Em As Leis da Fronteira fala sobre a delinquência juvenil em Espanha nos anos 70. Como surgiu a ideia?
Os livros começam por um 'E se?'. Cervantes devia questionar-se: e se em vez de ter estado na batalha de Lepanto, preso em África e ser um escritor fracassado, tivesse estado em La Mancha a ler livros de cavalaria? Todos os romances são vidas hipotéticas, que não viveste. Aqui, perguntei-me o que teria acontecido se em vez de ter sido um adolescente tímido de classe média, um dia tivesse, como o Gafitas, atravessado a fronteira do rio e me juntado a um dos bandos de delinquentes que proliferavam na época em Espanha. Adorava dizer que tinha assaltado bancos aos 16 anos com uma espingarda de canos serrados. Mas não é verdade. Estes mitras, sim, eram reais. Foi um fenómeno da época.
Porquê?
Não é mais que uma variante de um mito universal, o do Billy the Kid, o bandido adolescente, violento e desesperado, que pega em armas e se põe a assaltar bancos. Naquele momento há em Espanha mais adolescentes do que nunca. O país estava cheio de miúdos pobres, dos arredores, afastados das suas terras, sem dinheiro, sem esperança, sem educação, que se converteram em delinquentes organizando-se em bandos. E capturaram a imaginação do país, que os elevou à categoria de mitos, gerando-se toda uma subcultura. Alguns dos filmes mais vistos do cinema espanhol, como Perros Callejeros, são sobre estes jovens, que foram convertidos em mitos.
Um fenómeno que durou pouco…
De 1979 até meados dos anos 1980. A maior parte deles morreu, pela heroína e suas consequências, como a sida, e pela violência. E, por outro lado, o país mudou, entrou na CEE. Os mitos são uma mistura de mentiras e verdades. Ou seja, uma mentira. Mas uma mentira que diz muito sobre a sociedade que a cria, sobre os seus medos, inquietudes, obsessões. Este jovens expressavam a mistura de medo e esperança com que as pessoas viviam uma mudança tão vertiginosa como a da ditadura em democracia. A forma como eu os olhava era a forma como eram olhados pelo país. Com medo, porque eram perigosos, mas também com admiração porque eram livres, tinham dinheiro, andavam com raparigas bonitas, tinham carros. O país transformou-os em heróis. Pobres miúdos. Há um verso de Bob Dylan que diz 'quem não tem nada, não tem nada a perder'. Eram estes miúdos.
Então nunca cruzou a fronteira?
Não. Mas conheço muitos que o fizeram. A primeira parte do livro decorre no Verão de 78, antes de chegada da heroína a Espanha. A heroína chega em Fevereiro, Março. E faz com que as fronteiras se tornem porosas. Os miúdos vão comprá-la e conhecem gente de outro mundo.
Como Tere, a rapariga do bando por quem Gafitas se apaixona, uma personagem muito importante…
Tere era apenas uma personagem secundária que pouco a pouco se apoderou do livro, que acabou por se transformar numa história de amor, grande, complexa, secreta. E Tere é a personagem mais importante do livro. Guarda os segredos, encarna os dilemas morais, é a esfinge, a personagem mais enigmática e mais comovedora, uma verdadeira heroína trágica.
Diz que os seus romances têm um ponto cego. Em que sentido?
Descobri que todos os meus romances, todos os romances de que gosto, e talvez todos os bons romances, têm no centro um ponto cego através do qual não se vê nada. Essa obscuridade é a maneira de os romances iluminarem. Dom Quixote está louco ou está lúcido? Não sabemos. É um ponto cego. Mas é o coração do livro. Moby Dick. Que raio é Moby Dick? É o bem? É o mal? Porque está Ahab tão obcecado por Moby Dick? Não sabemos. O Processo… De que acusam o protagonista? Qual o crime que cometeu? Tudo o que tem a dizer Kafka nesse livro di-lo através desse ponto cego. No coração de todos os romances há uma pergunta e todo o romance é a busca de resposta a essa pergunta. Mas não há respostas claras, taxativas. São ambíguas, complexas, contraditórias. Assim funcionam os romances. Dom Quixote está louco e também está lúcido. Moby Dick é o bem mas também é o mal. Joseph K. é inocente mas também é culpado, porque todos somos culpados. Assim são os meus romances.
E neste livro?
A pergunta é mais clara que nunca: quem denunciou o bando de Zarco? A segunda parte é quase um romance policial que quer responder a esta questão mas, no final, não o sabemos. Se decidirmos que foi Tere, o sentido do romance é um. E se decidimos que não foi Tere, o sentido é outro. Só o leitor pode decidir. O autor dá a pergunta, o leitor pode responder. O ponto cego do romance é essa ambiguidade, o espaço que oferece o autor ao leitor, para que este transforme o livro no seu livro. Os leitores criam os livros. Barthes dizia que os grandes livros são os que não impõem uma única interpretação ao leitor, mas que lhe permitem várias. Sem ambiguidade não há literatura, há entretenimento.
Como autor, sabe a resposta?
Tenho a minha interpretação. Não tenho o segredo. Não sei a verdade. Sou mais um leitor. Não escondo a verdade, não a sei. Sei o que sabe o leitor, o que lá pus, a partitura. Mas também eu sou um intérprete dessa partitura. Nós, os autores, não temos o monopólio de interpretação da obra.
O romance estrutura-se em entrevistas. Porquê?
Chego à forma dos livros por eliminação. Até que soe verdadeiro, não escolho uma forma. Supondo que a verdade e a beleza se podem separar, a literatura busca a verdade. As múltiplas entrevistas fazem com que não exista apenas uma verdade. Há quatro. Não é uma verdade estável, é mutável. Alguém te conta uma história de um certo ponto de vista e depois outra pessoa conta a história de outro. E é verdadeira. Tudo é um ponto de vista. Nunca tens a verdade total. Duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo. Existem verdades contraditórias. É fantástico. Tu és de uma maneira e também és de outra. És boa e má, maravilhosa e horrível, simpática e antipática. Essa é a ironia. Dom Quixote é ridículo e heróico.