Uma questão de bússola…

Com a solenidade ritual da praxe, perante as televisões em directo, os juízes do Tribunal Constitucional deram o seu veredicto e, de uma assentada, chumbaram três das quatro normas do Orçamento de Estado, abrindo um ‘buraco’ estimado em cerca de 750 milhões de euros, segundo os cálculos do Financial Times. Uma ninharia…

Como recorda o mesmo jornal, são as metas acordadas com a troika que voltam a estar em causa e, sem grandes pruridos, admite que «persistem riscos de um novo resgate a Portugal». 

Beneficiários principais, os funcionários públicos, que viram repostos os seus salários na totalidade – quando o Governo tinha prometido devolvê-los progressivamente a partir de 2015, à medida que se consolidassem as contas do Estado.

Ainda com a troika a arrumar os papeis – e pendente o última tranche do programa de assistência –, um órgão não eleito produziu um acórdão claramente político, que divide constitucionalistas, e que invade, sem cerimónia, a vontade do legislador democraticamente eleito.

A quem tenha dúvidas, basta ler esta passagem do acórdão: «Não cabe a este Tribunal contestar a afirmada orientação de que o interesse público na construção das bases da sustentabilidade das finanças públicas deve preferencialmente ocorrer através de medidas de contenção da despesa». Porém, logo a seguir, o texto do TC é bem explícito quanto à orientação que preconiza: «Sem prejuízo de se reiterar que medidas de incidência universal – como são as de carácter tributário – oferecem melhores garantias de fugir, à partida, a uma censura decorrente da aplicação do princípio da igualdade». 

Descodificando: a ‘censura’ refere-se ao próprio TC, e as medidas ‘tributárias’ traduzem-se por agravamento de impostos. Ou seja, para os juízes, a protecção do funcionalismo público sobrepõe-se à defesa do contribuinte, já crucificado com uma das mais elevadas cargas fiscais da Europa. 

Em nome dos servidores do Estado , o TC argumenta com o «principio da igualdade» e acha «excessivos» os cortes decididos pelo Governo.

Ora, como se poderá invocar a «igualdade» com o sector privado, quando foi deste que saiu a legião de desempregados, forçados a emigrar uns e a sobreviverem outros nas margens da angústia? 

E qual é a linha fronteiriça, em termos estritamente constitucionais, entre um corte remuneratório aceitável e «excessivo»? Sem outra baliza, intui-se que a linha divisória será a fasquia dos 1500 euros, anteriormente aplicada. Bem longe do salário médio no sector privado… 

Um dos juízes, Maria Lúcia Amaral, vice-presidente do TC, na sua declaração de voto de vencido, foi feliz na síntese, num tom invulgarmente áspero: «Da sua argumentação [do TC] não se pode extrair qualquer critério material perceptível que confira para o futuro uma bússola orientadora acerca dos limites (e do conteúdo) da sua própria jurisprudência».

Passos Coelho, por ter a ‘chave do cofre’, preferiu ‘deitar mão’ ao funcionalismo público – e aos reformados e pensionistas –, elegendo-os como prioridade nos cortes da despesa. Com excepções. 

É o caso dos privilégios que não incomodam, aparentemente, os juízes do TC. 

Apóstolos devotos da «igualdade» e da «proporcionalidade», citadas nos seus acórdãos, não lhes ocorreu questionarem-se sobre a singularidade do seu estatuto e das regalias de que são titulares, sendo uma das mais relevantes a possibilidade de alcançarem uma reforma vitalícia, e por inteiro, ao fim de 10 ou 12 anos de serviço, consoante as situações de partida. 
É justo e proporcional? 
Com medo de ser acusado na praça pública de revanchismo face aos ‘chumbos’ do TC, o Governo hesitou, recuou e deixou cair iniciativas legislativas que apontavam no sentido de corrigir esse beneficio. E que faria justiça, em época de moralização de sacrifícios. 

Sem bússola está também o PS, com a guerra fratricida que estalou entre António Costa e António José Seguro. Depois do confronto no Vimeiro, o ainda líder percebeu que precisava de deixar a defensiva e saltou da trincheira para uma inusitada entrevista na TVI. 
Acossado, Seguro torna-se melhor e ganha uma convicção que contrasta com o seu recorrente discurso mole. 
Com Sócrates e o seu séquito alinhados ao lado de Costa – e o venerando Mário Soares a ‘tirar-lhe o tapete’ numa profusão de artigos inquinados, dando largas aos seus ‘ódios de estimação’ –, Seguro recuperou o fôlego e deu um salto em frente. 

Costa, que já recuou várias vezes, tem o caminho dificultado, quer para S. Bento, quer para Belém, depois de Guterres ter entreaberto a porta para se candidatar. Talvez possa, entretanto, dedicar-se a Lisboa, onde os munícipes o elegeram, para cumprir o mandato. A menos que Seguro atire a ‘toalha ao chão’, o que também não é de excluir…