Heróis e vilões

Ainda faltavam mais de 15 anos para a guerra das Malvinas. Mas Antonio Rattin, capitão da equipa nacional argentina naquele mundial de 1966, liderava um conjunto tido como forte, mas sem nomes sonantes. Ou, pelo menos, conhecidos na Europa. E Maradona só explodiria juntamente com as primeiras explosões daquela guerra entre ingleses e argentinos, em…

Rattin tornou-se logo conhecido, no entanto. Ficou para história dos mundiais por um acto de indisciplina tão anódino quanto inútil. Ou melhor, por vários: jogavam-se os quartos-de-final da prova em Londres, e a equipa da casa ia sendo intimidada por lances viris dos visitantes. O árbitro, alemão, foi fazendo vista grossa às reclamações do capitão, mas às tantas perdeu a paciência e expulsou-o.

Rattin demorou uma eternidade a sair do campo, e quando o fez não recolheu às cabinas – preferiu sentar-se no tapete vermelho que dava acesso ao relvado, de uso exclusivo da rainha de Inglaterra…

A Inglaterra seguiria em frente com um resultado mínimo (1-0), alguns lances mesmo duvidosos e a monarquia ofendida.

Nesse ano de 1982, já com Maradona a dar um ligeiro aperitivo dos lances que o iriam impulsionar ao título no mundial seguinte – e a guerra das Malvinas em curso – um outro vilão seguiria para as páginas da história do futebol. E foi preciso usar a cabeça – num dos jogos mais desestabilizadores da adrenalina de quem o viu, o Alemanha-França das meias-finais, o guarda-redes alemão Harald Schumacher divide um lance com o defesa francês Patrick Battiston. A jogada estava 'morta', tal como quase aconteceu com Battiston.

Num impulso inexplicável, Schumacher atirou-se com toda a força para cima do defesa, que caiu inanimado no chão. Platini, então um dos principais talentos da selecção francesa, confessou que julgava que o colega estava morto. Battiston entrou em coma, foi parar ao hospital, e ainda teve de esperar alguns dias por Schumacher, que lhe foi pedir as devidas desculpas. Mas o lance é arrepiante de ver, ainda hoje (o lance pode ser visto em http://youtu.be/3byTNRoxujo).

Noutras ocasiões, aliás em muitas delas, a lesão é simulada. Muitos comentadores elegem a do croata Slaven Bilic, o célebre treinador que gosta de heavy metal e que encoraja os jogadores a ouvirem este género musical como forma de motivação. Mas, nos idos de 1998, ele ainda jogava à defesa na sua selecção, que acabou em 3.º nesse mundial disputado em França.

No jogo da meia-final, disputado contra a equipa da casa, Bilic preparava-se para apontar um livre concedido à sua equipa. Antes, tentou agarrar Laurent Blanc, num daqueles lances anódinos usados pelos jogadores para intimidar o adversário. Blanc tentou soltar-se, e ao fazer o movimento – sem a mínima intenção de agredir Bilic – passou com o queixo rente ao peito do croata. Bilic atirou-se imediatamente ao chão, agarrado à cabeça…

Mas se todo o mundial que se preze tem o seu vilão, muitas vezes esse papel confunde-se com o do herói, mesmo que estejamos a falar do mesmo jogador. É o caso de Maradona, um dos melhores de sempre. Foi claramente um músico solista na 'orquestra' argentina que venceu o torneio de 1986, no México, mas a ascensão terminou em queda a pique. Em 1994, disputava já o seu quarto mundial nos EUA, com um título e um vice-campeonato na bagagem. Nos jogos da primeira frase, a sua exuberância em campo acompanhava, inevitavelmente, os lances de génio.

A festa acabou num controlo antidoping. O capitão argentino tinha consumido efedrina, uma substância estimulante que está presente em algo tão ridículo quanto gotas para o nariz. Maradona foi expulso da competição e banido dos campos de futebol. Já tinha passado dos 30 anos e essa acabou por ser uma reforma antecipada e amarga.

O vício da cocaína, revelado pouco tempo depois, serviria para lhe retirar ainda um pouco mais de aura. Na época da efedrina, a imprensa das pampas ainda urdiu uma série de teorias da conspiração, ao melhor estilo dos tablóides ingleses. Todos eram culpados, o médico da selecção, os dirigentes, a FIFA. E até Bill Clinton, presidente dos EUA na época e a CIA estariam envolvidos no complô…

O francês Zinedine Zidane não passou por experiências tão extremas. Mas acabou a carreira de campeão mundial e europeu com um vice-campeonato em 2006, perdendo para a Itália na final e sendo expulso, devido à célebre cabeçada sobre o central italiano Marco Materazzi.

O lance é tão da memória colectiva que acabou por ser imortalizado numa estátua, que esteve no Centro Pompidou em Paris e exposta em Doha, no Qatar. Materazzi, que não levou a mal, até tirou uma fotografia ao lado dela e postou no Twitter a frase lapidar: “Adoro quem odeia”.

Outros craques podem ser enumerados como grandes heróis dos mundiais. Mas a vida, tão linear e bem-comportada, faz de Pelé, Puskas, Di Stéfano, Cruyff – que, apesar de tudo, fazia observações bem críticas sobre a política do franquismo, quando jogou no Barcelona -, ou até Eusébio, campeões no terreno e na consciência. 

ricardo.nabais@sol.pt