' de voluntários
Sensibilizados com o impacto da crise, nos últimos anos muitos cidadãos organizaram-se em acções que evitam que todos os dias milhares de refeições vão para o lixo ao mesmo tempo que a fome aumenta.
“Não se acaba com o desperdício alimentar indo só aos grandes. É preciso agir ao nível micro, local, com um exército de voluntários em que cada um, só em duas horas, recolhe comida para 10 pessoas” – diz o criador da Re-food, sublinhando a auto-sustentabilidade da iniciativa. Na sua bicicleta, Hunter começou a recolher sozinho as sobras de restaurantes em Lisboa. Três anos depois, há dez núcleos de entrega de refeições e mais de 20 novas equipas a nascer por todo país.
Ana Martins, da AMI, enaltece a boa vontade e o esforço dos cidadãos, mas questiona a eficácia. “Devia haver coordenação de esforços para que estas respostas não fossem pontuais. E o apoio alimentar fosse só o início da intervenção social”, alerta. Dar refeições na rua ou nas cantinas sociais, critica, “não é uma medida inclusiva”. Pelo contrário, “cozinhar um frango e comê-lo em família saía mais barato e criava outras dinâmicas essenciais”, defende. A técnica da AMI lança ainda a pergunta: “Que geração de pobres está a crise a criar?”
As estatísticas que falam da redução do desemprego e da retoma económica não têm expressão na vida das famílias, garante Ana Martins. “Pelo menos dos pobres e da classe média. Nem sei de que retoma o Governo fala… Não é a retoma social, de certeza”, diz a responsável da AMI.
Isabel Jonet também assegura que “as famílias vivem muito pior e que a procura de ajuda é maior”, acrescentando que 2013 foi um ano mau, em que se distribuíram menos 30% de produtos. “Em parte, isso foi porque a indústria redimensionou a sua produção e deixou de haver excedentes. Este ano, as coisas estão diferentes. O nosso armazém já começou a mexer de novo”.