Tem cartão?

Não conheço um único português que não aprecie uma boa pechincha. Um descontinho, uma atençãozinha, um melhoramento de preço a seu favor. Rico, pobre ou assim-assim, o português aprecia sempre reduções!

No sentido de se actualizarem, de melhorarem a forma de servir os seus clientes e de combaterem a concorrência, os comerciantes portugueses (que são simultaneamente clientes) modernizaram-se. À semelhança do que se passa ‘lá fora’, dotaram as suas estruturas de planos de marketing, elaborados por equipas de estudiosos de mercado que se debruçam todos os dias sobre as necessidades e preferências do consumidor-tipo. Destes estudos e planeamentos, resultaram os tão populares cartões de fidelidade.

Quantas vezes não abriu a sua carteira e lhe caíram pelo menos três ou quatro cartões de fidelidade de estabelecimentos diferentes? Basta uma simples compra e pimba! – tem direito ao cartão de fidelidade, ao cartão de cliente, ao cartão de pontos ou ao cartão de descontos.

Estes cartões servem para o fidelizar a uma marca, e se no passado eram reservados aos clientes habituais e sinónimos de prestígio, hoje em dia são uma forma de garantir que o indivíduo não se vai deixar tentar pelos estabelecimentos concorrentes.

O cartão é melhor quanto melhores forem as vantagens que oferece; quer seja uma refeição grátis ao fim de dez refeições, pontos que se convertem em produtos de um catálogo restrito ou descontos que são dinheiro acumulado no cartão e apenas passível de gastar na mesma superfície onde o acumulou ou em superfícies relacionadas, o certo é que o cartão é uma espécie de passe VIP generalizado nos dias que correm.

Enquanto indivíduo sujeito ao sistema social, político e económico praticado onde vivo, e se já me sinto condicionada por uma série de factores que balizam o meu comportamento, sinto que disponho de maior liberdade se não me fidelizar a nada, pelo que recuso quase sempre todo o tipo de ofertas gratuitas de cartões de fidelidade. Também é raro facultar os meus dados e entrar em compras promocionais um bocado sombrias. Sinto que assumir esta postura é uma forma mais activa de viver de forma consciente em sociedade. Além dos meus documentos, só tenho dois cartões: o passe e o cartão do seguro de saúde privado. 

Aqui há dias, e por causa de umas idas muito frequentes ao médico, questionei-me sobre a cobertura do meu seguro de saúde privado. Das consultas aos exames, qualquer visita ao consultório era paga na totalidade, mesmo apresentando o cartão do seguro. Decidi tentar perceber o que é que se passava com o meu seguro e contactei a pessoa com quem celebrei o contrato. Qual não é o meu espanto quando descubro que afinal o cartão que eu tinha não era um seguro de saúde, mas sim um cartão de descontos em serviços de saúde!

Fiquei a oscilar entre um estado de fúria suprema e uma enorme vontade de me rir. Fúria pelo disparate pegado que é um cartão de descontos em serviços de saúde e vontade de me rir pela estupidez que é pagar uma mensalidade para ter um cartão que dá descontos em serviços de saúde, mas apenas junto dos médicos aderentes.

Uma vez que a grande luta do século XXI é a do indivíduo contra a instituição, neste caso eu contra o representante da instituição, excelente profissional, que segue as regras protocolares à risca e que, por isso mesmo, afirma a pés juntos que eu (LOL) é que optei por esta modalidade (a do cartão de descontos em serviços de saúde que custa uma barbaridade por mês), e como a resignação já teve pior fama, restou-me cancelar este cartão, pedir o reembolso de todas as mensalidades que paguei (o qual jamais irei ver), reunir todas as facturas e requisições do médico e rezar para que as mesmas sejam aceites e reembolsadas no IRS de 2014.

Na tentativa de encontrar uma moral satisfatória para esta descoberta insólita, cheguei apenas à conclusão que as instituições praticam cada vez mais comportamentos selvagens para com os seus clientes, os quais, inebriados pelas fidelizações e vantagens virtuais que os cartões de desconto oferecem, escolhem cada vez menos. Isso é altamente preocupante, se pensarmos que a moda já transbordou para os serviços de saúde e que este é o primeiro passo em falso para uma sucessão de trambolhões.   

joanabarrios.com