Abril e Maio.
Em Abril, um dos meus amigos emigrados partilhou comigo uma capa de revista de economia norte-americana em que se podia ler ‘Congele os seus óvulos, prolongue a sua carreira’. Ele estava indignado com esta forma de violência contra as mulheres e a sua natureza ‘perecível’. Estava acima de tudo indignado com a obrigatoriedade da escolha implícita na rejeição de uma natureza que não dá tréguas e que é uma espécie de bomba-relógio que não pode, em circunstância alguma enquanto se sobe na pirâmide do sucesso, accionar.
Em Maio foi emitido o último episódio da décima temporada do meu chick flick preferido: Anatomia de Grey. As duas protagonistas da série enfrentam uma separação geográfica que lhes transmite medo e reagem de formas muito diferentes a esse chamamento do destino: enquanto Meredith Grey (tida como ‘franganita’) encoraja e fomenta a partida, Christina Yang (a mulher de gelo) teme o desconhecido.
Ao longo de toda a série, somos levados a anuir que é Grey quem tem uma vida de sonho potencialmente mais semelhante à nossa (resumindo): o amor por um homem digno de conto de fadas (que os há), luta não só pelo sucesso da sua vida amorosa, como pelo sucesso da sua carreira como cirurgiã e depois como investigadora, enquanto tenta conciliar tudo isto com as actividades de mãe e de esposa, inicialmente destinadas a serem partilhadas com o marido, que afinal não colabora assim tanto. Somos também levados a crer que Yang é uma mulher fria, sem coração, carreirista, obstinada e ambiciosa. Somos levados a não simpatizar com a personagem de Sandra Oh num vasto número de episódios precisamente por causa dessa sua determinação, que a conduz quase sempre no sentido oposto daquilo que estaria ‘correcto’.
Anatomia de Grey é acima de tudo sobre o amor. Em todas as suas formas e vertentes.
Ora bem, neste último episódio da décima temporada, é afinal Yang quem tem medo do desconhecido e quem arranja desculpas para adiar uma partida inadiável rumo a um futuro desde sempre desejado, mas que agora é uma potencial fonte de instabilidade emocional.
Porém, antes de abandonar o palco principal da série, e no devaneio emocional verosímil em ficção, Yang faz questão de demonstrar a todos os seus companheiros, por meio de manifestações de carinho não evidentes, o seu apreço por cada um deles. É a Meredith Grey que faz a maior revelação de todas, depois do dance it out catártico de ambas: «És uma cirurgiã prodigiosa com uma mente extraordinária. Não deixes que as vontades dele eclipsem aquilo de que precisas. Ele é muito dreamy. Mas não é o Sol. O Sol és tu». Se pensarmos na função social e educativa de alguma ficção, sabemos que há aqui uma mensagem a reter.
Estas últimas frases da personagem fria e misantrópica de Yang e a capa de revista de Abril que referi no terceiro parágrafo comunicam. No sentido em que demonstram a posição real e ficcional em que a mulher talentosa ainda se encontra hoje em dia: a mulher de sucesso não pode cumprir mais do que um destino por vida. Significa isto que a mulher ainda não pode ser uma profissional de sucesso, casada e mãe de filhos. Porque a essa figura está associada uma fraqueza incapaz de garantir sucesso, porque o sucesso, para uma mulher, custa muito mais por causa das suas obrigações, quer fisiológicas, quer tradicionais. Daí que a escolha entre uma coisa ou outra seja, ainda em 2014, uma pistola apontada à têmpora.
Discordo muito desta ideia, porque discordo muito da ideia actual de sucesso e de realização pessoal. Sinto que se verifica uma regressão generalizada no que toca à visão da emancipação emocional do ser humano, porque tudo depende da imitação do real e da mimetização da felicidade. Voltámos (mulheres e homens) atrás nesta caminhada rumo ao progresso, e a mulher emancipada voltou a ser uma libertina perigosa em quem não se deve confiar. Mas porquê?
joanabarrios.com