Na origem deste último trambolhão estariam as retorcidíssimas negociações para formar o anunciado ‘conselho estratégico’ – um subterfúgio tipicamente português para contentar gregos e troianos, acolhendo no seu seio a representação da família afastada da liderança do banco.
Embora em guerra fratricida uns com os outros – em particular o ramo Salgado com o ramo Ricciardi – os Espírito Santo não abdicavam de querer tutelar a vida da instituição criada pela família. Ora, como todos os subterfúgios, este contém uma ambiguidade insanável, nomeadamente no que se refere à autonomia e à autoridade reais da nova liderança face ao ‘conselho estratégico’ (ainda que, formalmente, sem poderes vinculativos). Isso explica também a reacção negativa dos mercados.
O Banco de Portugal (BdP) lá foi executando o trabalho de formiguinha laboriosa mas não desatou o nó górdio que mantém, no fundo, o BES prisioneiro da tal maldição familiar. Uma maldição que, além dos conflitos pessoais, comporta uma rede quase impenetrável de negócios ruinosos e entidades fantasmagóricas de dissimulação financeira, pondo em causa a salvação autónoma do BES.
Ainda agora, depois do que se conhece, é difícil acreditar que uma família com os pergaminhos dos Espírito Santo e sobretudo o presidente cessante do banco, Ricardo Salgado, possam ter estado envolvidos em affaires que, nalguns casos, reproduzem o que já acontecera com o BPN, o BPP ou o BCP e figuram em quase todos os dossiês judiciais de operações fraudulentas e de evasão fiscal. Além disso, como é possível que um gestor supostamente responsável e cultivando uma aura principesca possa ter descido até ao ponto de receber comissões de um cliente e corrigir por três vezes as suas declarações fiscais?
Como já aqui escrevi, só um sentimento de impunidade a toda a prova pode explicar esta deriva, à primeira vista incompreensível. Um grande banco e um grande banqueiro que perdem o Norte nas relações de promiscuidade com o poder político – alimentando os desvarios despesistas desse poder, como aconteceu durante o consulado de Sócrates – e se envolvem em negócios de faca e alguidar, deixando trair um amadorismo de gestão de que não suspeitaríamos no mais tosco merceeiro de bairro.
A ameaça de colapso que continua a pairar sobre o BES provém da acumulação de inconcebíveis erros de palmatória e dívidas verdadeiramente astronómicas, incluindo uma teia de cumplicidades pessoais que, por exemplo, puseram em risco gravíssimo a credibilidade de uma empresa como a PT. Quem vai pagar e como vai ser paga a factura resultante de um desastre tão espectacular e corrosivo?
Conhecendo-se tudo isto, não deixa de ser um insondável mistério o poder de atracção que o BES ainda exerce junto de personalidades como Vítor Bento, Moreira Rato ou Paulo Mota Pinto, a tal trindade escolhida para salvar o banco em condições mais do que duvidosas (ainda que com o apadrinhamento do BdP) e sob a suspeita de conexões ínvias com o poder político.
A transferência directa de Moreira Rato da gestão da dívida pública para a gestão de um banco privado ou a passagem de Mota Pinto de deputado do PSD para chairman do BES (sem que se lhe conheça qualquer familiaridade com o mundo financeiro) mostram uma vez mais que não existem normas éticas sobre as incompatibilidades políticas e funcionais (e isto nada tem que ver com as segundas intenções partidárias contra as nomeações em causa).
Mas a ironia maior é encontrar Vítor Bento na liderança do BES, depois de ter recusado ser ministro das Finanças.
Um dos mais ortodoxos defensores da política de austeridade – posição que foi amaciando nos últimos tempos –, Bento subscreveu estritamente a tese do país que vivia acima das suas possibilidades (embora sem esclarecer a que país concreto se referia). Mas, no fundo, ele sempre foi um banqueiro em construção. Palavras suas de 2007: «Hoje, quando os bancos procuram maximizar os seus lucros, a qualidade dos serviços é das melhores do mundo e o seu custo social é muito menor.
Estou certo de que ninguém pretenderá voltar atrás. Mas para isso é necessário reconhecer a importância dos lucros para a obtenção daqueles resultados». Abençoado Vítor Bento! Que dirá ele agora dos resultados da aplicação dos lucros pelo banco que lhe propuseram salvar?