Nos tempos da Tia Ana (como é conhecida na empresa) este era um trabalho sazonal. O som da ronca fazia-se ouvir num raio de vários quilómetros. Um aviso que o mar tinha sido generoso e que a sardinha esperava para ser trabalhada. Cláudio Ribeiro, director comercial, conta que “vinham pessoas de todos os lados e trabalhavam até o peixe acabar, às vezes pela noite dentro. Ganhava-se pelo que se trabalhava. Hoje as fábricas têm que ser criativas para manter a produção activa”. Parte dessa criatividade deve-se também à nova fase que este sector vive e que não pensa a conserva como um produto de cesta básica. Cláudio continua explicando que esta nova moda “veio abrir os olhos dos portugueses para as nossas conservas. Em Hong Kong, por exemplo, porta-sim, porta-sim vende-se para o mercado gourmet, há muitos anos. E são usadas por conceituados chefs e restaurantes de luxo”. Marilúcia Faustino, herdeira da marca, relembra entre risos e indignação que, em tempos, “cheguei a ver nos manuais escolares dos meus filhos, que as conservas eram mantidas com produtos químicos. E isso é mentira, claro. Hoje sabe-se que é um produto saudável”. Explica que os conservantes são um produto desnecessário no processo. “É um sistema de esterilização. Depois de se cravar os dois alumínios, a lata vai a altas temperaturas e fica sujeita a um método de arrefecimento. Isto mata todas as bactérias e, por isso, não há decomposição”.
Marilúcia refere que a inclusão da data de validade nas latas é um fenómeno recente e que, apesar de respeitarem todas estas novas regras, ainda hoje, em sua casa, come conservas com data de validade expirada. “São as melhores, porque estão mais tempo a curtir. O sabor é completamente diferente. Se tivesse que matar, já estava morta”, conta entre gargalhadas.
Mas 1989 foi um ano decisivo para a PortugalNorte, que esteve prestes a fechar as portas. Foi António Faustino – que com 84 anos ainda é visitante diário da fábrica – que a adquiriu e lhe mudou apenas o nome. “Os funcionários são os mesmos da altura. Está tudo igual. Nessa época a indústria passou um mau bocado, por causa de uns acordos que a União Europeia fez com Marrocos e hoje somos poucos, mas a produção aumentou para toda a gente que resta”, conta a proprietária.
Factos históricos à parte, é no mercado externo que a PortugalNorte escoa grande parte dos seus produtos, desde a sua origem em 1912. Apenas 10% da produção fica em território nacional. O responsável comercial diz que “em Portugal o mais importante é fazer barato, por isso não estamos no mercado nacional de massa. Estamos apenas em lojas de especialidade. Concentramo-nos no estrangeiro, onde tentamos manter-nos e crescer. Estamos em países como Macau, Hong Kong e no sul da China, nas Filipinas e Israel, onde já fomos condecorados”. As inscrições multilingues impressas nas latas de Porthos (a sua principal marca), que vão do mandarim ao árabe, atestam que mercados bastante distantes têm um peso considerável nos negócios desta fábrica. “Só para ter uma ideia, estamos no mercado asiático há mais de 85 anos, com esta imagem”, explica enquanto nos mostra uma lata vermelha, com caracteres orientais e com design retro. “Por estas bandas (apesar do nome ser Porthos) a marca é conhecida por 'velhote'. Por isso, sempre mantivemos a mesma imagem. Há alterações nos aspectos técnicos da lata, mas com o mesmo visual. E hoje é mais actual que nunca, pelo retorno ao 'retro'“. Mas independentemente do aspecto, das cores e da língua, têm um denominador comum: “Em todas elas diz 'sardinhas portuguesas'“, conclui a proprietária.
Sabor a tradição
“Para falarmos na crise da indústria conserveira, temos de recuar 50 anos. Tinha eu uns 8”, começa por contar ao SOL António Pinhal, da terceira geração de proprietários da marca Pinhais. “Nessa altura apareceu por aqui um fornecedor, que veio ter com o meu pai e lhe prometeu um carro, para ele trocar de fornecedor de azeite. A proposta era tentadora, porque um carro era um bem de luxo e o azeite era bem mais barato, mas o meu pai recusou. Outros conserveiros aceitaram”. O que parecia ser um 'negócio da China' revelou-se a ruína para muita gente. “Pouco tempo depois percebeu-se que o azeite estava adulterado e cheirava mal. Milhares de contentores de conservas, que saíram para exportação, foram devolvidos. Isto abalou muita gente da indústria”. Esta decisão do então proprietário, também ele António Pinhal, revelou-se lucrativa a longo prazo e marcou uma pauta, que se tem mantido na marca: investir na qualidade no presente, para lucrar no futuro. “Querer ganhar logo pode ser a ruína de um empresário. As que fecharam eram todas idênticas a esta”, desabafa o filho. Mas este foi apenas um dos primeiros episódios que viriam a abalar a indústria. Posteriormente, apareceram muitos outros: “A União Europeia, as indústrias marroquinas, as quotas, as exigências sanitárias… tudo isso contribui para o cenário que temos hoje em dia”, continua António.
A sardinha e a cavala têm a exclusividade nesta fábrica, que produz apenas para as suas próprias marcas (90% para exportação), adaptando o peixe ao tipo de mercado. “A França e a Dinamarca adoram o azeite e o tomate nas conservas, já a Bélgica e a Áustria preferem o picante”. O método continua artesanal e o produto é sempre fresco, garantido a qualidade de outrora, embora esta opção exija um esforço acrescido. “Aqui só há sardinha fresca – não há frigoríficos – por isso precisamos de matéria-prima para trabalhar. Quando escasseia, andamos pelas lotas de todo o país. Nunca abandonei este processo, por conselhos dos mais antigos”, declara o empresário.
Na Pinhais trabalham 100 pessoas. 80 são mulheres, que cortam e embalam o peixe, porque “elas têm mais jeito para este trabalho delicado” e das suas mãos saem cerca de 20.000 latas, diariamente. Número variável e que depende do tamanho e da quantidade de peixe que chega dos mares portugueses. Nos momentos de escassez de peixe as mãos das funcionárias dedicam-se a outros labores, também eles manuais. “Quando a matéria-prima é escassa, a fábrica não pára. Há o 'empapelamento' manual. A lata é embrulhada com papel, fita-cola e celofane”, conta António, mostrando uma das latas da marca Nuri. “Temos também o encartonamento, para as lojas gourmet, que é hoje uma moda que se reflecte nas vendas. Creio que terá a ver com os turistas. Por isso temos que ir alterando a imagem”. Esta fica a cargo de outro António, a quarta geração de herdeiros. “Ele já tem outra visão e a questão visual é importante”, diz referindo-se ao filho.
Matosinhos, nos arredores do Porto, em tempos uma vila de pescadores, vive hoje uma nova realidade: “É uma cidade dormitório. No meu tempo havia 60 fábricas que empregavam 6.000 pessoas”. Mas entre as paredes da fábrica da Pinhais, o tempo parou. Os azulejos das paredes, a escadaria em caracol e as bancadas de mármore, onde o peixe é cuidadosamente cortado e enlatado, são um testemunho de que, aqui dentro, pouca coisa mudou. A arquitectura, a qualidade do produto e até o nome dos proprietários, apesar de estar na quarta geração, mantém-se o mesmo: António Pinhal.
Os olhos também comem
“O meu pai era muito amigo do senhor António Pinhal, que lhe dizia sempre: 'Menino, tu não vás para a quantidade, tu vai para a qualidade, faz como eu'“, conta Paulo Dias, proprietário da La Gôndola, uma das quatro indústrias conserveiras que resistiram às vicissitudes do sector. Daqui saem todos os anos quatro milhões de latas. Também aqui cerca de 90% desta produção é para exportação. Os principais compradores são países como o Brasil, Itália, Japão, Bélgica, Canadá ou EUA. “Embora o mercado português fique com uma pequena percentagem do negócio, o gourmet veio abrir novas portas para esta empresa”. O gestor deste negócio familiar, claramente direccionado para o segmento de mercado mais elevado, conta que, “de repente, o nosso público-alvo começou a aparecer em Portugal. Mas andámos sozinhos durante algum tempo”. Além da marca própria, vendem os seus produtos para outras marcas internacionais e nacionais, como é o caso de José Gourmet. “O mercado está recheado de marcas, mas as fábricas são muito poucas”.
Criada nos anos 30 do século XX, pelas mãos de empresários italianos, a fábrica foi adquirida pelo pai de Paulo, depois do 25 Abril de 1974, um momento difícil para a indústria. “Estivemos com a semiconserva (salga) durante muitos anos. No fim dos anos 80 demos o salto para as conservas e hoje continuamos com elas”, explica o empresário. Mas a recente crise significou um aumento do consumo das conservas de sardinha e de atum e, com isso, surgiu a necessidade de procurar novos produtos, de forma a manter os postos de trabalho e os volumes de produção. “Como trabalhamos com a sardinha portuguesa ficamos sujeitos à situação do mercado e não tem sido fácil. Nem em preço, nem em produção. Desde 2011 que a captura da sardinha tem baixado de uma forma drástica”, justifica.
Dos carapaus às trutas, passando pelas lulas, filete de peixe-espada preto, polvo, bacalhau, sem esquecer as ovas de sardinha, “o caviar português”, a oferta é variada. “Temos processos implantados, à antiga portuguesa. Confeccionamos com peixe fresco e pré-cozido. Só aproveitamos o peixe quando ele está no seu melhor momento. Se for preciso esperar, esperamos”. Atento às tendências dos mercados, o proprietário mostra-se ainda satisfeito com a edição especial de lata, que tem como protagonista o trabalho vencedor do Concurso Sardinhas Festas de Lisboa'14 e por serem pioneiros em Portugal na produção de conservas biológicas. “É uma tendência cada vez maior, principalmente na América do Norte e na Alemanha”.
O processo da La Gôndola começa no mar e acaba na fábrica, como descreve Paulo Dias. “Atrás de nós está a PROPEIXE, a maior organização de pesca do país em termos de sardinha e de cavala, que detém 50% da fábrica. Todos os dias 21 barcos saem para a faina. Nós abastecemo-nos com os nossos próprios barcos. Existe uma garantia que o peixe vem dos nossos barcos e do nosso mar. Isso é muito importante”.
Com os olhos no futuro
Sebastian Ramirez, andaluz, chegou a Vila Real de Santo António em 1853. Veio para Portugal para investir na indústria têxtil e na salga do peixe, mas cedo reconheceu o potencial do embrionário sector conserveiro. 160 anos depois, a marca que criou já passou por três séculos, está em mais de 50 países, emprega 250 funcionários e produz 250.000 latas por dia. Manuel Ramirez, a 5.ª geração de Ramirez e administrador da marca, conta que “Sebastien era um homem empreendedor. Em 1945, o meu avô Emílio, que lhe seguiu os passos, deslocou a sede do Algarve para Matosinhos. Na altura havia mais de 380 fábricas em Portugal e chegou a ser um dos primeiros sectores de exportação no país. Hoje há 20 no país e quatro aqui”. Refere que o segredo da longevidade da “mais antiga fábrica de conservas em laboração do mundo” é a inovação. “Sei por relatos do meu pai e avô, que sempre investimos em alturas difíceis. A compra de frigoríficos, por exemplo, permitiu que a produção se mantivesse todo o ano e que não fosse sazonal”, diz Manuel.
A Ramirez tem uma gama de 55 produtos e comercializa 24 marcas. Apesar de disseminar os seus produtos um pouco por todo o mundo, o mercado nacional significa 40% das vendas. Ainda assim, a moda do mercado gourmet veio alavancar o negócio. “São volumes escassos de vendas, mas interessa-nos do ponto de vista da marca e da comunicação. Nos últimos cinco anos atravessámos uma profunda crise e houve um ressurgir dos valores e das imagens do retro português, que foi um dos grandes veículos deste boom. Hoje conseguimos pulverizar marcas, que antes não se conheciam em Portugal”. Como é o caso da Cocagne líder na Bélgica desde 1906 e uma espécie de reserva. “Fazemos um produto de alta qualidade, guardado cerca de seis meses nos nossos armazéns. Os belgas dizem que é uma marca nacional belga, mas sai de Matosinhos e de Peniche. Nunca a mudámos. Apenas aumentámos as variedades”.
A Ramirez é hoje uma das raras empresas familiares de quinta geração, que ultrapassou e cresceu na convulsão de dezenas de revoluções, da queda de impérios e de duas grandes guerras mundiais. Num contexto de crise económica mundial, a construção de uma nova unidade fabril está em curso e alicerça a estratégia de crescimento e contínua inovação. A nova fábrica, que representa um investimento de €18 milhões, permitirá duplicar a capacidade da unidade actual. Terá ainda um museu, alusivo à sua história empresarial em Vila Real de Santo António, Olhão, Albufeira, Setúbal, Lisboa, Matosinhos e Peniche, bem como uma plataforma de divulgação e degustação das mais diversas propostas de conservas de peixe.
Degustar as novidades
Situada numa discreta rua da Baixa do Porto, a Central Conserveira da Invicta, orgulha-se de ter nas prateleiras todas as marcas nacionais de conservas. É a única loja da cidade que se dedica a este produto de forma quase exclusiva e aqui, todos os dias, se dá a provar uma iguaria diferente aos clientes. “Diariamente temos uma degustação de uma especialidade das que temos à venda na loja e falamos um pouco sobre esse produto em concreto. Toda a gente conhece o atum e a sardinha em lata, mas há coisas fantásticas, com receitas próprias que temos gosto em dar a conhecer”. Quem o diz é Ricardo Silva, o proprietário, que depois de vários anos dedicado à publicidade, mergulhou no negócio das conservas. A menina dos seus olhos é a marca Cego do Maio, criada por si e que apresenta uma vasta variedade de receitas, que homenageiam a tradição gastronómica portuguesa. Entre elas há confecções de sardinha, anchovas, ovas, carapau, cavala, entre outras. Todas feitas na fábrica de conservas A Poveira, situada na Póvoa de Varzim.
A loja tem atraído todo tipo de público, principalmente desde que o Porto se tornou num concorrido destino turístico. Mas se por um lado os estrangeiros vêm à procura do que lá fora já é reconhecido, há muitos anos, como um produto de qualidade, por outro lado os 'turísticas nacionais' também não resistem a entrar, ver e comprar. “Há uma espécie de revivalismo, que talvez esteja associado à crise. Nestes momentos difíceis, os elementos da nossa infância dão-nos um certo conforto”, conclui Ricardo.