Tenho verificado que a palavra se aplica a museus e programas de televisão, anúncios comerciais, propostas políticas, cursos universitários e livros – ou, mais exactamente, ao ofício editorial, que já só marginalmente se centra naquilo que o fez nascer e que dava pelo nome de literatura (ensaio, ficção, poesia).
Alguém explicava há dias, num canal televisivo, que a quebra de oferta do Ensino Superior «tinha de ser resolvida através de novos conteúdos, e mais transversais». Que conteúdos, com que novidade e transversalidade? «É muito complexo. Têm de se seguir políticas de inclusão».
Esta parlenga pretensiosa e oca tem vindo a tornar-se, mais do que comum, totalitária: é o espectáculo do nada transformado em modo de vida.
Parece inócua, mas não é. A substituição de palavras que exprimem ideias por palavras que aparentemente não as transmitem (nos ‘conteúdos’ tudo e nada cabe) tem um objectivo ideológico: o de afirmar o direito do mais ‘culto’ ao poder.
O primeiro poder é o de definir e hierarquizar a cultura ‘certa’ – que se rege pelas leis da ‘transversalidade’ e da ‘novidade’. Tudo tem de ser ‘encenado’, ‘ampliado’ (para, supostamente, não excluir ninguém) e ‘renovado’.
Esta ideia de cultura é profundamente ideológica e não muito diferente das cultivadas pelos totalitarismos do século XX: espectáculo, movimento, acção, luzes e música – enfim, a alienação através da festa contínua.
Esta ideologia pretende apresentar-se como vanguardista e libertária, mas vive de um paternalismo elitista.
A repetição do propósito de ‘inclusão’ sinaliza uma fronteira entre os que estão naturalmente ‘incluídos’ e os outros – os exóticos, de ‘culturas outras’, como normalmente se diz (em construção frásica francesa, que continua a ser mais chique, embora a França esteja fora de moda).
A diferença pela diferença escamoteia o direito básico à igualdade; a ausência de críticas ou propostas concretas face aos gigantescos problemas do nosso tempo é o apelo à ‘fluidez’ cívica e ética.
O sociólogo Zygmunt Bauman diz que vivemos uma ‘modernidade líquida’; flutuamos entre as coisas e as pessoas ao sabor das correntes.
Ao contrário do que tantas vezes se diz, a derrocada das ideologias tradicionais não justifica este aniquilamento da reflexão. Há um objectivo político neste esvaziamento do espaço intelectual: fazer com que a liberdade de cada um se resuma ao individualismo.
Na exaltação da ‘novidade’ e da ‘transdisciplinaridade’ (o palavrão que veio substituir a menos flexível ‘multidisciplinaridade’ dos anos 80), deixou de haver espaço para essa coisa velha, tristonha, dura e solitária que é a literatura.
Os livros são mero pretexto de ‘feiras’ ou ‘festivais’, que terão necessariamente de ter eventos multimédia para cumprir esse objectivo maior de ‘atrair públicos’.
Os leitores só interessam enquanto ‘público’, isto é, acatadores de mensagens, máquinas de aplaudir, desenhadas para manter o circo ilusório da ‘cultura’.
Num país onde os hábitos culturais são diminutos, a governança dos funcionários dos ‘conteúdos’ é particularmente grave, porque castra o que ainda sequer nasceu: a liberdade de pensar.
Não é por acaso que os nossos principais pensadores são exilados, gente que teve de sair do país para poder pensar. Fugiram por causa da censura, que cortava as palavras. A nova censura é mais eficaz: impede as palavras de dizerem qualquer coisa sobre o que quer que seja.
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