Granadeiro, o príncipe imperfeito

Este é um perfil feito em Dezembro de 2007, repescado agora no dia em que Henrique Granadeiro abandona a PT.

Em 1943, já com a experiência herdada de cinco partos, Ana prevê que o bebé está para nascer. Com o marido e os filhos, mete-se pela serra a pé. Durante duas horas abrem caminho entre estevas, escapando das cabanas abandonadas ocupadas pelos malteses, pedintes dos quatro cantos do país, alguns cadastrados. Quis a sorte (e a sabedoria de Ana) que Henrique Manuel Fusco Granadeiro não nascesse naqueles trilhos. Deste longo trajecto percorrido pela mãe talvez o filho tenha herdado a frieza e os longos silêncios daquelas terras de xisto e mármore que hoje, em determinados momentos, atingem extremos insuportáveis para os seus adversários.

Ana manteve-se na Várzea apenas um mês, o tempo de retemperar forças com fatias paridas, pão, ovo e mel passados na frigideira, e canjas de galinha. Depois volta com o recém-nascido para o corridinho da serra. Vicência, a irmã mais velha, ainda recorda tudo o que a impressionou da infância de Henrique. O menino completara um anito, gatinhava e dizia as primeiras palavras. Trava amizade com um cachorrinho. Quando lhe perguntavam como se chamava o animal, a criança respondia enrolando as sílabas: “Não sei”.

E com este nome se baptizou um dos filhos da rafeira malhada da casa, que acabara de parir uma bela ninhada. Manuel desfez-se dos outros sete, e das tetas da cadela sobra leite. Um dia, o petiz desaparece da cabana. A irmã dá com ele e com o Não Sei espojados na eira a mamar na cadela: “Ficámos muito assustados mas um vizinho disse-nos que não nos preocupássemos porque quem bebia o leite das cadelas era mais inteligente. Olhe, parece que assim foi”.

Henrique conhece o episódio à conta de tantas vezes o ouvir: “Se Rómulo e Remo foram salvos pela loba, qual é a estranheza de eu ter sido alimentado por uma cadela?”.

A infância pobre na serra

Até aos quatro anos, o catraio vive na Serra d'Ossa. Era o tempo em que uma sardinha se partilhava por três bocas. Ele é alimentado a sopas de leite. Vicência tem apenas dez anos e, tal como a mãe, já aceitava a vida sem dramatismo: “Não havia fartura, mas também não passávamos fome. Havia sempre o pão que a minha mãe cozia, as sopas de repolho e umas azeitonicas”. Henrique, quando faz o levantamento da infância, não foge ao lema da família: “Não me lembro de passar fome. Deus dá o frio consoante a roupa. Habituamo-nos”.

 

Enquanto Ana e Manuel partem pela serra à cata de lenha, as gémeas guardam as cabras. O chefe de família fizera um carro com um caixote de madeira a que aplicara rodas de cortiça ligadas por um eixo guiado por um pau. Quando Vicência parte com a cabrada à procura de estevas e rosmaninho, leva com ela Henrique no carrinho de bebé improvisado.

Certa vez avistam malteses – mendigos que arrastam famas terríveis – e a pastora esconde-se num buraco. Quando de lá sai, percebe que o carrinho está bastante mais leve: no percurso de xisto e estevas o menino caíra sem libertar um ai. “Que grande susto! Depois de algum tempo, encontrei-o todo satisfeito sentado no mato a brincar com as flores”.

 

O apelo espiritual

Por essa altura, o avô Zé Galego, que não tem proveito com as cabras que dê para pagar a renda, abandona a courela e vende o gado. Os pais de Henrique, mais a prole que aumentara para sete filhos, mudam-se para a Várzea. O casal volta para as ceifas. Foi nesta época que Henrique deu um sinal à família do que parecia querer alcançar no futuro.

Naquela casa só se faltava à missa de domingo por razões de força maior. Um arcebispo, presença inusitada naquelas paragens, dava missa na Igreja de Santiago. Henrique, com uma atenção infantil e olhar atónito, não tira os olhos do apóstolo.

As palavras que o pequeno titubeou durante a cerimónia religiosa caem no coração das mulheres da família como prova de uma vocação arrasadora: “Quero ser como o senhor nolipoli”. A mãe, que não entende logo que o petiz se refere ao senhor prior, insiste. E ele, com a veemência recreativa das crianças, aponta o dedo na direcção do púlpito: “Quero ser como aquele que está ali dentro do caco”. Ana logo entendeu que, chegada a hora, ele seguiria para o seminário para se fazer sacerdote.

Mas outra faceta do petiz desenha-se quase em simultâneo. Que, curiosamente, contraria a primeira. A necessidade de esmiuçar o significado do dinheiro – palavra que, pela sua escassez, ouvia repetidamente em casa – leva-o a testar o seu valor mínimo. É entre esta operação e o seu máximo que se equaciona o lucro. Um dia, a mãe leva o filho a Borba, onde uma prima direita tem comércio. E, para poupar a criança descalça à rudeza do trajecto, vão de burro.

A manhã dá-se bonita e Henrique desce da montada. Passavam num olival quando, depois de um longo silêncio, pergunta: «Ó mãe, quanto é um milésimo de um tostão?». A mulher disse-lhe: «Não te sei responder, mas quando chegarmos a Borba compro-te uma tabuada».

 

Descalço mas bom aluno

Quando Henrique entra na primária, destaca-se de imediato. Chega sem sapatos, calça a meio da canela, e na talega – uma bolsa de sarja feita pela mãe – leva o almoço a tiracolo. Aprende rapidamente a dividir ou a extrair a raiz quadrada, e é exímio a manejar as letras e as elucubrações teóricas. Tem sete anos quando faz o primeiro negócio. Hermínio Mira, mais velho três anos, está a terminar a primária. Eram parentes pelo lado materno e têm a mesma origem galega. A família estabelecera-se com um pequeno comércio. É com a mãe dele, Joaquina Barroso, que a mãe de Henrique desabafa e onde se avia fiado.

Hermínio gravou na fita do passado algumas falas entre as duas mulheres: “Eram muitos filhos e eles mal ganhavam para o pão. Cheguei a ouvir a ti Ana dizer à minha mãe que nesse ano a sorte da família tinha sido o feijão e as arrabaças que semeavam na horta”.

Ora Henrique faz com Hermínio um negócio arrojado para um miúdo de sete anos: o amigo dá o capital para comprar quatro borregos, ele apascenta-os, e o lucro da venda ficará para os dois.

O miúdo cresce rebelde. Nas aulas destaca-se. Mas, mal se apanha na rua, junta-se à gaiatada que se pendura na fruta dos lavradores. As irmãs obedeceram ao destino e trabalham agora à empreitada nas ceifas ou nas mondas. Mais tarde irão servir para fora.

As brincadeiras infantis são a primeira entrada na realidade. Andar à pedrada às latas é uma das formas de medir a valentia contra os inimigos futuros. Também se pela por uma bulha, que naquela idade é um exercício para testar o poder face aos outros. O irmão Anacleto, três anos mais novo, traça o perfil do valentão: “Metia-se com os outros gaiatos e dizia: 'Tens medo de mim ou não?'. Era teimoso e muito autoritário”.

Sempre que o garoto sai da escola, além de pastorear os borregos que divide com o amigo Hermínio, ajuda a família em obras mais espinhosas. Na horta, arranca batatas ou rega as couves. Com o irmão, sacha erva e palha na zona da ribeira para dar de comer ao burro da casa. Entre a miudagem, estavam na moda as apostas. Ganhava quem conseguisse colocar cuspo na orelha do adversário. Sempre que se tratava de carregar para casa as sacas do ribeiro, Henrique propunha o jogo ao irmão. Ora era Anacleto quem, a maior parte das vezes, carregava os fardos. Henrique ainda se ri dessas conquistas, aproveita-as para fazer o balanço do seu percurso: “Até hoje ninguém conseguiu pôr-me cuspo atrás da orelha. Está para chegar o primeiro”.

 

O 'homem da casa'

No Verão, quando o calor parecia estalar a pele, depois de rezarem o terço, Manuel e a família fazem cama na eira. Sempre que o pai se ausenta para alguma empreitada, Henrique usurpa-lhe o lugar. A autoridade era algo que nascera com ele e não se podia contrariar. A irmã Vicência ainda recorda a persistência com que tentava exercer junto da mãe esse traço de carácter: “Teimava para dormirmos na eira. A minha mãe tentava explicar-lhe que, sem o pai, era perigoso passarmos a noite na rua”. Mas ele, com uma inocência exaltada, fincava pé: “Quando o pai não está, sou eu o homem da casa!”.

Experiente em ultrapassar barreiras, Henrique explica-se com a ilustração que conquista na primária: “Já tinha aprendido isso em História. Apesar de as rainhas parirem umas princesas, quem ficava a mandar era o príncipe. Era ele quem estava na linha de sucessão e eu levei aquilo muito a sério”.

A infância foi uma das épocas mais felizes da sua vida, pelo que teve de desordem. Fez de tudo – chegou mesmo a pedir esmola para curar a irmã mais nova, Antónia, que nasceu tinha ele cinco anos. Ela adoeceu e os médicos receitaram-lhe ácido botânico graduado, que custava 90 escudos. O pai ganhava apenas cento e oito. Esta é a recordação mais inquietante que Henrique guarda da infância: “Lembro-me de andar a pedir esmola com as minhas tias para conseguirmos dinheiro para o remédio; mas quem precisa, precisa sempre, e quem dá não pode dar sempre”.

 

O primeiro vexame

A primária estava no fim. Henrique mantinha-se o melhor aluno da classe. O exame era feito em Borba, a sede do concelho, e os pais levam-no no burrinho até à escola. Na sua primeira prova de fogo vai todo emproado nos seus conhecimentos. Termina-a antes do tempo e levanta-se no intuito de a entregar. O professor não aceita: “Volte para o seu lugar e espere que eu dê a prova por terminada”. Obedece. Para passar o tempo, tira o tinteiro da secretária e tantos malabarismos faz que acaba por entorná-lo em cima da prova, que fica ilegível. Não o deixam repetir o exame, e o rapaz, confrontado pela primeira vez com a humilhação, adoece: “Apanhei uma depressão. Foi uma vergonha do arco-da-velha, o melhor aluno de Santiago voltava a cavalo da burra e com uma raposa às costas”.

No ano seguinte, em Julho de 1955, fica aprovado. Foi a época em que se deram as grandes alterações na sua vida. Tudo o que veio a alcançar – e mesmo o que rejeitou no futuro – teve o lacre desse tempo. A tia Maria, oblata na Nossa Senhora das Dores em Borba, faz recados para Dulce Jorge Pereira, uma solteirona abastada da cidade. Ajudar os pobres e ter um afilhado padre era a prancha com que alguns ricos garantiam o bilhete de entrada no paraíso. A senhora intercede junto do Seminário Menor de Vila Viçosa para que recebam Henrique. Trata-lhe do enxoval e, durante dois anos, assegurar-lhe-á a mensalidade de cinquenta escudos.

 

A entrada no Convento

Em Novembro desse ano, Henrique, de fato preto e gravata, e com os seus primeiros sapatos, entra no Convento das Chagas. Como prefeito tem Lourenço Nabais Pinto, que leva demasiado a sério as questões disciplinares. Nas traseiras do convento existe uma enorme horta com laranjeiras. Perto do caramanchão, que tem ao centro um lago, o sacerdote ajoelha-se com o novo rebanho para rezarem o terço. Entre uma conta e outra, o seminarista deita olho às carpas de cores variadas que se exibem na água. Terminado o rosário, enquanto os rapazitos seguem para o refeitório em fila indiana, Henrique arreda-se do grupo, abeira-se do lago e deita mão aos peixes. Foi o sinal para o prefeito (que anos mais tarde o viria a brindar com a nota mais alta que alguma vez deu a um aluno) entender que aquela alma era difícil de encabrestar, a não ser com outro tipo de sermão. A recordação é aberta, exacta: “De repente vi-me arrastado pelas orelhas até ao refeitório, com os outros todos a olharem para mim. Foi a minha segunda humilhação”.

 

Um 'potro selvagem'

O fantasma pessoal de Henrique foi também o do seu melhor amigo, Eduardo Pereira da Silva, hoje cónego da Pastoral de Évora e presidente da Fundação Eugénio de Almeida. O rapaz vinha de Cinfães do Douro, de uma família com comércio, e sente-se tão desamparado como o filho dos jornaleiros da Várzea: “De início, a adaptação foi difícil, havia de vez em quando uma chapadazita, mas a disciplina do prefeito também nos fez enrijecer. O Henrique rapidamente se integrou e passou a ser o melhor aluno do seminário”.

O cónego Lourenço representava a igreja mais conservadora. As camaratas, para cinquenta alunos, ganhavam à noite uma dimensão fantasmagórica. Pelas 6h30 era a alvorada. Cada cama tinha um lavatório, os miúdos estremunhados lavam-se à gato. Duas vezes por semana, o banho é obrigatório. O prefeito anda pelo balneário a controlá-los. A maior parte dos rapazes chegava do campo sem qualquer apego a hábitos de higiene. A água dos chuveiros é aquecida num fogão a lenha, e os últimos a tomar banho já a encontram gelada. O cónego Lourenço, para quem a disciplina era a regra basilar da pedagogia, não se furtava ao banho gelado, para dar o exemplo.

Segue-se a missa e a hora da meditação: a entrada na vida espiritual. A vocação de Henrique para a música revelou-se aqui. Pertence ao coro, e durante a liturgia revela uma voz muito timbrada. Dizem que poderia ter feito carreira como tenor. Duas horas depois, já estão nas aulas. Mário Pereira, o padre que lhe leccionou Latim durante quatro anos e que também não o poupou a castigos, anteviu o génio do rebelde: “Era franzino mas extraordinariamente dotado”. Ao fim de três meses, antes das férias de Natal, fazia-se uma avaliação em várias áreas. As provas incidem sobretudo ao nível intelectual, religioso e comportamental.

Na primeira ceifa, dos cinquenta que entraram, dez são eliminados. Henrique está entre os melhores, apenas lhe censuram o sentido de independência. A tia, irmã Visitação, cheia de vontade de o ver padre, ao tomar conhecimento do comportamento do sobrinho resgata-o nas férias grandes no convento, em Alcácer do Sal. Henrique desenterra da memória essas lembranças e, como se regredisse, imprime-lhes um cunho infantil: “Queriam-me domesticar. Para eles a heterodoxia tinha um limite. Mas cresci como um potro selvagem, e a um animal desses é difícil depois aparelhar”.

No entanto, quando regressa a Vila Viçosa, toma nova posição. Está com 12 anos e consegue reabilitar-se. Naquela idade não tinha incertezas sobre o caminho que o levaria ao sacerdócio. Mário Pereira não duvida da sua convicção doutrinária: “Durante os cinco anos em que fui seu professor andou sempre no rumo certo”.

Henrique começa a desafiar o destino e afinca-se cada vez mais aos estudos. Continua entre os melhores alunos, mantém o mesmo sentido de independência e candidata-se a uma bolsa da Gulbenkian. Aos 14 anos, com uma mensalidade de 200 escudos dada pela fundação, liberta-se do jugo da madrinha rica: “Era muito novo para questionar a minha vocação, mas muito cedo tive a noção de que o saber era a minha única saída”. A rebeldia esmorece. Ainda hoje, feito o balanço da sua biografia, os passos que galgou na escadaria social são obra da disciplina do padre Lourenço e do convívio com padres progressistas que, no ano seguinte, iria encontrar no Seminário Maior, em Évora.

 

Os 18 anos

Em 1961, Henrique está com 18 anos. Era alto, esquálido e tem uma bela cabeleira. Tornara-se a cara da mãe, mas mais pálido, consequência da diabetes. Apesar de ser seminarista, nunca deixou de ajudar os pais nas lides do campo. Nas férias do Natal, vareja a azeitona no rancho onde o pai é agora manageiro. A jorna que recebe entrega-a à família. Mas a Páscoa deixa-lhe as piores recordações: “O trabalho mais lixado era plantar cebolas. Andava agachado quase todo o dia com um molho de cebolinhos, e enquanto os meus pais abriam os regos eu colocava os cebolinhos lado a lado”. No Verão a azáfama mantém-se e Henrique emparceira com a família nas ceifas.

 Aos domingos participa nas cerimónias religiosas da igreja, o que lhe confere um certo protagonismo. Vive arredado da vida dos rapazes da sua idade. Um dos divertimentos dos moços e moças são os bailes nos soeiros, os casões dos lavradores. O seminarista, sempre composto, ouvia e cantava ao som do acordeão tocado pelo Zé da Gaita, mas, obediente aos preceitos que os padres lhe incutiam, controla as tentações da carne e não deita braço a rapariga.

Em 1963, quando o pai – que passara a trabalhar nas pedreiras do mármore – sofre um acidente que o deixa incapacitado, é ele quem ajuda a família. A companhia seguradora atribui a Manuel uma pensão de invalidez mesquinha. Cinco escudos por dia, mal chega para o pão. Mas, em compensação, a bolsa do seminarista triplicara. Henrique transita para o Seminário Maior. Em Évora, vai defrontar-se com uma nova escola de vida. A pedagogia clerical mudara. Padres como Francisco Sanches Alves, que depois de Abril de 74 chegaria a bispo de Portalegre, e Manuel Madureira Dias, futuro bispo do Algarve, espalham a doutrina social da igreja.

 

 

No Seminário Maior de Évora

Madureira Dias acabara de chegar de Roma, formado em Teologia. Com fama de progressista, foi durante um ano o prefeito do jovem. Tempo suficiente para lhe conhecer o espírito: “O seminário naquela época era das poucas saídas para os pobres. Não era o caso dele, que estava verdadeiramente no caminho para o sacerdócio. Além disso, destacava-se intelectualmente, as médias andavam sempre entre os 16 e os 18”.

A par dos estudos, que Henrique leva com um rigor religioso, descobrira que a independência passava também pelo exercício do poder: “Eu tinha fome, fome de tudo, nunca estava satisfeito, nem estou”. Naquela altura já é visto como um líder. Torna-se o chefe da equipa de hóquei, modalidade na moda, e um exímio jogador. Não perdera as qualidades de negociante e os seus êxitos financeiros ainda são apregoados. Eduardo Pereira, que com ele viera de Vila Viçosa e lhe disputa o lugar de melhor aluno, gaba-lhe o jeito: “Como estava à frente do hóquei, cada vez que um aluno saía do seminário o Henrique comprava-lhe os patins, que já estavam estafados. Mas limpava-os e revendia-os. Chegou a comprar por seis escudos e a vender por duzentos”.

 

Entre os melhores de Portugal

A biografia do seminarista fazia-se com passos firmes. Entre os mais novos, o rapaz torna-se uma referência. Destaca-se entre os melhores alunos de Portugal e, durante seis anos, ganha o Prémio D. Dinis, patrocinado pela Sociedade Central de Cervejas. A entrega do mimo de 10 mil escudos ocorre em Lisboa nas instalações da empresa. De seguida, a nata estudantil junta-se no restaurante Folclore.

 Aí, Henrique trava amizade com alguns colegas que viriam a dar cartas no destino da nação. Marcelo Rebelo de Sousa já cativava pela inteligência e graça. Com o bicho-carpinteiro na veia, Marcelo vai interrompendo o almoço para, num fino latim, citar Cícero: “Quousque tandem Catilina abuteris pattiencae nostrae” (até que ponto, ó Catilina, abusarás da nossa paciência). Henrique, criado na província, apreciou-lhe o estilo: “Fiquei deslumbradíssimo. Ele tinha a vantagem de ser filho de médico, afilhado de Marcello Caetano. Eu sabia que havia diferenças, mas hoje já as engoli”.

Durante cinco anos, dois dos mais distintos alunos do país encontraram-se sempre nas mesmas circunstâncias. Rebelo de Sousa também o topou: “Praticamente não falava, parecia um animal bravio. Tinha uma enorme desconfiança pessoal e social”.

No seminário, Henrique é precedido pela sua aura. Até o fantasma de Vila Viçosa, o cónego Lourenço, esquecera a sua rebeldia: “Foi dos meus melhores alunos a Teologia Moral, e olhe que eu era severo nas notas. Intelectualmente superior, alimentava muito a esperança de ser sacerdote”. Tudo isto marcava Manuel Relvas, uns anos mais novo. O rapaz, que no início da década de setenta, com um conto publicado no jornal Defesa, levaria a PIDE e a barafunda ao seminário, traça-lhe as passadas: “Ele não só se adaptou como soube controlar o ambiente. Percebia, antevia e sabia tirar partido disso. Continua a ser assim”.

O caminho de Henrique era silencioso, discreto, como se trilhasse a serra de xisto onde crescera. “Soube tirar partido da inteligência, ali havia instrumentos de poder que ele alcançou um a um. Ele era o responsável pela revisão dos jogos de futebol, ele estava à frente da biblioteca e catalogava os livros, ele entrou na revista Alvorada e de tesoureiro chegou a administrador”.

A reputação de um homem cresce em função dos seus triunfos. Em 1965, após a encíclica de Paulo VI, a Igreja faz acertos. Henrique é o presidente da Academia de Santa Antónia. Nos debates, são lançados temas que vão da literatura às alterações que se fazem sentir nos meios católicos. E, na revista do seminário, órgão da academia, publicam-se os melhores trabalhos. Já tinha a febre da comunicação social. Dois anos mais tarde, com o futuro bispo do Algarve, faria parte da equipa que criou A Voz do Alentejo, emissora regional da Rádio Renascença, sob a alçada da diocese de Évora.

Leitor de Teixeira de Pascoaes, o poeta que ligara a sua estética a uma utópica posição religiosa e congregara à sua volta um grupo de intelectuais como Mário Beirão, Henrique Granadeiro faz-se às recensões literárias. Escreve: “Raramente se encontram nos seus versos elementos puramente individuais. M.B. não nos oferece os seus problemas, as suas angústias, as suas tristezas, fracassos e alegrias. Podemos dizer que supera tudo isso para nos pôr perante problemas comuns, aos quais empresta a sua paixão e garra de verdadeiro poeta”. Henrique seguiria o estado de alma do poeta vida fora. Espreitar-lhe o coração ou medir-lhe o ritmo é empreendimento sem glória.

 

A renúncia ao sacerdócio

O seminarista está com 21 anos, terminara o 2.º ano de Teologia com média de 17 valores. Mais dois anos e seria padre – ou, como as notas indicavam, seria escalado para Roma para se formar em Teologia. Mas o jovem experimenta um sobressalto emocional, começara a questionar a vocação. Toma a decisão mais importante da vida e fala com Madureira Dias: “Via-se que estava em sofrimento mas foi claro e honesto. Disse-me que não se sentia motivado e o melhor era abandonar o seminário e seguir o seu caminho”. A sua saída foi uma derrocada dentro do seminário e em casa. Diz-se que cónego Lourenço foi quem se sentiu mais defraudado. Hoje, o professor quer tréguas: “Foi uma perda, mas via-se que ele deixara de estar enamorado pelo sacerdócio”.

Henrique sai da órbita da vida que até aí traçara, mas aquele momento manteve-se vivo na memória: «O meu desligamento podia ter sido muito traumatizante, tinham investido muito na minha formação, mas tive a sorte de encontrar um homem que me disse que, se não era aquela a minha vocação, agarrasse o meu futuro”.

Em casa, os pais ficam com a alma por um fio. Maria, a irmã mais velha, lembra-se como se fosse hoje: “A nossa mãe ficou muito magoada por ele não ter sido padre”. Mas a mãe, com a mesma disposição cristã para o perdão, acalma o marido, o mais ressentido com a mudança: “Mais vale ser um bom pai do que um ruim padre”.

No entanto, para o irmão do pai, o facto só lhe veio confirmar uma suspeita antiga. José Granadeiro saca do passado: “Nas férias, quando saía do seminário, comecei a vê-lo a espojar-se por cima dos sacos de trigo sempre que havia raparigas por perto. Nunca me enganou”.

 

Aluno de Sociologia

Em 1965, Henrique consegue finalmente controlar as injustiças da pobreza. Entra no Instituto de Estudos Superiores de Évora para cursar Sociologia. O instituto era financiado pela Fundação Eugénio de Almeida, criada pelo Conde de Vilalva, um mecenas. O nobre, de fortes convicções cristãs e humanistas, casado com Teresa Eugénio de Almeida, nunca tivera filhos e cedo pusera a sua riqueza ao serviço do desenvolvimento de Évora. Para formar as elites, chama os jesuítas, que ficam à frente do instituto. Henrique mantém-se muito acima da média. O padre Augusto Silva, que esteve à frente do departamento de Sociologia dezasseis anos, tira-lhe as sortes: “No palco público era reconhecido como o melhor aluno. Via-se que iria longe e dei-lhe 17 valores. Nunca mais voltei a dar essa nota”.

 Continua entre os melhores de Portugal, a cerveja Sagres não lhe retira o amparo, e a bolsa da Gulbenkian mantém-se. Enfrenta a vida com voracidade, nunca está satisfeito. Começa a dar explicações a alunos mais novos e inicia-se como professor no colégio das Doroteias, mais conhecidas por 'pombinhas engravatadas'.

 

O aprendiz de galã

Abre caminho nas melhores famílias de Évora. Com as mulheres começa a revelar manhas de sedutor secreto. Jeca Perdigão, filha de Armando Perdigão, presidente da Junta Distrital de Évora, sente-lhe a chama: “Eu era ainda adolescente e ele era muito culto e ajudava-me nos estudos. Além disso, era bonito, persuasivo e perspicaz. Houve entre nós um flirt, não passou disso. Mais tarde, o meu pai fez muito empenho, sem sucesso, no casamento entre nós”.

O universitário não perdera a vocação musical. Na Sé de Évora faz parte do coro de Polyphonia, dirigido por José Augusto Alegria. A voz do tenor é tão timbrada na música profana como na sacra. Mas é quando interpreta as cantigas de amigo de D. Dinis, que arrastam o drama dos amores por consumar, que mais faz vibrar os sentimentos ainda precipitados da rapariga: “Se do mal que me quereis / consolação desejais…”. As cordas emocionais de Jeca atingiam a intenção do trovador: “Tinha uma linda voz, cheguei a ir ao palácio de Vila Viçosa só para o ouvir”.

Para o aprendiz de galã, a música sempre foi a flecha de arremesso à alma feminina. Entre a erudita e a popular, a escolha é feita conforme a porta a que canta. Ainda hoje sabe de cor algumas, que larga com forte sotaque alentejano: “Deitei um limão correndo / à tua porta parou / o malandro do limão / parece que adivinhou”.

A pobreza do filho dos jornaleiros da Azenha da Várzea deixara de ser sinal de identidade. Num ápice, troca o quartito alugado onde vivera os primeiros anos de universitário por uma casa para onde leva os pais. Outra conquista daquela época foi o conhecimento de estudantes ligados às grandes famílias portuguesas. Entre eles, Fernando Martorell, da grande burguesia lisboeta, e José Manuel Espírito Santo, semente de grandes bancários. Desde aí, sempre que se encontraram nas suas errâncias, a cumplicidade tecida nessa época provocaria outro tipo de laços que resistiriam nas adversidades.

Os jesuítas, apesar da preocupação latente com a cultura, eram de uma extrema severidade em relação aos resultados escolares. Numa 'república', onde o grupo de Lisboa se instala, Henrique torna-se visita permanente. Talvez fosse por essa altura que ganhou uma devoção quase mística pelos ricos que tinham feito dinheiro à força do trabalho.

Espírito Santo, neto de um cambista, é educado pela família com o mesmo rigor dos antepassados. Em Évora, no final das aulas, vai trabalhar para a filial que o banco da família tem no Alentejo. Quando larga o expediente, ruma para a 'república' onde o grupo se reúne para estudar. Henrique pontifica entre os ricos: “Era inteligentíssimo. Acabou o curso com 17 e eu com 12, veja a diferença. Tornou-se o nosso mestre-escola”, diz Espírito Santo.

As novas amizades levam-no a entrar na esfera apertada do mundo financeiro. Cada vez se acentua mais o carácter do estudante, desenhador de estratégias e cenários infalíveis. Fernando Martorell ajuda a definir a complexidade do biografado: “Sempre fez uma gestão notável dos seus contactos”.

A vida social de Henrique acerca-se a outros mundos. Ao final da tarde, o grupo relaxa em caçadas na herdade dos amigos dos Espírito Santo e, aos fins-de-semana, é um dos convidados na Quinta do Peru, mansão que os banqueiros têm na Arrábida. Aí conhece Ricardo Salgado, cuja amizade, forjada nesta altura, serviria a ambos noutros périplos da vida. É também aqui que trava conhecimento com o pai de Espírito Santo: “Ficavam horas a falar, ele interessava-se pelos assuntos da banca e ouvia atentamente o meu pai. Estava sempre atento, não perdia nada”, recorda Ricardo.

 

O primeiro empréstimo

Foi nesta quinta que, em 1967, Henrique solicitou o seu primeiro crédito ao banqueiro: “Ti Manel, eu precisava que o banco me fizesse um empréstimo”. O outro, conhecedor de que, quando se destapa a máquina do dinheiro, sabe-se onde se começa mas não onde se termina, quer saber do destino que o rapaz vai dar ao capital: “A nossa função é emprestar dinheiro, agora diz-me lá como é que o vais aplicar”.

As informações já chegavam a Henrique por canais engenhosos. A empresa Cinorte, para competir com o grupo Champalimaud, prepara-se para construir uma cimenteira na Figueira da Foz. Henrique pretende empréstimo para investir em acções. O banqueiro replica: “E como é que depois me vais pagar?”. O universitário nem o deixa terminar: “Vai haver uma grande procura de acções e rateio, depois vai haver tentativas para constituir lotes maiores”. Mas o banqueiro não desarma: “Se vais pedir mil acções e no rateio te saem apenas cem, a mais-valia das cem não te chega para cobrir o valor do empréstimo!”. Henrique descalça-o com o orgulho dos que subiram a pulso. Não pretende o crédito para a totalidade das acções que vai subscrever: “Quero apenas uma garantia de crédito para honrar as que me couberem no rateio”. Negócio fechado. Outros se seguiriam nesse misterioso mercado dos valores mobiliários. Henrique arranca ao passado esse episódio: “Foi o primeiro dinheiro que recebi sem ser com o suor do meu corpo. Comprei logo um carro, um Carocha”.

O sopro quente que chega de França em Maio de 68 leva às universidades portuguesas uma temperatura perigosa. Em Évora, o instituto, liderado pelos jesuítas, de pedra e cal com as ideias renovadoras do Concílio Vaticano II, é uma espécie de laboratório de perversão política. A biblioteca dava para todos os gostos, desde os clássicos gregos aos apóstolos da revolução proletária. O melhor aluno de Sociologia, que aproveitava o que houvesse para amealhar tostões, passa-os a pente fino: “Era eu quem os catalogava, lia e ainda me pagavam”. Nas cadeiras áridas de ciências económicas, a leitura de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Friedrich Engels, é obrigatória. O padre Augusto Silva, coordenador do curso a quem o núcleo conservador da igreja local apelidava de 'padre vermelho', privilegia a consulta directa das fontes. O jesuíta, que considerava O Capital de Marx, pela linguagem densa e número de capítulos, uma grande maçada, não se coibia de proclamar junto dos universitários: “É tão grave não saber o catecismo como não ter lido o grande manifesto do Partido Comunista”.

No instituto, os jesuítas levavam à letra as encíclicas, e as estruturas de classe são discutidas em conferências. A verdadeira missão apostólica, mais perto dos operários que do poder, tornara-se clara. A inclusão da lei agrária nas encíclicas assenta, naquelas bandas submetidas à regra do latifúndio, como luva de couro a pele calejada. Liberais como João Salgueiro, Pereira de Moura ou Pinto Barbosa são convidados para as palestras. Henrique, aluno finalista, coordena umas jornadas dedicadas ao desenvolvimento do Alentejo. Estava do lado renovador da igreja mas não era um revolucionário. Augusto Silva guarda tudo em película da época: “Henrique era especial, já era um aglutinador de massas, mas nunca teve um espírito revolucionário. Um dia disse-lhe que ele tinha um lado demasiado discreto e ele respondeu-me que também tinha um lado bastante secreto”.

Com o desequilíbrio de Salazar na cadeira, a 'primavera' de Marcello Caetano indica acalmia nas incertezas da geração de Henrique: Nunca fui um agitador político, preocupava-me sobretudo com as desigualdades sociais e a guerra colonial, que se tornara uma questão indefensável”. Nesse ano termina o curso. Nas notas, a ceifa é abundante. Em Legislação do Trabalho arranca 18 valores, um ponto abaixo fica a cadeira de Relações e Organizações Internacionais. João Salgueiro, uma das apostas de Marcello, representa o Governo na cerimónia de encerramento do curso.

Entre o inferno e o céu

Ligado ao regime no 25 de Abril, regressa ao poder pela mão de Eanes. Casa com Margarida Marante e administra o Expresso, mas o destino faz-lhe figas e perde tudo. Regressará em força para vencer a OPA da PT.

Os homens da Companhia de Jesus continuam a ver no ex-seminarista bons prenúncios e querem-no perto do poder. O subsecretário de Estado do Planeamento, João Salgueiro, leva em conta as recomendações dos jesuítas, está impressionado com o currículo do filho dos camponeses da Várzea e lança-lhe o desafio: “Tinha sido um aluno distinto e perguntei-lhe se queria ir trabalhar para o meu gabinete. Aceitou e eu nunca me arrependi”.

Com as mulheres, Henrique mantém apegos equívocos. Apesar de ter namoro abençoado pela família com uma das filhas do chefe da estação de Évora, apresenta-se na gala com rapariga de outra estirpe: Jeca Perdigão. No livro de finalistas, vários amigos distinguem o Bogart alentejano: “Rapaz sem mas nem meias / Nos estudos altaneiro / Sorridente, prás Doroteias / Lá vai ele Granadeiro… / Mas não é só nos estudos / Mas cá muito em especial / Deixa-nos atónitos e mudos / Com as mulheres não tem rival…”.

Registe-se o nome da eterna noiva de Henrique como ‘Hera’, porque a rapariga, com quem o galã fez jogo duplo até aos quarenta anos, é ciosa da sua privacidade. Hera foi conquistada pelos versos que o Dom Juan, nos intervalos das aulas, lhe enviava. Mas isso nunca a impediu de tirar a métrica do seu coração: “É cerebral mais do que romântico. Enquanto namorou comigo teve muitas outras relações mas eu também tive. Foi como tinha de ser…”.

Francisco Zambujinho, amizade cimentada no instituto, foi dos seus raros confidentes. Unia-os a mesma condição e berço. O rapaz, filho de um carpinteiro e de uma doméstica, suportara com a mesma dignidade do outro as contrariedades da pobreza. Entre as histórias que partilharam e a realidade ficarão para sempre a luz e a neblina que as cumplicidades tecem. Por isso, nos capítulos do amor, Francisco evita pormenores, mas revela outra das suas vocações: “Com aquele ar de padre, exercia uma atracção fatal sobre as mulheres. A Hera esperou anos por ele. Nessa matéria foi sempre imprevisível até ao dia em que nos surpreendeu”.

 

Colhido por um novilho

Os finalistas tinham preparado a Queima das Fitas com muita circunstância. Espírito Santo move influências e consegue, nas herdades de amigos, quatro carros de cavalos. Organiza-se uma garraiada e o futuro cavaleiro João Moura vai à arena treinar os futuros doutores. A fiesta abre com um desfile. O recém-licenciado parece um verdadeiro matador de Sevilha. Na praça de Touros de Évora não falham distintos cavaleiros, tão-pouco espadas ou forcados. Entre os peões está Henrique, que nunca perde um momento para se distinguir e, com arrojo, decide enfrentar uma pequena vaca travestida de touro. A besta, com os ossos quase à vista, selecciona-o. De repente, o peão fica debaixo dela, que o espezinha com fervor. Valeu-lhe o divino Espírito Santo, ou seja, o amigo com o mesmo nome: “Corri para o novilho e dei-lhe um empurrão com tanta fúria que caí eu e o animal. Ele ficou em coma uma semana. Fez fractura craniana, esmigalhou duas costelas e um braço”.

Em 1969, Henrique, recomposto, estreia-se no Governo de Marcello Caetano, que já anda a ser beliscado pelos próprios fiéis. No Secretariado Técnico da Presidência de Conselho de Ministros, entra na Direcção de Planeamento Regional, onde prepara o lançamento das Comissões de Coordenação Regional.

A rebelião académica de Coimbra acabava mal, os líderes do movimento estudantil são incorporados na tropa, com o espectro da guerra de África a pairar. O Ultramar também é uma incerteza no futuro de Henrique: “Na minha geração já ninguém queria ir combater, e eu chegara a Lisboa convencido da abertura do regime e de que a guerra estava por um fio”.

 

Na tropa

Na capital reencontra antigos colegas do instituto. Com Francisco Zambujinho e mais dois confrades alentejanos aluga apartamento com quatro assoalhadas bastante acanhadas na Travessa de S. Plácido. O espaço é dividido por sorteio. Henrique fica com o melhor quarto, e Francisco dorme debaixo de umas escadas. À noite sucedem-se as farras. No quartel do Lumiar, onde tiravam a especialidade, conhecem Alberto João Jardim e Guilherme Silva, que se juntam às borgas. Uns levam salgados, outros cerveja e, claro, companhia feminina.

Um dia o ex-seminarista almoçava na messe de oficiais em Santa Clara quando vislumbrou Zambujinho e Guilherme Silva que, noutra mesa, exercitavam o paleio com duas filhas de um general. Juntou-se a eles. À noite, quando Henrique entrou no apartamento, viu os amigos com as duas jovens, que tinham levado uma amiga. Granadeiro não gosta da parte que lhe toca: “A que ficava para mim era um xaveco de primeira. Armei um trinta e um e fiz um discurso puritano, não fosse à conta deles ainda ser mobilizado”.

Miguel Cadilhe, que com ele fizera a recruta, percebia-lhe os temores, que eram tão grandes como os dele: “Ele punha água na fervura. A forma de encolher os ombros nos momentos agrestes denotava já uma filosofia muito particular. Foi essa forma de inteligência que o fez sempre vencer”.

 

Adjunto de João Salgueiro

O alentejano mantém o namoro com Hera, move influências e arranja-lhe o primeiro emprego em Lisboa. Soltos das amarras da província, os amigos fazem um curso intensivo sobre os segredos femininos. Aos fins-de-semana é um regabofe. Mas Henrique achou que tanta libertinagem já era imprópria. Zambujinho recorda como se fosse hoje um dos seus dos raros acessos de raiva: “Começou a desconfiar que nós usávamos a cama dele para as festas, enfureceu-se e mudou de casa”.

Entretanto, João Salgueiro, que elabora o IV Plano de Fomento, chama-o para adjunto. Traçam a estratégia do Governo a cinco anos para todos os sectores económicos da vida portuguesa. Henrique terminara o curso de oficial miliciano com média de 13,75 valores, mas Salgueiro não o quer dispensar e intercede por ele junto do Estado-Maior do Exército. O regateio não é fácil. A guerra não contemporiza. As respostas sucedem-se negativas.

A 20 de Agosto de 1970, João Salgueiro, que encontrara uma brecha no regime marcial, dirige uma missiva ao secretário de Estado do Exército e dá como exemplo Ângelo Correia, requisitado pelo Governo havia pouco tempo, que gozava de um regime de facilidades militares. Reivindica-se o mesmo para Henrique: “Trata-se, como é do conhecimento de V. Ex.ª, de técnico especializado em matérias de planeamento regional, cuja colaboração se torna muito necessária para a organização e lançamento da Comissão Plano Sul, com sede em Évora”. Um mês depois, o assunto fica despachado. Henrique acabaria por cumprir o regime militar em part-time.

 

Nas vésperas da revolução

O país não respira, a Europa olha-nos de esguelha. Os estudantes aproveitam a noite para esconjurar o fascismo. O ex-seminarista já não era o rapaz de antigamente. Apesar das ligações ao regime, frequenta um tasco onde impera o tenente-coronel Aventino Teixeira, a alma eternamente conspirativa que, mais tarde, no rescaldo da revolução, seria enxovalhado como traidor por Zeca Afonso. O militar arrasta o bigode de sempre, e a sua excentricidade arrasa a juventude: “Gostava-se dele só pelo que ele tinha de louco”. Travam amizade e, através de Aventino, conhece Adriano Correia de Oliveira.

Embora alheio à febre revolucionária que se vive, Henrique acompanha o bando. Uma noite, Correia de Oliveira, na escadaria da Aula Magna, incendeia os universitários com uma canção de Zeca: “O soldadinho já volta / do outro lado do mar…”. Henrique recorda com exaltação o momento épico: “Chegaram as tropas do capitão Maltês e varreram-nos à pancada”.

O alentejano amadurecera, está com 27 anos, mas em relação às mulheres continua a ter um comportamento peculiar. Hera, entre os amigos e a família de Henrique, mantém as alvíssaras de noiva, mas o ex-seminarista esbanja amores com outras. Não perdera o apego pela música, faz parte agora do coro dirigido por Sampaio Ribeiro, que ensaia uma vez por semana na capela-mor da Igreja do Carmo. Aí o tenor conhece Helena Vieira. Nada o parece desviar do trilho de conquistador: “Era um borracho”. A solista passa a fazer parte das pequenas partes dos seus dias. O Ad Lib está na moda, e o par interpreta com rigor os Beatles. O bigode tornara-se um dos atractivos do tenor. Helena Vieira vai de lanceta ao coração escorregadio do partenaire: “Tivemos um flirt e o bigode ajudou, tornava-o mais sedutor. Eu tinha vinte anos e estava muito encantada mas ele nunca se comprometia”. Quando, durante o dia, a cantora sentia as moinhas da saudade, tinha de reprimir a vontade de telefonar: “Sempre me pediu para não lhe ligar para o emprego. Mais tarde vim a perceber porquê: a namorada oficial era a única conhecida na Presidência do Conselho, e ele não queria que lhe descobrissem a careca”.

 

Na Sedes

Marcello não desata e, na Assembleia, a ‘ala liberal’ liderada por Sá Carneiro desembainha armas. João Salgueiro não acredita mais nos remendos do primeiro-ministro e abandona o Governo. Hoje faz a autópsia do regime: “Pensei que a minha saída até o ajudaria a repensar as reformas, mas ele achava que nós éramos muito impacientes”. Antes da saída, negociara a criação da Sedes, que iria ser fundamental na dinâmica dos liberais. Mas Marcello não perde de vista Salgueiro e convida-o para presidente da Junta Nacional de Investigação Científica. No seu pé, vai o discípulo Henrique, que fica como director de uma das áreas. Negoceia com entidades económicas os primeiros contratos de investigação aplicada. Carlos Portas, ex-assessor de Jorge Sampaio, conhece-o nessa época. Numa das reuniões, fica surpreendido com a preparação do jovem director: “Era claro, determinado e via-se que estudava os dossiês”.

Em 1973, nas legislativas, os liberais já estão de fora. Na Sedes, o grupo conspira. Henrique, pela mão de João Salgueiro, conhece Sá Carneiro e Francisco Balsemão que, na Time, é eleito como um dos jovens líderes mais promissores do mundo. A carteira de contactos do director aumenta, mas ainda olha para as questões políticas com estranheza: “Eu ali não passava do sacristão de João Salgueiro”. Mas é também aí que reencontra Marcelo Rebelo de Sousa e Luísa Leal Faria, actual vice-reitora da Católica, que compõem o pot-pourri. A rapariga, que está a acabar a licenciatura em Germânicas, integra-o no grupo: “Já se anunciava a criação do PPD, pensava-se no pós-marcelismo, e ele estava nesse contexto. Foi sendo protagonista de acontecimentos com associação à política, sem nunca se comprometer por inteiro”.

No amor, o homem tem o mesmo procedimento. Quando parece que o coração de Henrique já não tem espaço para novas conquistas, o galã arranja mais um cantinho. Luísa gostou dele no primeiro minuto. Filha de gente da grande burguesia alentejana, a rapariga ajeita-se aos comportamentos da época. O lance amoroso corria em casa sob o olhar atento dos pais: “Não era um namoro declarado, não havia nada em termos de compromisso, até porque ele nunca me escondeu que tinha uma namorada, de quem não conseguia libertar-se. Havia ali uma obrigação ética ou moral. Mas, no fundo, gostava de ser um solteirão desejável e foi ganhando o estatuto de homem difícil”.

 

Encontro com a condessa de Vilalva

A casa de Luísa é muito bem frequentada, um meio propício para melhorar a sua agenda social, agora na grande aristocracia. Teresa Eugénio de Almeida, condessa de Vilalva, faz parte das visitas. Henrique, com o tempo, limara as arestas de provinciano, é culto e inspira confiança. As mulheres não resistem ao seu fascínio, e a condessa torna-se sua protectora. Os pais de Luísa, esses, desconhecedores da sua vida dupla, andam encantados com os seus sólidos princípios e mantêm sonhos discretos. E ela ainda hoje não considera o seu comportamento desleal: “Eu nunca criei expectativas, mas a minha família alimentou a esperança de um casamento”.

Outra Primavera chegava, mas arrasta os cheiros que antecedem as grandes tempestades. Em Abril de 74 estoira a revolução. Henrique recebe a informação por alguém próximo de Aventino Teixeira. Do lado dos liberais, que aspiravam a uma mudança política mas controlada, ele não dissimula o seu desencanto: “Apesar de não termos conseguido uma mudança sem rupturas, a alegria do fim do regime, mesmo sem saber o que daí vinha, era contagiante”. Pela manhã, estaciona o Mercedes à porta da casa de Hera e seguem para o Carmo. Deixa a noiva no carro, e entre soldados revoltosos e o povo incrédulo pisa o passeio comum dos cravos. A mulher, com lancetas de cirurgião, disseca-o: “Estava feliz mas agiu sempre de forma discreta. Nunca lhe conheci, aliás, outra forma de estar na vida”.

Muitas coisas tomaram forma nesta época, outras desmoronavam-se. O país divide-se em dois glaciares: PS e direita de um lado, PCP e radicais de esquerda do outro. A direita reage. Depois da barafunda do 28 de Setembro, segue-se o 11 de Março. A ala revolucionária do MFA tem a pólvora que precisa para a queima das bruxas. Forma-se o Conselho da Revolução, que nacionaliza os sectores básicos da economia. A banca está na calha. Henrique, na Junta de Investigação – onde é amigo do irmão de Melo Antunes, o ‘marquês vermelho’ –, mantém os laços com Aventino Teixeira e tem acesso a informação privilegiada.

 

Defesa de Espírito Santo

Não cai nos cambalachos ideológicos da época. Quando o cerco se aperta em torno da família Espírito Santo, que não escapara aos mandados em branco do COPCON, põe o coiro em risco. Chega no momento em que os banqueiros ainda estão detidos: “Estavam a ser enxovalhados e cuspidos. Obriguei a Polícia Militar a metê-los no carro e fui vê-los sempre à prisão”. Espírito Santo, que a mando de Otelo vê o sol aos quadradinhos durante quatro meses, ainda honra a panache do antigo colega de instituto: “Nessa mesma noite foi a minha casa para proteger a minha mulher e as minhas filhas”.

Henrique já não precisa de iludir a realidade, ajusta-a às suas ambições. Continua na Junta Nacional de Investigação, mas não quer ficar fora do palco a que pulara com legitimidade. Com fé na estrela que o tem acompanhado, concorre ao lugar de director-geral da Acção Regional no Ministério da Administração Interna. Vive-se o IV Governo Provisório e o major Costa Braz, uma das cabeças da revolução, é o ministro. Na equipa de Henrique está Jorge Coelho que, no Técnico, sem ser aluno, participara nos comités marxistas-leninistas. O ex-maoísta gaba a dinâmica do seu superior: “Limpou as autarquias de norte a sul e foi uma lufada de ar fresco num Ministério que era muito conservador e estava abafado. As Câmaras eram meras repartições e com ele passou a haver transferências”.

O PREC divide o país. O ‘grupo dos nove’, liderado por Melo Antunes, tenta travar extremismos. Com ele estão todos os grandes partidos, à excepção dos comunistas e da direita. E também a nata militar, que conspira de casa em casa. António Ramalho Eanes, um spinolista que no xadrez do 11 de Março deixara suspeitas de ligações à direita, aproximara-se em bicos de pés.

Henrique, como é seu estilo, não se compromete mas não tira o corpo de fora. Apesar de ser considerado por Melo Antunes como um perigoso liberal, empresta o seu pequeno apartamento em Campo de Ourique para as reuniões conspirativas. Ali fazia-se história todas as noites. Costa Braz, que faz a ligação entre o grupo operacional e os civis, reúne à porta fechada: “Criei um grupo de coordenação militar para a eventualidade de algum burburinho”.

No plano militar, Ramalho Eanes é, com Alípio Tomé Pinto, quem passa a dar cartas. A conspiração urde-se pela calada, sobre um barril de pólvora. Henrique, mesmo à distância, assume riscos. Quando os conspiradores chegam a sua casa, há pão, queijo e chouriços na mesa. Tomé Pinto, o cérebro do 25 de Novembro, não lhe tira os galões: “Se houvesse uma denúncia, podiam mandá-lo para Caxias e alegar que estava contra a revolução”. Mas nem sempre tudo corre bem. Uma noite, ao regressar a casa, Henrique fica à beira de um chilique: “Queimaram uma quantidade de papéis com álcool, o fogo alastrou e pegou-se à laca dos armários lindíssimos. Iam incendiando a casa”.

 

Com Eanes

 

Novembro travara as incandescências do ‘Verão Quente’ com três mortos, mas evita a guerra civil. Como de um manual de prestidigitador, Eanes abafa os mentores do golpe e galga o Estado-Maior do Exército. Aproxima-se o primeiro sufrágio universal. Costa Gomes, a escolha de Melo Antunes, balda-se. Eanes salta para a ribalta.

Na campanha eleitoral, o general tem, entre os compagnons de route, gente de várias proveniências. O nome de Henrique chega aos seus ouvidos pelo maoísta Aventino Teixeira – e pouco tempo depois calcorreará com ele o país.

Em Évora, simpatizantes de Otelo, que também está na corrida presidencial, atiçam o ambiente. Ouvem-se tiros. O general trepa para o tejadilho do carro. Na calçada alentejana fica um civil morto. Dentro do carro, vai Granadeiro: “Não vi quem atirou. Nesse momento a minha preocupação foi aguentar o Eanes”. Medeiros Ferreira, que fora expulso pela PIDE de todas as universidades e se exilara na Suíça, reconhece-lhe a têmpera: «Esta foi uma das viagens mais difíceis da campanha e partiu da iniciativa de Henrique”.

Eanes chega a Belém com mais de 60 por cento dos votos. Henrique faz parte do elenco principal do Presidente, que não hesita na escolha: “Tinha preparação cultural e política, inteligência, juventude e ousadia”. Medeiros Ferreira, futuro ministro dos Negócios Estrangeiros, equaciona-o entre os pesos da entourage: “Pensava bem e era independente nos juízos. Reproduzia o papel do bom provinciano com qualidades tecnocráticas, variante do ‘homem bom’ das Cortes”.

 

A morte da mãe

A doença da mãe coincide com a sua ascensão. Ela tinha sido até aí a sua grande cúmplice, nenhuma mulher lhe roubaria o lugar. A velha ceifeira sucumbe lentamente a um carcinoma. Ele desdobra-se pelo estrangeiro com médicos de renome e Hera acompanha-o durante os quatro anos de agonia. Intuindo o fim, a mãe pede-lhe que honre o compromisso com a namorada. Mas ele não o faz: “A minha mãe não me pediu que casasse mas sim que clarificasse as coisas. Não o fiz e sinto que lhe prejudiquei a vida”.

Henrique Granadeiro denuncia cada vez mais a sua natureza. Na sua vida as mulheres acabam por reproduzir o abrigo da saia feminina que o criara na infância. No fundo, é um solitário que impusera uma ruptura com o passado para poder trepar ao mundo. Na casa de Luísa estendem-lhe a tapeçaria do consolo: “Ele ficou logo enquadrado na família, tinha uma grande ternura pela minha mãe, que tratava por ‘mãe Ana’”.

Com a idade de Cristo, Henrique estreia-se em Belém. Como secretárias, leva duas amigas de Luísa. São os seus primeiros passos no curso geral da democracia. O primeiro discurso presidencial, que abre despique com Mário Soares, passa pela sua caneta. Seguiram-se outros, igualmente duros. A cada quinta-feira discutem-se os temas da semana. Primeiro a problemática, depois a ‘solucionática’, trocadilho de Eanes. Com António Macedo de Almeida, contratado para os assuntos jurídicos, a afinidade de Henrique é espontânea. O juiz passa a ser tratado por Henrique como o ‘pequeno génio’. Vindo de Angola, maneja o dossiê de Macau e segue de perto todas as reuniões, inclusive com o Conselho da Revolução. A informação, canaliza-a depois para Granadeiro: “Ele era o elemento mais influente, até nos discursos. E criava os canais de comunicação com os partidos e a comunicação social”.

A democracia recém-nascida é escrutinada no estrangeiro. Henrique sabe-o e, como qualquer bom estratega, adianta-se: “Era preciso tirar a política da rua e pô-la nas instituições. Tirar os militares da política e pô-los nos quartéis”. Prepara visitas de Estado ao Brasil, à ONU, aos Estados Unidos e à CEE, e desencanta contactos de ouro. Para a indigitação, por exemplo, do engenheiro Nobre da Costa como primeiro-ministro, foi ele mesmo ao Algarve. O seu voto tinha peso até nos consensos mais delicados. Macedo de Almeida assemelha-o ao cardeal Richelieu, arquitecto do absolutismo e primeiro-ministro de Luís XIII: «Até a demissão do Governo de Mário Soares tem o seu dedo».

 

A saída de Belém

Ia adiantado o mandato. Só que os rumos ínvios em Belém não apontam mudanças. Carlos Macedo, assessor para os assuntos políticos e sociais, acusa o toque ao fim do primeiro ano: “Estávamos convencidos de que o general ia limpar um pouco o esquerdismo. Mas quando percebi que ele estava nas mãos dos melo-antunistas e dos pintasilguistas, apresentei a minha carta de demissão”. Falou na altura com Granadeiro, que coincidiu na opinião: “Eu defendia uma visão liberal, com uma ligação ao empresariado, e o general hesitava entre esta solução e um compromisso com o Partido Comunista”.

Só mais tarde, em 1979, se desfez o equívoco. Depois de um jantar de Estado na Ajuda, passa-se a uma amena cavaqueira. E o Presidente da República mostra perante todo o staff que quer ver o colaborador pelas costas: “O dr. Granadeiro é que era uma excelente solução para ministro da República nos Açores”. Henrique engole em seco. “Foi um indício claro de que me queria despedir”.

Granadeiro faz da sugestão solução e concorre para director da FAO. Ganha. Então Eanes, apanhado desprevenido, acena-lhe com o cargo de embaixador na OCDE. O general explica: “Manter o dr. Granadeiro seria cortar-lhe um processo de aprendizagem que ele merecia e desejava, visto que a nova situação política permitia-lhe um nível mais reduzido de intervenção. Governar é saber libertar”. A explicação não convence Henrique – que, com carta de alforria, revela segredos de polichinelo. Lidar com Manuela Eanes tinha sido um bico-de-obra: “Fiz alguns discursos que ela se permitiu emendar. Era muito metediça e eu nunca gostei de mandar a meias”. Macedo de Almeida vê na sua partida um vazio. Mas não se surpreendeu: “A certa altura, começou de forma autónoma a acumular poder. Quando saiu já tinha um peso político próprio”.

 

Em Paris

Nas mãos das mulheres ficam os preparativos da partida de Henrique para Paris. Hera vai com ele à Vista Alegre para tratar das faianças: “Comprámos serviços de copos e de jantar”. O ex-chefe da Casa Civil ia substituir na embaixada o irmão da condessa de Vilalva. E é esta quem se desloca à ‘cidade das luzes’ e dá o requinte final ao principesco palacete. Henrique continua a controlar o destino com a mesma voracidade. A pequena delegação é rampa para novos contactos, desta vez a nível mundial. Eis o seu ponto de vista: “Foi mais importante passar pela OCDE do que ter feito um mestrado”.

A França estremece com o choque petrolífero. Giscard perde para Mitterrand. O embaixador passa os dias absorvido em comités. Ao seu lado, como assessor de economia, está Fernando Ulrich, futuro presidente do BPI. A disciplina herdada do seminário e as lições dos jesuítas fortaleceram as regras que comandam o seu raciocínio: “Ele tinha a cabeça bem arrumada, era ambicioso e determinado, mas não queria ser diplomata”.

Os serões, esses, têm outra cor. Na sua moradia de três andares, plantada no square de l’Avenue Foch, frente ao palacete de Carolina do Mónaco, revela-se um exímio anfitrião. Convidada, Luísa lembra o requinte: “Foram servidos faisões, inteiros, que ele tinha caçado com gente conhecida da Europa. Um jantar espectacular”. Para ele as conquistas eram um sinal de distinção masculina. Nas manhãs geladas, de capote alentejano vestido, passeia o Tobias, um perdigueiro alemão, e cruza-se diariamente com a princesa do Mónaco na praceta. “Um dia eu quis meter conversa, mas o Tobias atacou-lhe os cães e ela desatou a chamar-me selvagem”.

A sedução tornara-se nele um estado natural que também exercita com os homens. Recebe em casa velhos amigos como Rebelo de Sousa e artistas como Manuel Cargaleiro. O famoso costureiro Carlos Wanderson e a baronesa Beutling, da Holanda, graças à qual se cruzou com a cobiçada princesa Ira de Furstenberg, também dão lustro ao palacete.

Numa recepção dada pela baronesa ao embaixador australiano Donovan, Henrique marca presença. Fica dividido entre a princesa e a filha do diplomata: “A filha era muito gira, mas, como eu era solteiro, fiquei sentado ao lado de Ira, com quem tive uma grande conversa”. A história galgou fronteiras, amigos íntimos deram-lhe forma de romance, mas o protagonista remete-se ao secretismo dos bons amantes: “Apesar da fama, não piquei nada”. Ainda desfilaram depois pelo Algarve, com recepção pomposa de Joaquim Silveira, que, de passagem por Paris, desviou o solteirão até ao Moulin Rouge: “Ele não saía muito, mas gostava de muitos restaurantes e apreciava aquilo”.

 

Nos negócios

Sá Carneiro morrera num acidente de avião em Camarate. A Aliança Democrática passa um mau pedaço. Henrique regressa a Portugal e, perante as dificuldades que o PSD vive, decide filiar-se. Em Janeiro de 1981 tomara posse o primeiro Executivo de Pinto Balsemão. Numa festa na Quinta da Marinha, o primeiro-ministro, que já o desafiara para a militância, dá um passo maior: “Quem deveria ser ministro da Administração Interna agora era você”. Não colheu: o ex-seminarista manteve sempre dois pés na terra e um olho no céu. Tem um enorme poder de evocação, coloca o sotaque alentejano: “Estamos no Natal, não no Carnaval”.

Henrique regressa a uma das suas primeiras vocações: vira-se para o negócio. Conhecera durante o PREC o magnata Joaquim Silveira, que só se salvara da lista negra por ter posto o seu avião privado ao dispor dos apetites da carne dos agitadores de todos os extremos: “Até o major Vítor Alves o usou para se encontrar com a mulher no Algarve. O jacto ficou conhecido pela ‘puta de Tires’”.

Silveira, prole de sapateiro sovina, começara no teatro, onde pintou e desenhou cenários até entrar como desenhador na Câmara Municipal de Lisboa. Aí, com informação privilegiada do esquema urbanístico, fizera com 37 contos o seu primeiro negócio.

Henrique troca o interesse público pelo privado. Com Silveira, na MN Tiago Construções e na Proconstrói, recebe as ferramentas para se estabelecer: «Aprendi com ele onde se pode pegar no negócio e onde está o valor acrescentado». Ao mesmo tempo, assume a administração da Standard Eléctrica, em Cascais, tendo aí o primeiro contacto com as telecomunicações.

Mas não se fica por aqui.

 

Regresso às origens em Évora

Pela mão da condessa de Vilalva, regressa às origens. Por morte do marido, a condessa tornara-se usufrutuária de certos bens e elegera Henrique para recuperar as terras da Fundação Eugénio de Almeida que a reforma agrária retalhara. Mas Granadeiro não reúne consenso. O cónego Pereira da Silva dá a pincelada: “Teve muita gente contra porque diziam que ele não tinha conhecimentos de gestão e vinha de uma classe muito baixa”. O advogado Sertório Barona, um dos administradores da fundação e professor de Henrique no Instituto de Évora, não esquecera o talento do pupilo e dá-lhe o aval. Carta verde teve também do presidente, o arcebispo de Évora, D. Maurílio.

Sá Carneiro criara um plano alternativo para o latifúndio. Algumas herdades da fundação estavam nas mãos de cooperativas e de seareiros. A primeira batalha era obter um despacho do ministro da Agricultura, António Barreto, para a reconversão do património agrícola. Numa jogada de mestre de leis, Sertório Barona transforma a fundação numa instituição de utilidade pública. Falta pôr em ordem a casa agrícola – e aí é a vez de o advogado aplaudir Henrique: «Conseguiu reaver seis mil hectares e produzir muito mais do que os bons agricultores da zona. Observou, viu e passou a fazer diferente».

Henrique não vira costas a conflitos. No seu carro percorre as herdades sem temer confrontos. Muitos agricultores, com o ganho do dia-a-dia preso a contratos precários, ficam na corda bamba com a desocupação, que soou a recuo da utopia lançada pela revolução. Francisco Pereira, que tinha um negócio de vacas na herdade da Cabida, lado a lado com a cooperativa comunista, cospe fogo quando fala do assunto: “Calhou-me um monte através de conversa da minha mulher com a condessa, mas os comunistas nunca saíram de lá. Quando as terras foram divididas, fiquei à espera de contrato”. Recebeu 80 hectares e torceu o nariz. “Queria meter a gente na herdade da Aparícia, a 80 quilómetros de Beja. Bati o pé, estava entalado com as máquinas. Às tantas, arranjou-nos o campo da Mira por favor». Consta naquelas bandas que tinha duas pistolas para matar o homem da condessa de Vilalva, mas não passou de desabafo: «Se calhar, com uma não falhava”.

Joaquim Almeida, outro seareiro, não ficou menos indignado quando recebeu o aviso do novo administrador-delegado, em 1981. Dizia o papel: “As herdades da Cabida e do Freixo foram restituídas à Fundação. Nesse sentido, solicito-lhe que não ponha quaisquer obstáculos aos funcionários que vão ser encarregados da gestão e exploração dessas propriedades”.

Joaquim começara a tocar gado bem cedo, e tinha recebido um quinhão de terra na Cabida, com promessa de arrendamento. Veio a desocupação e calhou-lhe uma parcela na Herdade de Cabaços, também da fundação. Na dúvida, foi certificar-se junto do novo administrador, que o tranquilizou.

O homem semeou então uma seara. Mas um ano depois chegou a surpresa: “Veio um carro cheio de gente do tribunal e fui acusado de ocupar a terra. Corri para o tribunal e colhi a seara sem ordem. O homem é um vigarista profissional, não olha a caminho para subir”. Granadeiro explica: “A maior parte dos seareiros foram colocados noutras terras do Estado. Quem quis, teve, alguns não quiseram porque não tinham vocação para aquilo”.

Na cooperativa comunista houve menos baixas. A convite de Granadeiro, muitos foram repescados para a fundação. Joaquim Pardal esteve lá 25 anos e não esquece: “Quando ocupámos as terras, não havia uma vaca nem um tractor. Ele arranjou uns tractores velhos para a aldeia dos Machados. Foi sempre nosso amigo”. José da Eira, outro agricultor, tornou-se-lhe fiel: “Em Agosto, fazia excursões para os trabalhadores da cooperativa, alugava duas camionetas e passeávamos três dias em Fátima”.

Na fundação, Augusto Silva, um dos pais espirituais de Henrique no Instituto de Évora, partilha agora com ele a administração. A exploração dos vinhos por parte da fundação seria um ataque forte às cooperativas, e Augusto Silva colocava-lhe algumas objecções de ordem social. Mas Henrique faz contas e deita mãos à obra. “Nenhuma UCP foi um modelo de gestão, e não faltavam engenheiros e economistas no PCP. Só que eles faziam daquilo um refúgio de fim-de-semana em vez de virem para cá trabalhar como eu”.

Hoje, é a vinha o motor da instituição, garantindo 80 por cento das receitas. Valeram-lhe bons técnicos da Universidade de Évora, como o enólogo Colaço do Rosário, e João Freire, engenheiro agrónomo que conhece bem a arte: “A uva é transportada em caixas, passa numa mesa de escolha, e estagia em madeira e na garrafa durante três anos. Na nova adega da Cartuxa não se usam bombas para não dilacerar a película e evitar um gosto desagradável”. Num ano apenas, plantaram 33 hectares de vinha. “Na altura, com o orçamento baixo da fundação, pensámos que era uma operação arriscada, mas o Henrique foi muito audaz”, louva o agrónomo. A remodelação da adega valeu três milhões de litros de vinho, e o êxito dos topos de gama Cartuxa e Pêra Manca.

 

O encontro com Margarida Marante

Em tudo o que viveu e fez, Henrique Granadeiro nunca deixou de ser notado. Aquilo era nele uma questão de hábito, ou melhor, uma disposição adquirida na infância. Em 1984, o seu nome pula para os ecrãs da RTP no programa Primeira Página, conduzido por Margarida Marante, jovem estrela da TV. Diz-se, entre amigos, que meteu cunha para entrar no debate sobre a situação agrícola no país. A vedeta parecia a única força capaz de romper o alheamento que Henrique mantivera com as grandes paixões, sentimento que rouba sempre traços do carácter de quem ama. Em tempos, quando era ainda um menino de escola e gostava de ouvir histórias dos pastores, um tocador de gado aconselhou-o sobre a posição que os homens deveriam ter face ao matrimónio. Hoje, depois de ter pisado o inferno, relembra-o: “Dizia que um homem só se deveria casar com alguém que gostasse mais dele do que ele dela. Tinha razão”.

Antonieta Barona, mulher do advogado, apimenta: “Fosse em que situação fosse, mesmo a meio de um jantar, quando o programa começava ele ficava preso, com ar embevecido, ao ecrã”. E a história começou. Depois do programa, convida Margarida para almoçar e surge de ramo de flores: “Falou-me de Agricultura e convidou-me para ver a obra que estava a fazer na fundação”. Margarida Marante está com 24 anos. Filha de um funcionário bancário lisboeta, licenciou-se em Direito. Aos 18 anos já colava cartazes das brigadas do PSD.

Daí a ser recebida pelo administrador nas terras da fundação foi um curto passo. A cena é de western, o cenário assemelha-se. O quarentão desafia-a para um passeio a cavalo. O lusitano é escolhido a dedo. Recorda Margarida: “Perguntou-me se sabia montar bem a cavalo, achei o animal monstruoso e muito inquieto. Estava em fase de cobrição, mas consegui aguentar-me”.

O amor aparecia na vida de Henrique como um fenómeno inusitado. Nos afectos, o homem mantivera-se escorregadio: nem com elas, nem sem elas. É Hera, que até aí suportara as contrariedades de um amor sem chama, quem o apanha em flagrante. Certa noite, ao passar na rua dele, vê-o a sair com Margarida do apartamento. E assim encerrou o capítulo de eterna noiva: “Comboios destes já eu apanhara muitos”.

Mas o alentejano, de forma sui generis, era leal. Difícil foi conciliar os princípios em que fora criado com a frivolidade que o sucesso arrasta. Nas vésperas do casamento, não dormiu. Os fantasmas do passado que mimara na memória atormentam-lhe a despedida de solteiro. De madrugada bate à porta de Hera: “Chorava como uma criança. Não sei se estava arrependido ou com problemas de consciência”. Como quem limpa o pó de uma velha relíquia, Henrique põe em freio livre as lembranças: “Era uma mulher extraordinária, com um instinto maternal bastante acentuado e provavelmente não teve filhos por minha causa. Sinto que lhe estraguei a vida”.

 

No Congresso do PSD

 

Maio de 85. Na Figueira da Foz realiza-se o XII Congresso Nacional do PSD, que anda nas ruas da amargura. O património de Sá Carneiro não tem herdeiro. Os descontentes organizam-se em grupos rivais. Cavaco Silva não deixava escapar um nico das suas intenções, e João Salgueiro é o nome de que se fala para salvar o partido. Henrique está mais uma vez com Salgueiro e, de mão dada com Margarida, rumam à Figueira. As páginas do semanário Expresso dão a vitória a Salgueiro, que aparentemente não tem adversário. Henrique confessa: “Estávamos demasiado confiantes, pensávamos que eram favas contadas”.

Creditado por Eurico de Melo, Fernando Nogueira e os ‘jovens turcos’ Santana Lopes e Durão Barroso, no dia seguinte Cavaco Silva era o homem forte do partido. João Salgueiro, quando recorda o fracasso, não deixa de colocar Granadeiro no cenário da vitória: “Se aquilo tivesse ido em frente, Henrique teria um bom lugar como ministro nas áreas que dominava”.

Em 1987, o resultado eleitoral consagra Cavaco. Entrados os primeiros fundos comunitários, o país engorda. Desta vez é o amigo Miguel Cadilhe, ministro das Finanças, que o chama a presidente do IFADAP: “Confiava nele e nas suas qualidades de liderança. Conhecia muito bem o sector agrícola, fruto da sua ascendência”.

Henrique continua a empreender. O então ministro da Agricultura, Álvaro Barreto, também lhe mostra cartão verde: “Ele consegue respostas mais eficientes para os agricultores e o pagamento das ajudas previstas com rapidez”. Nasce então a primeira Sociedade de Avaliação de Empresas e Risco. Enquanto o Norte gere o monopólio do leite, a grande lavoura do Alentejo e do Ribatejo tem o impulso de Bruxelas. O ministro explica os contrastes do país: “Muitos projectos não se adaptavam com facilidade ao minifúndio do Norte, como a aplicação de pivôs de rega”.

Henrique demite-se em 1990, na onda da remodelação Barreto-Cadilhe-Leonor Beleza, assinada por Cavaco. “Tenho a certeza de que não me ia dar bem com o futuro ministro da Agricultura, Arlindo Cunha, que tinha uma visão paroquial do sector”.

O IFADAP era o sítio certo para negócios ilícitos. Antes de sair, o presidente já tinha acertado contas com alguns técnicos que sabotavam a avaliação dos projectos para extorquir dinheiro aos agricultores. Muitas cartas chegavam mesmo através do gabinete do primeiro-ministro. Henrique criou a Direcção de Inspecção e Auditoria, e nunca condescendeu: “Despedi mais do que um”.

 

Regresso à fundação pela mão do arcebispo

Em 1989, o arcebispo de Évora dá-lhe o voto de confiança e fá-lo seu representante na presidência da Fundação Eugénio de Almeida. A coisa não cai no goto à aristocracia eborense e logo cresce uma chacota surda. Fala-se em ‘afundação’ do património de Eugénio de Almeida. Os sinais de despeito começaram logo após a devolução do património, que até aí estava em paradeiro incerto. Henrique, que por hábito corta a direito, é condescendente com a condessa, simples usufrutuária.

Sertório Barona faz flashback: “Ela chegou lá um dia e disse ‘quero isto de volta para mim’. Eu insurgi-me, porque ela estava a tentar um aproveitamento pessoal em relação aos administradores. Mas para a silenciar o conselho deu-lhe algumas benesses, não com a minha chancela”. Enquanto este bate com a porta, Henrique Granadeiro, em nome dos velhos tempos, tolera o capricho, avalia os direitos de usufruto e aceita a fasquia avançada pelo perito da fundação: “Endividei a fundação por causa dela, que depois não honrou os compromissos”.

Em pleno cavaquismo, os estatutos da instituição abrem um lugar no conselho à Universidade de Évora e, por direito, entra o reitor, à data Alfredo Duarte Júnior. Sobre Henrique recai uma estranha suspeita, mas Sertório Barona mantém-se vigilante: “A fundação tinha recebido legalmente gado excedentário de uma cooperativa extinta, e acusaram o Henrique de manobras ilícitas para o obter”.

A guerra pela liderança do conselho instala-se quando o arcebispo delega em Granadeiro. Quem não o conhecesse bem teria pensado que ali terminava tudo. Mas tratava-se apenas de uma trégua para recuperar fôlego. Augusto Silva adivinha-o pelas alterações do seu silêncio – e parafraseando D. João II comenta: “Henrique Granadeiro sabe definir a situação e combina como ninguém os tempos de coruja e de falcão. Sabe esperar quando está na mó de baixo e ataca quando tem os trunfos todos na mão”.

Alfredo Júnior sai de cena e vem o professor António Pinheiro aliar-se à condessa numa queixa-crime. Querem saber mais: “Quem autorizou o pagamento na forma de bens e que bens da fundação de lá saíram, e com que preços, para realizar a compensação pecuniária de cinco mil contos ao então administrador-delegado dr. Henrique Granadeiro, devendo também averiguar-se que montante em dinheiro foi recebido pelo empregado Francisco António Mateus da Silva [contabilista de Henrique] e se tal montante retornou na íntegra para a fundação”.

Em causa estavam o uso de bens e serviços da fundação em proveito de Henrique Granadeiro, através de um subsídio que havia recebido em 1987, como previa o contrato. Em 1995, as contas da fundação – desde o saco de aveia ao pedreiro requisitado para trabalho extra na Calada, a herdade pessoal de Granadeiro – são passadas a pente fino pela Judiciária. Mas a Polícia conclui: “Encontra-se devidamente registado na contabilidade da fundação um conjunto de fornecimentos de bens e serviços a Henrique Manuel Fusco Granadeiro (…). O valor foi integralmente liquidado, não se concluindo ligação com a atribuição de um subsídio de 5000 contos que a fundação liquidou em quatro prestações”.

O padre Augusto Silva, que nunca foi injusto com o pupilo, tira ou deita a farpa como bom jesuíta: “A dada altura ele aceitou certos comportamentos da condessa”. Mas Henrique acabaria por distanciar-se do passado e cai para o lado da Igreja. O padre aplaude: “Ele é um precioso colaborador, mas um perigoso opositor”.

Nas páginas do Público, Granadeiro é crucificado. Hoje, não poupa o jornal: “Qualquer movimento do processo era transmitido ao Cerejo. Houve 22 notícias que deram a entender que eu era um ladrão. Cometi o único pecado proibido no Alentejo, o do sucesso”.

 

No Expresso

 

O tempo tem compassos certos. Esperavam-no outros reinados em Lisboa. Em 1990, Francisco Pinto Balsemão entrega-lhe a Sojornal. Luís Vasconcellos sobe a número dois no grupo, e Henrique passa a governar o barco Expresso. Nesse ano o semanário atinge a maior tiragem de sempre: 200 mil exemplares. E os lucros chegarão ao milhão de contos. José António Saraiva, o arquitecto que se iniciara no jornalismo no Comércio do Funchal, o jornal cor-de-rosa da esquerda radical madeirense, recorda: “Foi durante a sua vigência que se publicaram os famosos Guias do Expresso, e foi ele quem viabilizou o célebre saco de plástico, que possibilitou o aumento exponencial do número de cadernos e um boom comercial sem precedentes”.

As primeiras decisões do administrador permitiram engrenar uma máquina gerida até aí de forma quase doméstica. Henrique Monteiro, que também seria director do semanário, dá-lhe o toque humanista: “Introduziu maior controlo nas despesas e fê-lo de forma dialogante”. A mudança é transversal, sendo revisto o vínculo precário de muitos colaboradores. Miguel Veiga, outro administrador, tira a prova: “Fazia relatórios muito bons, procurava informação e passou a ser uma figura preponderante naquele conselho”.

Quando Luís Vasconcellos e Balsemão contratam os consultores da Heidrick & Struggles e da espanhola Innovation, Saraiva foi a voz de protesto: “Nenhuma direcção gosta que entrem uns consultores pela porta dentro a dizer como se deve fazer. Aceitámos mas não gostámos”. Henrique, conciliador em tempos de paz, acalmou os ânimos. Miguel Veiga recorda: “Os espanhóis eram muito severos e minuciosos e Henrique soube lidar com isso. É fiel à legenda de Da Vinci, fruto do seu obstinato rigore”.

Com a redacção, a abordagem não surtiu efeito imediato. Para os jornalistas, um administrador não é uma figura simpática. Recorda-se de que no primeiro jantar ficou sozinho à mesa. Quem o salvou foi Joaquim Vieira. Mas a paciência não é um défice nele, subiu os degraus a pouco e pouco. Saraiva foi testemunha: “Era capaz de estar 10 ou 15 minutos a contar uma história, com vagar, ao ritmo da província”.

 

A saída do Expresso e o divórcio

Em 1997, o semanário dá uma reviravolta. Balsemão opta por homens com perfis técnicos mas sem cadeiras na lição humanista. Mário Lopes, gestor vindo da área automóvel, toma o lugar de Henrique. José António Saraiva noticia as razões: “A certa altura, o dr. Balsemão quis dar uma feição mais tecnocrática à estrutura do grupo”.

Parecia que a estrela que até aí bafejara o caminho de Henrique se escondera. O casamento com Margarida, de quem tem três filhos, desfaz-se. A relação da jornalista com Emídio Rangel é um escândalo nacional. Como vampiros, os jornalistas deliciam-se com os despojos das vítimas: casamentos, divórcios e troca de namorados do jet set fazem manchetes.

No ermo das tagarelices sociais, Henrique tenta sobreviver: “Estava convencido de que todos olhavam para mim cada vez que saía à rua. Demorou muito tempo a engolir”. Margarida fica com os filhos, aferra-se a um novo amor, que mais tarde consumiria os protagonistas num escândalo feroz. Henrique, tomado pela honra cavalheiresca, aparece na SIC sem se fazer anunciar. Emídio dá de caras com o adversário, que lhe faz aviso solene: “A partir deste momento, ganhou um inimigo. Se fizer mal à Margarida ou aos meus filhos, terá de se haver comigo”.

O desfecho profissional precipita-se. “O dr. Balsemão não tinha forma de equacionar o interesse de ter o Rangel como motor da SIC e eu como motor da Impresa. Senti que estava numa sala onde não podia levantar-me”. Para soterrar as memórias, Henrique vende a herdade da Calada, abandona o lar e, durante 15 dias, deambula por hotéis da capital. O amigo Miguel Sousa Tavares deu-lhe um triplo conselho: arranjar um sítio onde acordasse com a cabeça sempre para o mesmo lado, limar os pormenores e confiar no tempo. E ele levou-o à justa: “No dia seguinte, fui à Molaflex comprar um colchão e instalei-me no meu escritório da Luciano Cordeiro, onde fiz obras de adaptação”.

 

Na Lusomundo

Dois anos depois, o coronel Luís Silva convida-o para o leme da Lusomundo Media, antes de o cilindro ser engolido pela PT, mas Henrique decidira afastar-se dos holofotes dos media e aproveita para limar a carreira. No fundo, recuava aos tempos de coruja, para ganhar fôlego. Lança-se no filão dos mármores, apegado à memória do pai, e compra a Marmetal. Antes, já tinha passado pela empresa Marcepor, mas a nova empreitada também não vingou: “Perdi praticamente todo o dinheiro que tinha, não foi brincadeira”.

Assim estava a sua vida quando, em finais de 2001, regressa ao palco com outra conquista. Ricardo Salgado e o Banco Espírito Santo, accionista maior da Portugal Telecom (PT), abrem-lhe alas na empresa, onde se fixa como administrador na Lusomundo Media. Ricardo Salgado, homem difícil de satisfazer, não o chamara por fidelidade aos velhos tempos: “A TV Cabo é uma empresa importante onde a Impresa, do dr. Balsemão, tem um contrato relevante. E como o Henrique o conhecia muito bem, tudo fez sentido”.

Em 2004, Durão Barroso, convidado para outros voos, passa o barco do Governo a Santana Lopes. A comunicação social dá os sinais do tempo. O Diário de Notícias e a TSF estão feridos de morte, e Henrique faz cortes, aposta na mudança. Atravessara o drama do divórcio, que suportara com estoicismo e dignidade dos católicos à antiga. Apaga ressentimentos e, para projectar a rádio, contrata Emídio Rangel, que caíra em desgraça na SIC, aposta em José Fragoso para arrumar as prateleiras e dá emprego à ex-mulher.

O Jornal de Notícias também dá uma guinada. O director, José Leite Pereira, sublinha-lhe a competência: “Ele pôs uma fasquia muito alta e apostou com o director de publicidade um almoço. Quando o valor foi atingido ao fim de um ano, convidou todos os comerciais, publicitários e a direcção para almoçar na sua herdade. Recebeu-nos principescamente”.

Mário Bettencourt Resendes, director do Diário de Notícias, recebeu uma carta do administrador assumindo o compromisso de respeitar a liberdade editorial, solicitando apenas um pré-aviso em caso de informação sensível para a empresa: “Surgiram algumas notícias incómodas para a PT, informei o dr. Granadeiro, que nunca me pediu para alterar nada”.

O 24 Horas leva enxaquecas ao Governo. O controlo da imprensa é desencantado por todos os naipes políticos. Santana Lopes exige a cabeça de dois jornalistas. Pedro Tadeu, que esteve na calha do despedimento, faz zapping: “Houve óbvias pressões políticas sobre o dr. Granadeiro para pôr na ordem os jornais da PT mas ele opôs-se à interferência, o que lhe poderá ter custado o lugar. Poupou-me a isso”. A liberdade é uma íntima satisfação: “O Santana Lopes pressionou-me através de Morais Sarmento. E eu disse que era gente a mais para despedir, que era melhor despedirem-me. Às vezes é preciso engolir sapos”, relembra Henrique.

As versões neste tipo de matéria nunca coincidem. Miguel Horta e Costa, presidente da PT, contesta: “Nunca na vida tive qualquer conversa com qualquer governante sobre coisas desse tipo”. E seria o mesmo Horta e Costa a bater o telegrama que levaria Henrique para a prateleira, pincelada a dourado. “Foi convidado para o lugar de um administrador que saiu, mas por incompatibilidades formais acabou por deixar a Lusomundo Media e assumir duas posições: administrador executivo da PT Multimédia e presidente da Fundação PT”. Na retaguarda, Henrique soube decifrar a mensagem: “Era uma forma de não ter poder”.

Valeram-lhe aí as leis da infância e os amigos. Entendeu o silêncio dos Espírito Santo e desabafou com Francisco Zambujinho, que recorda: “Ele estava a fazer um bom trabalho e ficou magoado com muita gente”. Mas o homem não era do género de esmorecer. Fernando Martorell, antigo colega de instituto, recorda o sábio leitor do mapa astral: “Não te preocupes que ainda hei-de ser presidente da PT”.

 

O salto para o topo da PT

 

E o que tem de ser ninguém desarranja. Zeinal Bava, presidente da PT Multimédia, feito administrador com apenas 33 anos, repesca-o. O engenheiro, de origens indianas e passado trilhado em Moçambique, fora lançado nas universidades inglesas para cimentar berço. Com currículo na alta finança internacional, torna-se carta forte no baralho do grupo. Convida Henrique para o pelouro das relações institucionais.

Após o xeque-mate à OPA, mérito de ambos, Bava deitará um nadinha de cicuta no desempenho de Granadeiro: “Foram anos bastante úteis para ele. Era auscultado como alguém que dava um ponto de vista diferente. Mas duvido que nessa altura aspirasse a ficar no grupo ou sequer ser o CEO da PT”.

Mas nos bastidores o futuro de Henrique já era discutido para voos mais altos. Os candidatos ao lugar são de peso e escutam o nome do filho dos camponeses da Várzea com a impertinência de quem nasceu com pergaminhos. Francisco Gonçalves, presidente da Comissão de Trabalhadores, com quem Henrique negociou logo que assumiu funções executivas, assume os rumores: “Dizia-se já que seria ele o novo presidente por indicação e confiança do BES. É um liberal, seguidista da Escola de Chicago, mas com uma visão humanista da sociedade”.

Santana Lopes afundara o partido nas suas geringonças. Em 2005, o país aplaude Sócrates. A PT, monopólio entrincheirado, é alvo de regulações sucessivas. Ricardo Salgado, que sabe que o sucesso empresarial é um prodigioso trabalho de engenharia económica, prepara a mudança: «Era preciso alterar alguns hábitos e reduzir custos». E Henrique volta ao palanque dos vitoriosos, que é onde gosta de estar.

O Governo não se opõe. Miguel Horta e Costa perde para o alentejano, que estagia três meses na comissão antes de assumir o comando. Para Martorell, a ascensão do amigo não foi casual: “É um self made man, quando se lhe mete uma na cabeça é difícil que não aconteça”. Outros não engoliram a nomeação e batem em retirada, como o empresário Patrick Monteiro de Barros e o coronel Luís Silva.

 

A OPA

O ano seguinte não é propício a aventuras. Em Fevereiro, a Sonae joga rasteiro. A OPA é lançada sem aviso. O grupo oferece a bagatela de 9,5 euros por acção. Os accionistas da PT balançam, a Telefónica e o Santander viram o jogo. Belmiro, habituado a criar, provocar e manipular os factos económicos, mantém-se inabalável na oferta durante um ano. Depois de, numa entrevista a Judite de Sousa, assegurar que só aumentaria o preço se encontrasse petróleo ou diamantes em Picoas, tem de pôr o dito em conserva. Sobe mais um euro, e Henrique, na RTP2, adopta a sobranceria do homem Sonae: “É pouco”.

O mundo gira segundo os caprichos dos empresários. Henrique exercita a veia absolutista, acumula poder. É chairman e CEO. Rápido na estratégia, promete seis mil milhões de euros aos accionistas à custa da venda de um dos cilindros do grupo, a PT Multimédia. Reúne o exército e, com Zeinal Bava, então vice-presidente, desencantam parceiros blindados. O mexicano Carlos Slim, da Telmex, o homem mais rico do mundo, que garante quatro por cento das acções, é um dos aliados. Também o fundo Brandes reforça a barricada. Ricardo Salgado assegura o feudo: “A maior qualidade de Henrique foi ter convencido os accionistas portugueses de que valia a pena defendermos a fortaleza”.

A 2 de Março de 2007 a OPA é enterrada. Mesmo longe, a família encomenda-o nas suas orações. O irmão Anacleto tem um dia de cão. Não pára quieto e enfia-se na igreja oferecendo velas para que se cumpra o seu desejo: «Estive a rezar à Nossa Senhora de Fátima na Igreja de Reguengos de Monsaraz. Quando soubemos o resultado, foi uma alegria, acabou-se o sofrimento!”.

Em Lisboa, na assembleia geral dos accionistas, as feições descontraem, mas a guerra da sucessão é recolocada com o spin-off. “O engenheiro Bava é uma estrela e quando há uma estrela na equipa as coisas ficam mais difíceis”, analisa Ricardo Salgado. Mas acrescenta: “Henrique Granadeiro é extremamente inteligente e tem outra qualidade que nós, banqueiros, apreciamos muito: a discrição”.

Henrique sabe que as grandes decisões são esculpidas na dureza do silêncio. Zeinal Bava faz-lhe continência: “Sou um soldado e sou leal ao meu presidente. Não vou fazer nada que ponha em perigo essa lealdade, que é de sangue”.

A transição será em Março. Mas Henrique, que desde cedo intuiu que o poder não se partilha, mantém-se soberano até nas concessões: “A decisão de nomear Bava presidente executivo foi minha, e vou ser substituído no cargo por vontade própria. Já trabalhei com ele e sempre nos demos bem. Se houver faísca, o presidente do conselho de administração sabe o que deve fazer”.

Mal começou a manobrar o navio, Henrique manteve a proa a direito: baniu uma delegação em Bruxelas e outra nos EUA. Nos caminhos do poder há sempre algo que se perde e é irrecuperável. Sessenta administradores e 600 quadros são despedidos. Nesses momentos, ressuscita o pai nas filas de homens que mendigam emprego na praça das frutas, em Estremoz. E ele sabe que vai ter de lançar mais gente ao mar: “A PT vai ter de emagrecer mais”. Optou pelo livre exercício da riqueza e armou o coração. Espírito Santo atenua as contrariedades: “Ele parece uma pessoa fria, mas tem uma chama lá dentro”.

 

Balanço provisório

Hoje, quando se faz o balanço da sua vida, até os inimigos são cautelosos. Dos vários que amealhou desde que entrou na Fundação Eugénio de Almeida até romper com a condessa de Vilalva, ninguém se alçou para lhe esfiapar a reputação. Apenas Rosado Fernandes, incondicional de Teresa Eugénio de Almeida, se assanha ainda quando lhe ouve o nome: “Como diz o anticlerical Brito Camacho, pior do que um padre é um que já o foi”.

Na terra onde nasceu, honram o apelido Granadeiro, mas em São Mansos ficou registado como um traidor da sua classe. Henrique tem um dos seus poucos arranques espontâneos, carrega a voz do sotaque da sua gente e lembra uma conversa com Álvaro Cunhal, quando abandonou a Casa Civil do Presidente.

Cunhal, que sempre fora recebido por Granadeiro com abertura, disse-lhe um dia: “Intriga-nos como é que, com as suas origens, não é um dos nossos”. Henrique, de imprevisto, recordou a Cunhal a situação oposta: sendo de origem burguesa, o líder do PCP defendia os proletários. E concluiu: “Eu também sou pela libertação das pessoas da servidão da terra”.

Pouco tempo depois da separação de Margarida Marante, voltou a casar. E, na herdade dos Perdigões, perto de Reguengos de Monsaraz, harmonizou-se com os afectos. Com a primeira mulher honrou, até hoje, os sacramentos católicos. No melhor e no pior esteve sempre a seu lado. Ela retribui, escondendo as lágrimas: “Optei por uma paixão e preteri os interesses dos meus filhos. Se pudesse voltar atrás, não os teria privado de crescerem sem o pai”. Mesmo as outras senhoras, que para ele não passaram de uma pequena estação no seu carril sentimental, não lhe prendem rancor. Hera, o seu caso mais insólito, concebe: “Penso que se manteve igual a ele próprio. Nunca mais nos encontrámos mas não lhe guardo mágoa”.

Entre os amigos, é Miguel Cadilhe quem melhor decifra o seu interior impenetrável: “Tem um coração de leão, olho de falcão, paciência de monge e astúcia de mouro”. Marcelo apanha a dica mas vai mais longe: “Poucos tiveram o seu percurso. Esteve muitas vezes, e merecia, próximo de desempenhar funções governativas, não aconteceu e foi uma perda para o país. E depois de acabar a época PT o que é que irá fazer? Não aceitará nada do PS porque não é a sua família política e, se o PSD for poder, também não aceitará nada porque nunca conseguirá reconhecer-se nele”.

O biografado, por seu lado, mantém-se insatisfeito: “Fui convidado dez vezes para ministro e uma para primeiro-ministro, e nunca aceitei. Mas tenho fome, quero mais”.

felicia.cabrita@sol.pt e sonia.graca@sol.pt