Acaba de lançar O Chamador (ed. Quetzal), o seu primeiro romance. Porquê agora?
A decisão de publicar ficção não é de agora. Não havia uma decisão concreta, mas havia o desejo. Simplesmente esse desejo era caldeado por um conjunto de obrigações de nível profissional que levava a uma escrita demasiado formatada e também a minha própria vinculação institucional inibia-me de fazer uma aproximação livre à ficção. No momento em que me desprendi desses compromissos institucionais, achei que era altura de fazer a experiência. Não sou alguém que chegou à condição de aposentado e, para ocupar os tempos livres, decidiu começar a escrever.
O exercício da escrita de ficção já existia na sua vida?
Existiam pequenos apontamentos sem relevo, que me permitiram experimentar a mão. Depois foi afrontar o desafio que estava construído na minha cabeça e passá-lo para o papel.
Este livro fê-lo perceber que ainda é possível, nesta fase da vida, experienciar o medo da estreia?
Completamente. O que aliás não é estranho para mim. Valorizo muito a ideia de começo e tenho a ideia de que a vida é um começo permanente. É nessa medida que privilegio mais o futuro do que o passado e é por isso que agora costumo dizer, meio a brincar, que me considero um jovem escritor com um grande futuro atrás de mim. Nessa medida gostaria de assumir que este é o começo de uma carreira de escritor, que não sei se vai acontecer, porque não é a mim que me compete decidir. Não é escritor quem quer, é escritor quem é reconhecido como tal. Mas gostava que este livro não fosse um acto único. Tudo depende agora do talento e do reconhecimento deste livro. Mas não o escrevi para ganhar o Nobel, por isso, se chegar à conclusão de que é melhor fazer outras coisas, fá-las-ei.
Quem o acompanhou neste processo?
A família, porque ia lendo em voz alta, mas fora da família mostrei a duas pessoas, que são absolutamente credíveis porque são afectivamente próximas, mas também têm uma distância crítica. Do ponto de vista da escrita foi a escritora e jornalista Patrícia Reis, que é muito firme na crítica e cuja apreciação e incentivo foram importantes. Numa perspectiva diferente, porque queria alguém do meu meio, foi com o juiz conselheiro Marques Vidal, de quem sou amigo e que já publicou romances.
O que há neste O Chamador da sua vida?
Acho que há muitíssimo de mim, embora O Chamador não seja um livro de memórias. Mas o livro nasce de uma interrogação minha que tem a ver com a consciência de que há uma imensidade brutal de pessoas que nascem, vivem e morrem e ninguém sabe delas. São pessoas, entre aspas, sem importância. Mas só são sem importância porque não se conhecem, porque são pessoas com uma interioridade fantástica. Pareceu-me um excelente tema numa abordagem ficcionada como esta. E fazendo-o como? Indo ao alfabeto e encontrando uma pessoa para cada letra, com o compromisso de que cada uma dessas pessoas é real e que as tinha conhecido eu ou por interposta pessoa. Daí dizer que qualquer semelhança com os nomes destas pessoas é pura realidade. Os nomes são estes, o que há de essencial no retrato psicológico e físico corresponde à verdade. Onde entra a ficção? Nos factos tal como aconteceram, pois essa é a forma que tenho de universalizar estas pessoas. Para tal encontrei um narrador capaz de criar fantasia: um encenador teatral, que pega na realidade como se fosse um texto e encena a vida destas pessoas. Cria-se outra dimensão da verdade. O Nestor, por exemplo, até é conhecido nos Açores, mas foi muito pouco conhecido como o grande actor que poderia ter sido. Lembro-me de o ver, e tenho dele a imagem do grande actor que teria sido, e portanto ponho-o a ter representado o Prometeu, coisa que ele nunca fez. É a possibilidade da verdade.
Informou estas pessoas que seriam protagonistas do seu livro?
Não. A maior parte já morreu. Estão vivos a Isaura e o Nestor, que está numa situação de saúde complicada. Estará viva a Tininha, uma artista de circo, mas que não consegui localizar, e o Gaio, que era um sem-abrigo, imagino que tenha morrido pois nunca mais o vi nos sítios onde nos sentávamos a conversar. Falei com o Nestor antes da publicação e depois ele falou comigo, tornando-me um dos raríssimos autores que recebe um telefonema de uma das suas personagens.
Que relações tinha com essas pessoas, por exemplo com o sem-abrigo que acaba de referir?
Comecei por conhecê-lo como arrumador de automóveis e encontrei-o mais tarde como sem-abrigo. Encontrei-o numa zona onde trabalhava e, às vezes, quando saía, sentava-me com ele a conversar. Fomos conversando. Aliás, eu ia-o ouvindo. Tudo o que ele dizia dele era completa efabulação. Outros, como o Almeida e o Carlinhos, por exemplo, eram presos que conheci no exercício das minhas funções, no tribunal.
Todas estas figuras se tornam personagens da sua encenação. Este livro é uma homenagem ao seu amor pelo teatro?
É uma vivência dessa minha paixão. Sou um apaixonado pelo teatro. E o livro surge numa fase da vida em que sou capaz de pegar nas minhas emoções e lidar livremente com elas. Sinto-me sem qualquer compromisso e portanto todo o risco é meu e todas as consequências do risco reflectem-se exclusivamente em mim. Por isso posso fazê-lo com naturalidade. E por isso vou repescar o teatro como paixão e pelo desejo de ter sido encenador.
Encenador e não actor?
Nunca tive o desejo de ser actor. Tive sempre a consciência que poderia ter aquele jeitinho mínimo, representei várias vezes, mas não teria o talento para poder realizar-me como actor. Tive sempre o desejo de ser encenador e por isso fui sempre estudando teatro. Gosto de ter uma visão racional do teatro e não apenas emocional, apesar de, quando assisto a uma peça, sou como um tiffosi a assistir a um jogo de futebol: dou pontapés e cabeçadas a ver se a bola entra. Sempre defendi, sobretudo quando era responsável pela formação de magistrados, que o teatro, a justiça, a filosofia e a democracia têm uma base comum histórico-cultural.
Por isso dizia aos seus alunos do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) que um julgamento era uma peça de teatro?
O que dizia era que um palco é sempre um tribunal, mas um tribunal também é sempre um palco. Se vir a história da geometria de cena e a história da geometria da sala de audiências, por exemplo, a sala de audiências tal como a conhecemos hoje, nasce quando, no teatro, se parte do palco Isabelino redondo para o palco italiano. Se nos sentarmos numa sala de audiências e formos acompanhando os movimentos, a maneira como as pessoas circulam tem muito a ver com aquilo que é a circulação tradicional num palco. Além disto, a justiça tal como a conhecemos modernamente nasceu na Grécia com toda a obra de Ésquilo. A partir daqui temos uma justiça do contraditório que é a que temos hoje. Por isso digo que um verdadeiro magistrado tem de ser conhecedor de teatro.
Como é que os alunos reagiam a essa comparação?
Muitos não tinham esta perspectiva, mas reagiam muito bem. Inclusivamente nas simulações faziam peças de teatro que tinham actos qualificados como crime, trabalhavam o crime e depois faziam a simulação a partir do texto da própria peça. Além disto, iam assistir a várias peças no Teatro Aberto, na Comuna, na Barraca, no Nacional… Além disto, havia uma coisa que inicialmente até foi difícil de compreender cá fora, que era uma certa aproximação ao estudo do Brecht e ao chamado efeito de estranhamento, que é muito importante para que um juiz perceba como deve treinar a distanciação das emoções e dos factos que encontra, e como é que duvida das evidências.
Cresceu na Nazaré. Foi aí que começou essa paixão pelo teatro?
Vivi na Nazaré até à universidade. Foi ali que criei as primeiras amizades, aquelas que ficam para a vida. No meu tempo de menino e moço, quando comecei a escola, havia a escola dos pescadores e a escola da dona Virgínia, para onde iam os pés calçados. Os meus pais entenderam que eu devia ir para a escola dos pescadores e andei sempre com eles. Ainda hoje tenho amigos pescadores. O Eustáquio do meu livro, por exemplo, é um deles. Lembro-me do Carnaval da Nazaré, que era muito pobre, mas de uma imaginação fantástica. Toda aquela gente passava o ano a pensar no Carnaval e a 4.ª-feira de cinzas era uma tristeza colectiva. Desde muito pequeno que participei nos teatros e no Carnaval.
Que idade tinha quando fez a primeira peça?
Foi na quarta classe, fiz uma pequena coisa num teatro de garagem. No Carnaval havia as cegadas, pequenas representações muito jocosas, feitas apenas por homens. As mais tradicionais eram feitas por pescadores. Quando estava no liceu, começámos a fazer as cegadas dos estudantes e assim nasceu o Grupo de Teatro na Nazaré, que representou durante vários anos. As duas primeiras casas do primeiro bairro social da Nazaré foram construídas com o dinheiro dos nossos espectáculos. Fazíamos coisas avançadas para a altura, como Luís Francisco Rebelo ou José Régio, e compensávamos com outras coisas mais divertidas. Representei muito nessa altura. Simultaneamente também era desportista, jogava futebol, era guarda-redes. Cheguei a ser campeão nacional universitário, na Universidade de Coimbra.
Em que momento opta pelo direito, deixando para trás o teatro?
Faço isso exactamente no mesmo momento, é curioso. Quando acabei o ensino secundário, a família questionou-me sobre o que queria fazer. E o que eu queria era seguir teatro. Quando disse que queria seguir teatro, o meu pai disse-me: 'Se é o que queres, vai'. Não tive nenhuma luta com a família, o que foi terrível porque fiquei completamente sozinho com a responsabilidade da minha escolha. A justiça também me desafiava, era um espaço que queria explorar e conhecer e disse: 'Para o teatro não vou, vou para a justiça'. Nunca disse que ia para direito, disse sempre que ia para a justiça. Não foi nenhuma frustração não seguir teatro. Estamos a falar de 1960 e, nessa altura, era complicado fazer uma opção pelo teatro. Primeiro porque não havia nenhuma segurança, depois porque estávamos em pleno Estado Novo, numa situação em que o teatro estava muito limitado.
Nunca mais fez teatro?
Podia ter feito teatro em Coimbra, quer no TEUC quer no CITAC, companhias que na altura estavam com muita pujança. Mas acabei por andar por outras coisas. Até porque entendi que, a partir do momento em que fiz uma opção que não era o teatro, aquilo seria uma espécie de compensação, e essas coisas não têm compensação. Fazem-se ou não.
E Coimbra oferecia muitas distracções…
Sim, e tinha sobretudo o empolgamento da passagem de uma academia boémia para uma academia comprometida politicamente. Essa passagem foi vivida por mim intensamente.
Onde se sentia mais confortável: na academia boémia ou na política?
Fiz um pouco as duas, embora nunca tenha feito a boémia no lado duro da boémia. Fiz uma academia divertida. Havia um conjunto de propostas alternativas que fazia com que nós saíssemos da universidade formados, não apenas pelo trajecto académico que a universidade formalmente nos dava, mas também pela vida que se levava dentro desse tempo dos estudos. E esse tempo permitia muitíssima coisa, como o lado mais boémio que permitia algo que me parece importante e que é a transgressão no tempo em que ela é saudável. O jovem que não transgride é um adulto mal formado. A própria transgressão tem limites, mas o treino da transgressão é importante para percebermos a importância da norma. O lado mais livre da academia conduzia para aí. Mas depois havia o outro lado que era o da formação cívica e da intervenção, num tempo em que isso era arriscado. Vivi o tempo todo da afirmação da Geração de 60, ao mesmo tempo que convivia com os discos dos Beatles…
Nessas vivências viu muitos amigos serem detidos? Nunca se sentiu nessa iminência?
Tenho muito pudor em falar disso porque não posso comparar os pequenos episódios que se passaram comigo com os grandes episódios que se passaram com os outros. Mas sim, também fui preso no dia do estudante, em Lisboa, em 1962. Mas fui metido nas carrinhas da polícia e recambiado para Coimbra e depois fiquei sob vigilância. Isto não é nada. Tive uma outra situação mais complicada com a PIDE mas através de uma artimanha foi possível ultrapassar sem sequelas graves.
Que situação foi essa?
Fazia alguns textos humorísticos, normalmente de natureza política, para os saraus académicos. A certa altura entendeu-se que me tinha metido de uma forma inadmissível com o senhor Presidente do Conselho. Consegui libertar-me porque havia um maestro do Orfeão de Coimbra que tinha a mesma idade e eu disse que aquilo era com ele e não com o Presidente do Conselho. E assim evitei que as consequências fossem piores. Evidentemente que houve perseguições, banhos de mangueira, as vigilâncias na casa de estudantes, que ainda por cima era perto da PIDE. Esse ambiente foi vivido intensamente, mas havia muitos que estavam na fila da frente e esses foram verdadeiramente os sofredores.
A consciência política e do regime veio da casa dos seus pais?
Sim, embora com uma contenção curiosa. Eu vivia em casa dos meus pais, na Nazaré, paredes meias com os meus avós maternos. O meu avô materno tinha sido um homem da Implantação da República e era um republicano convicto e anticlerical, que esteve à frente do Movimento União Republicana, na Nazaré. É ele quem, na Implantação da República, envia um telegrama a António José de Almeida, com um texto magnífico: 'Padre preso. Viva a liberdade!'. Este era o avô que marcava a imagem do republicano na família, era comerciante, fotógrafo amador premiado, um homem muito honesto e vertical. Transportou sempre um pensamento que não o colocava numa especial afeição relativamente ao regime. Lembro-me de um pintor, o Guilherme Filipe, que de vez em quando dormia no sótão lá de casa e não podia ver os desenhos dele. Só mais tarde percebi que ele era do Partido Comunista e trazia comunicados. O meu avô abrigava-o e dizia: 'Nunca devemos deixar que nada se sobreponha a uma amizade verdadeira'. Além disto, o meu avô tinha um filho, irmão da minha mãe, que seguiu a carreira diplomática, e isso criava uma grande contenção ao meu avô. Esse meu tio, por sua vez, tinha uma ligação institucional ao regime, mas era ele próprio um republicano, e portanto nunca se inscreveu na União Nacional, coisa que nunca foi bem vista no regime – só mais tarde chegou a embaixador. Por sua vez, o meu pai era funcionário público. Apoiava as minhas atitudes em Coimbra, mas em segredo, porque vivíamos do trabalho dele, pois a minha mãe era doméstica. Havia uma restrição na manifestação pública do que se pensava, mas cresci a perceber que havia melhor pensamento do que aquele que estava instituído. Ainda no liceu, fui criando um pensamento que era claramente da oposição e em Coimbra isso expandiu-se. Lembro-me que apareci na Nazaré uma vez ou duas de capa e batina de luto académico, o que criou algumas dificuldades ao meu pai que, no entanto, me disse: 'Tu nunca deixes de vir assim, não te preocupes comigo'.
A frase do seu avô, que valoriza a importância de uma amizade verdadeira, influenciou-o quando disse que não ficou com amizades na política?
Não. Em primeiro lugar é necessário dizer isto: não tenho nenhuma visão negativa da minha passagem pela política. Não tenho nenhum arrependimento. Evidentemente que houve algumas desavenças e conflitos, mas isso faz parte da política. Quando digo que não fiz grandes amizades é pela natureza das coisas: estamos muito envolvidos no que estamos a fazer, a maior parte das pessoas não as conhecia, só passei a conhecê-las ali. Temos uma boa relação, simplesmente não criei nenhuma amizade verdadeiramente vinculada ou de confidência. A não ser com o Dr. Fernando Nogueira, com quem já tinha uma relação. Quando digo que não fiz grandes amizades também serve para dizer que tenho da amizade um conceito exigente. Mas não tenho inimizades feitas na política.
Quando se dá o 25 de Abril, já tinha terminado o curso e trabalhava?
Era juiz. Começo como delegado do Procurador da República em Seia, no Fundão e em Santarém. Depois faço o concurso para juiz e sou colocado nas comarcas de Oliveira do Hospital e Tábua. Quando se dá o 25 de Abril, tinha sido convidado para ser Procurador da República em Coimbra. Na altura era por convite que se entrava nos quadros superiores do Ministério Público. Vou para Coimbra a 25 de Abril de 1974.
Como foi essa viagem?
Devo ter sido dos últimos portugueses a saber que tinha havido uma revolução. Na véspera, à noite, tinha metido tudo dentro dos caixotes para ir para Coimbra e portanto não tinha televisão nem rádio. Por volta do meio-dia saí de casa e toda a gente falava de uma revolução, mas eu não dei muita importância. Até que alguém me diz: 'Mas o que é que se passa com o juiz que não liga nenhuma ao que se está a passar?'. É nesta altura que percebo que se tinha dado a revolução. Mais tarde estava à espera de um senhor de uma carrinha de transportes que ia lá buscar os caixotes e ele não aparecia. Telefonei-lhe e ele disse-me que não ia por causa da revolução. E eu disse que não havia problema que eu ia à frente e se houvesse alguma coisa eu dizia que era juiz. E ele só me respondeu: 'Isso era dantes, senhor Dr.'. Foi nesta altura que percebi que tinha mesmo havido uma revolução. Mas mesmo assim ainda fui para Coimbra.
Como passou os primeiros dias?
Lembro-me que cheguei à casa que tinha arrendado, não tirei nada dos caixotes, apenas a televisão, e fiquei a noite toda a ver o que era aquilo e com uma vontade imensa de vir para a rua aos saltos. Depois ainda fui festejar.
Em 1990 foi convidado para Secretário de Estado da Administração Judiciária, no Governo de Cavaco Silva. A política era um desejo que alimentava?
Não, apesar de muitos entenderem que eu queria fazer uma entrada na política. Mas eu não tinha essa perspectiva. Eu era director do Centro de Estudos Judiciários há dez anos e a comissão de serviço terminaria em Setembro de 1990. Já tinha dado conta ao então ministro da Justiça, Fernando Nogueira, de que não renovaria a comissão porque sempre entendi que lugares destes não se ocupam por mais de dez anos e o CEJ já estava muito fulanizado, era muito o centro do Laborinho Lúcio, para o bem e para o mal. Entendi que terminava ali e regressaria à magistratura. Mas em Janeiro há um dia em que o Dr. Fernando Nogueira me chama e diz-me: 'Você tem um discurso sobre a justiça e queria que o viesse executar. Vou criar uma Secretaria de Estado para lhe dar este pelouro'. Disse-lhe que nunca tinha votado PSD, ao que ele respondeu: 'Não faz mal, vota a partir de agora'. Reforcei que era independente, mas ele disse que um dia mais tarde me inscreveria. Votar, votei. Mas nunca me inscrevi. Fui sempre independente. E lembro-me de ainda ter colocado uma outra questão: 'Se me convida para executar o meu discurso, terei condições políticas para o executar?', ao que me respondeu que sim. Pedi tempo para pensar e ao fim de 24 horas disse que sim.
Nem dois meses depois passa a ministro…
Dois meses depois há a saída do então ministro da Defesa, Fernando Nogueira passa para essa pasta e Cavaco Silva chama-me ao gabinete e diz que gostava que eu fosse ministro da Justiça, reafirmando as mesmas condições que o Fernando Nogueira já me tinha garantido. Aceitei. Efectivamente nunca me foram negadas condições políticas para exercer as funções de ministro da Justiça, inclusivamente houve aspectos em que tenho noção de que as opções tomadas não seriam as que viriam de uma vertente maioritária do partido, mas isso não levantou qualquer problema. Nunca tive de recuar nas coisas essenciais, nunca tive de pôr em causa o meu pensamento. Se isso acontecesse teria saído discretamente. Claro que houve divergências, mas em coisas mais acessórias.
Portanto, os tempos na política não lhe deixaram recordações amargas?
Tenho recordações difíceis. Tenho a sensação de algumas injustiças e de grandes incompreensões relativamente aos objectivos que defini atingir. E tenho a amargura de, umas vezes por incapacidade minha, outras por entropias colocadas por outros, não ter ido mais longe naquilo que queria que tivesse sido a reforma da justiça. Mas julgo que isso é comum a todas as pessoas que têm vontade de mudar as coisas. Mudou-se muito, mas não se mudou tudo quanto era necessário.
Como vê as reformas actuais da justiça?
Tenho sempre alguma contenção quando faço uma apreciação sobre as reformas da justiça. Exerci funções de ministro e por isso o primeiro aspecto que é preciso referir quando sou chamado a ter uma opinião é dizer que também tenho responsabilidade naquilo que não funciona bem na justiça em Portugal. Não me coloco como um oráculo que vem debitar um discurso sobre a justiça. Relativamente ao que está a acontecer, julgo que há modificações significativas que é importante aplaudir. Mas tenho alguma preocupação com uma reforma essencial: a do mapa judiciário.
Porquê?
Tenho muito receio que, depois de tanta discussão à volta dessa reforma e depois de tantas emendas e alterações, estejamos no ponto de fazer funcionar um modelo que corre o risco de não atingir os objectivos. Receio que esta possa ser uma oportunidade perdida. Costumo dizer que, se o Governo quiser aceitar que esta reforma é uma peça de um Lego, mas não é o Lego completo, é de apoiar. Se me disserem que esta é a reforma, ponto final, tenho reservas.
Disse que era necessário rever a Constituição e reforçar o poder dos juízes. Em contrapartida há, hoje em dia, a sensação de que os juízes foram considerados o inimigo número um deste Governo e que devem ser esvaziados de poderes.
Não digo que tem de haver um aumento de poder dos juízes e que para isso tem de haver uma revisão constitucional. O que eu digo é que o aumento do poder do juiz é uma evidência. Pela natureza das coisas, os juízes vão ter cada vez mais poder e é necessário que sejam mais responsabilizados. Já não podemos continuar a dizer que a justiça é responsável pelo atraso no desenvolvimento económico sem considerar que então a justiça faz parte da actividade estratégica do Estado. E, se faz parte, há uma componente política no funcionamento da justiça. Não é na decisão dos processos, mas na gestão do sistema de justiça. Esta gestão está entregue maioritariamente aos magistrados e não deve estar. É aqui que entendo que a Constituição tem de ser revista. Para criarmos um órgão que se responsabilize pela gestão do sistema de justiça e que o faça envolvendo Presidente da República, Governo, Assembleia e magistratura.
É legítimo que o Governo se refira aos juízes do Tribunal Constitucional como inimigos?
Dizer que os juízes são os inimigos não é legítimo. Mas o Governo dizer que as decisões do Tribunal Constitucional impedem que o Governo caminhe num certo sentido, é legítimo. O problema é saber se tem razão ou não. Pessoalmente entendo que não. Devo dizer que não sou nada estimulado pela ideia da pressão sobre os tribunais. Acho que os tribunais existem também para ser pressionados. Não podem é deixar-se pressionar. E não podem decidir de acordo com essas pressões. Agora, num estado de direito, os tribunais existem, são independentes e as decisões têm de ser respeitadas. Podem ser criticadas, desde que mantendo o respeito pela instituição. Admito que, num caso ou noutro, isso possa ter sido ultrapassado e, nesses casos, não estou de acordo.
O cidadão Laborinho Lúcio confia na justiça portuguesa?
Confia. Embora tenha cada vez mais a ideia de que é necessário dar instrumentos para aumentar a eficácia e criar condições para a maior responsabilização. Pode correr-se o risco de, a certa altura, deixarmos de confiar.
Não estamos já nesse limiar?
Diria que estamos. Temos é de saber se estamos com razão ou sem razão. Julgo que neste momento já há um descrédito significativo da justiça. Na minha opinião não há motivo substancial para esse descrédito existir, mas há motivos externos para que isso aconteça. As situações das prescrições, por exemplo. Há sempre uma multiplicidade de razões que conduzem às prescrições. Simplesmente temos a ideia de que, como quem decide é o tribunal, tem de ser o tribunal responsabilizado. Por outro lado, o tribunal diz que não tem responsabilidade nenhuma. E este discurso não leva a lado nenhum. É evidente que os tribunais têm responsabilidades nas prescrições, mas a legislação também terá, tal como as entidades bancárias.
Para os portugueses que ouvem notícias como a prescrição da multa de um milhão de euros aplicada ao fundador do BCP, Jardim Gonçalves, o que acabou de dizer traduz-se em muito pouco.
Traduz-se em descrédito no funcionamento da justiça. Temos de ser capazes de gerir a comunicação no sentido de demonstrar às pessoas que temos razão. E há outro aspecto que é importante que não deixemos desaparecer do nosso espírito: temos uma carga muito grande do período anterior a 1974 e temos uma atávica desconfiança do Estado. Precisamos de transformar isso e instalar uma cultura de ligação identitária às nossas instituições. Não temos ligação afectiva às instituições e isto é fundamental para a saúde da democracia.
Falta saúde à nossa democracia?
Falta imensa saúde à nossa democracia. Os partidos políticos têm de se auto-repensar urgentemente e as instituições têm de compreender que, independentemente de terem razão, têm de explicar aos outros essa razão. O jogo de passagem de culpas conduz a dois resultados: nunca se sabe quem tem responsabilidade e a comunidade não confia nas instituições.
Sente-se desiludido com o PSD?
Não tenho hoje ligação a partido nenhum… Não estou particularmente encantado com o que se passa com a política no nosso país. Mas exerci funções na política e por isso não serei eu a fazer uma crítica. Tenho hoje grandes preocupações relativamente ao que se está a passar, nomeadamente em termos de coesão social e em matéria de educação.
Recentemente Durão Barroso defendeu a escola pública salazarista.
Não foi exactamente isso que ele disse, mas de todo o modo é preciso ter muito cuidado com esse tipo de afirmações. Não podemos usar a escola para fazer engenharia social. E tenho muito receio que isso esteja a acontecer. O Estado que cria ensino obrigatório tem o dever de incluir todos os alunos. Não se pode obrigar alguém a entrar num espaço que, a seguir, o exclui.
O que se pode esperar do futuro de um país que encara o ensino dessa forma que descreve?
Tudo depende daquilo que esperemos do futuro. Se quisermos reganhar um espaço de afirmação e de esperança das pessoas, o caminho tem de ser caldeado com outro tipo de medidas. Não podemos encetar um caminho no qual consideremos natural irmos deixando cada vez mais concidadãos fora do espaço, promovendo cidadãos de primeira e de segunda. Até nas corridas de bicicletas o que desiste tem o carro vassoura. Não podemos seguir um caminho social e político no qual os que desistem ou são obrigados a desistir fiquem deitados na valeta sem ninguém que lhes dê uma outra oportunidade.
E são encarados como comodistas por desistirem.
Sobretudo os que desistem indo embora.
Estamos preparados para a saída da troika nos moldes que o Governo anunciou?
Tenho a noção de que agimos como burocratas. Colocámo-nos perante deveres que definimos e burocraticamente procurámos cumprir esses deveres. Se a saída da Troika for a continuação de uma atitude burocrática, não alimento nenhuma esperança sólida de futuro. Se a política não regressar e se se continuar a entender que devemos ser burocratas perante o mundo exterior, então não tenho grande esperança.
Esteve sempre muito ligado à discussão dos direitos das crianças, tendo mesmo dito em tempos que 'uma criança feliz é uma criança adoptada', no sentido em que deve haver uma adopção de amor. Como vê a discussão da adopção homossexual?
Entendo que os homossexuais não têm o direito de adoptar. Da mesma maneira que os heterossexuais também não têm o direito de adoptar. Não há o direito de adoptar. Há o direito de ser adoptado. E o direito de ser adoptado casa-se com o princípio fundamental que justifica a adopção: a realização do superior interesse da criança. Se uma criança, que carece de ser adoptada, vê satisfeito o seu superior interesse se for adoptado por homossexuais, não vejo por que não há-de ser.
Tem dois filhos adoptados. O que motivou essa decisão?
Adoptei porque quis e porque acho que a adopção é uma forma diferente de ter filhos. Tenho dois filhos biológicos do meu primeiro casamento; dois enteados, afinal, filhos também 'adoptados', do primeiro casamento da minha mulher e tenho duas filhas, uma com 11 e outra com 13, adoptadas por mim e pela minha mulher. Foram adoptadas em Cabo Verde, onde as conhecemos. Há coisas na vida que não podemos deixar de fazer. Vivo num conjunto de seis filhos com origens diferentes, mas sem distinção entre eles. São todos meus filhos e eu só espero ser um pai razoável.
Isso é algo que o preocupa?
Em muitas circunstâncias, porventura, não fui o pai tão presente quanto deveria ter sido. Mas também nunca prescindi da minha condição de pai. Olho para trás e não me sinto mal com o pai que fui. Embora tenha a noção exacta que quem deve responder são os filhos. Só eles podem dizer se, feitas as contas, o pai tem condições para ir à oral. Espero que sim. Mas sei que estou imensamente longe de ser um pai perfeito.
Disse que há coisas na vida que não podemos deixar de fazer. E há outras de que se arrepende?
Há sempre coisas que nos arrependemos de fazer, seja na relação pessoal com este ou aquele ou nos quotidianos da vida. Agora não há nada profundo, que me cause remorsos. Sou uma pessoa normalíssima, vulgaríssima. Julgo que não carrego nada de particularmente negativo. Nada que me tire o sono.
Saber que já cruzou a marca dos 70 anos e começar a ver alguns amigos partirem também não lhe tira o sono?
Sim. Embora, talvez por uma questão de inconsciência, tenho muito a ideia de começo, como já referi. Estou sempre disponível para tentar coisas novas, não tenho a ideia de entrar numa fase de arquivamento. É assim a minha maneira de ser, não o faço por querer iludir a idade. Tenho a idade que tenho. Agora, como diz um amigo meu, 'na nossa idade morre-se muito mais'. Mas isso faz parte da vida. Há um pequeno texto na Suíça sobre crianças e avós, em que uma das crianças diz: 'Gosto muito das avós, o problema é que morrem muito mais do que nós'. E eu sou avô.