Por “amor da geometria e do concreto”, a palavra surgiu-lhe instintiva, límpida, em ordenação tão perfeita quanto despersonalizada. O que é mítico unir-se-á ao que é real, nos contos infantis (escritos para os cinco filhos do casamento com o jornalista, político e advogado Francisco Sousa Tavares) como na poesia. Nesta, Herberto Helder destacou: “O poema existe por si, é uma forma impessoal que as mãos limpas arrancam à desordem para apresentar como ordem objectiva no meio das corrupções, inclusive as corrupções da nomeação. (…) Forçoso aceitá-lo, trata-se do concreto absoluto da percepção. 'Vê-se' o verso liso e homogéneo; o corpo do poema não apresenta nenhuma ferida ou cicatriz. É a excelência”.
De origem dinamarquesa pelo lado paterno, nascida em 1919 e falecida em 2004, Sophia, assim nomeada como em predestinação de um “conhecimento íntimo, ao mesmo tempo atónito e luminoso do essencial” (Eduardo Lourenço), legou-nos uma das obras mais importantes da literatura portuguesa novecentista: 14 livros de poesia, outros tantos de narrativa infantil, contos ou peças de teatro. Traduziu obras de Dante e Shakespeare.
Como cidadã e intelectual, teve uma intervenção política sem ambiguidades na denúncia do regime salazarista e dos seus seguidores: entre outras iniciativas, apoiou a candidatura de Humberto Delgado, subscreveu o Manifesto dos 101 e integrou a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos. Após o 25 de Abril, esse “dia inicial inteiro e limpo”, foi deputada à Assembleia Constituinte pelo PS. Em 1999, recebeu o Prémio Camões. Como Helena Malheiro salientou, no estudo O Enigma de Sophia: da Sombra à Claridade, “ao absurdo inerente a um 'estar-no-mundo' existencialista, Sophia acrescenta o seu vasto humanismo cristão, onde a uma ética irrepreensível se alia a estética luminosa e ímpar da sua poesia do fundamento”.
Em Fevereiro último, a Assembleia da República determinou a concessão de honras de Panteão Nacional à escritora, cuja vida e obra foram um exemplo raro de “fidelidade aos valores da liberdade e da justiça”.
A trasladação dos restos mortais de Sophia de Mello Breyner terá lugar em Lisboa, esta quarta-feira. O cortejo sairá do Cemitério de Carnide (16h30), em direcção à Capela do Rato (17h), onde se celebrará uma missa (só para a família). Passará depois pela Assembleia da República (18h15) e, por fim, chegará ao Panteão Nacional. A cerimónia seguinte (transmitida em directo pela RTP1) terá início às 19h e contará com actuações da Companhia Nacional de Bailado (Dueto do Lago dos Cisnes e Dueto de Orfeu e Eurídice) e do Coro do Teatro Nacional de São Carlos ('Hino Nacional' e 'Magnificat').
Farão uso da palavra, por ordem, José Manuel dos Santos, director cultural da Fundação EDP e amigo da família, a presidente da Assembleia da República e o Presidente da República. Em seguida, irá escutar-se uma gravação, de 1957, da poeta lendo os seus poemas. Sophia de Mello Breyner repousará numa sala onde se encontram já os restos mortais de Humberto Delgado e Aquilino Ribeiro.
Livros inacessíveis
A reedição da obra de Sophia em prosa está, desde 2012, a cargo do grupo Porto Editora; desde 2013, também a da poesia, sob a chancela da Assírio & Alvim. Neste âmbito, sairão, em Setembro próximo, Livro Sexto (pref. de Gustavo Rubim), Geografia (pref. Frederico Lourenço) e Dual (pref. Eduardo Lourenço). A Porto Editora “não equaciona” a edição de obras antes publicadas pela Caminho e actualmente indisponíveis, como Obra Poética (primeira reunião da poesia num só volume) ou Fotobiografia: Uma Vida de Poeta (org. Paula Mourão e Teresa Amado). Doado pela família em 2010, o espólio da escritora encontra-se depositado na Biblioteca Nacional.