Perícias são prova decisiva

Os tribunais estão a recorrer cada vez mais a perícias psicológicas para fundamentar as suas decisões – seja para condenar um homicida a determinada pena de prisão, avaliar se uma vítima de abuso sexual está em condições de testemunhar, definir as responsabilidades parentais após uma separação ou determinar o acolhimento de uma criança maltratada numa…

Os números do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INML) – entidade a quem os tribunais solicitam estes exames, por iniciativa do juiz ou das partes – evidenciam este aumento. Segundo dados enviados ao SOL, em 2013 foram elaborados 2.026 relatórios psicológicos, enquanto que só no primeiro semestre deste ano já foram realizados 1.718. Se a comparação incluir também as perícias psiquiátricas – feitas para apurar patologias do foro mental e a eventual inimputabilidade do arguido – e período  temporal mais vasto, o crescimento também é notório. Em 2008, foram requisitadas 5125 perícias, em 2012, 7451.

A maioria dos exames periciais feitos pelos psicólogos é no âmbito do Direito da Família. Ajudam a regular responsabilidades parentais em divórcios conflituosos, a alterar os acordos que definem o papel de cada progenitor na vida dos filhos, como o regime de visitas ou a pensão de alimentos. E servem ainda, por exemplo, para fundamentar a decisão de afastar um pai do contacto com o filho. 

Tribunais 'mais sensíveis'

Há ainda casos em que a opinião dos técnicos é utilizada para interditar ou considerar inabilitada uma pessoa que tenha de gerir dinheiros (caso das heranças), assinar contratos ou queira casar – seja porque tem uma doença psiquiátrica ou uma falta de discernimento decorrente da idade. 

Os dados da Medicina Legal mostram que das 2.026 perícias realizadas em 2013, 708 foram feitas no âmbito do Direito Penal, por exemplo, para ajudar a definir a personalidade de um arguido. Houve ainda casos pontuais de Direito Civil e Trabalho (75 e cinco casos, respectivamente), mas a esmagadora maioria (1.238) foi no âmbito da Família.

“Os tribunais estão mais sensíveis e vêem estas perícias como um auxiliar para a definição da moldura penal, que varia consoante os traços de personalidade do arguido, a sua maturidade, consciência e o historial de vida” – explica Rute Agulhas, psicóloga do INML.  Num homicídio, por exemplo, a caracterização da personalidade pode ajudar a decidir se a pena é a mínima ou a máxima, ou seja, 12 ou 25 anos de prisão.

Alexandra Anciães, também psicóloga forense, acrescenta que no Direito Penal a perícia funciona como prova, pelo que “este juízo científico só pode ser afastado com outro juízo científico”. Isto é, para decidir de forma contrária ao parecer dos técnicos, o juiz tem de basear-se na opinião de outros peritos.

Perícias na Família disparam

Rute Agulhas e Alexandra Anciães publicaram no passado dia 19 o livro Casos Práticos em Psicologia Forense. Além de  enquadrarem o trabalho pericial, explicam os instrumentos utilizados na avaliação de vítimas e arguidos e descrevem vários casos. 

João Medeiros, advogado de Direito Penal, lembra que no sistema de justiça português “a medida da pena é feita em função da medida da culpa”. Por isso, acrescenta o advogado, que já solicitou várias perícias, “aferir uma visão distorcida da realidade, por exemplo, pode diminuir a culpa de um agente”. 

Pedro Cunha Lopes, juiz nas Varas Criminais de Lisboa, também destaca a importância destas perícias “em crimes violentos, como homicídios, violências domésticas ou arguidos que agem por impulso”. O magistrado sublinha a diferença entre perícias psiquiátricas – que aferem patologias mentais e ajudam a decretar uma medida de internamento em vez de uma pena de prisão – e psicológicas, que “não detectam doenças, mas maneiras de ser e são uma achega para caracterizar o arguido”.

Maria Perquilhas, juíza com experiência na área de Família e que dá formação no Centro de Estudos Judiciários, diz que as perícias psicológicas permitem “obter respostas sem fazer muitas perguntas, algo que os magistrados não sabem fazer pois estão habituados a factualizar a realidade”.

Mas para que a decisão do tribunal possa ser bem fundamentada, estas avaliações têm de ser bem feitas e não resumir-se a entrevistas com os pais, alerta a juíza: “Em 90% dos casos, o que importa apurar nas regulações é se os pais têm capacidades parentais adequadas às necessidades daquelas crianças”. E isso, acrescenta, implica recolher informação sobre o contexto de cada progenitor e filho, bem como avaliar as dinâmicas familiares. Por exemplo, observar a interacção dos membros da família: como brincam, falam, qual o tom de voz, a proximidade ou o contacto físico estabelecido. Rute Agulhas recorda, a propósito, o caso de uma criança ouvida num processo de poder paternal que já trazia “o recado encomendado”. Depois de se certificar que estava na presença da pessoa certa, disse: “Vim cá dizer que quero ficar com a mãe e não com o pai”.

Relatório pode demorar anos

A Associação para a Igualdade Parental diz que a “a maioria das perícias não são feitas assim, mas de forma superficial”. “Os psicólogos fazem uma avaliação estática da família, quando deveriam ter em conta a dinâmica familiar”, lamenta o presidente, Ricardo Simões.

No Instituto de Medicina Legal, cada perícia custa no mínimo 400 euros, envolve várias entrevistas feitas ao longo de muitas horas (com vítimas, agressores e outros membros da família) e uma bateria de testes. Mas algumas das que são feitas pelos gabinetes de psicologia dos hospitais – em que o INML delega esta missão quando não tem capacidade de resposta – resumem-se a uma página.

Além disso, acrescenta Ricardo Simões, “como demoram meses, às vezes anos, quando se chega  a julgamento o que é apresentado não reflecte a realidade da família”. Enquanto isso, uma criança pode ficar, injustamente, sem contacto com um dos progenitores, com todas as implicações que isso possa ter na sua relação.

Para a associação, que apoia pais em conflito, o “sistema judicial devia estar mais centrado na resolução dos problemas das crianças e não em formalidades como estes relatórios que não reflectem, na maioria dos casos, a vida das famílias”.

Entre o pedido feito pelo tribunal e a entrega do relatório pela Medicina Legal decorrem, no mínimo, seis meses. Mas o processo pode ser mais demorado, por falta de técnicos ou indisponibilidade das pessoas. Nos gabinetes de psicologia dos hospitais, um pedido feito hoje pode só ter vaga no próximo ano. No Algarve, por exemplo, “se o crime for de natureza sexual, é preciso levar a criança a Lisboa”, denuncia ao SOL António Ventinhas, procurador da República em Faro.

O tempo que demoram estas perícias e a forma sistemática como alguns juízes na área da família as solicitam são críticas apontadas por vários actores judiciais ouvidos pelo SOL. “Se os progenitores não estão de acordo, a primeira coisa que o juiz faz é pedir uma perícia”, critica a Associação para a Igualdade Parental. “Acredito que haja um certo abuso”, admite o juiz Pedro Cunha Lopes, que não faz Família. “E há casos em que o olho clínico do juiz devia bastar”.

rita.carvalho@sol.pt