Devaneios ociosos de quem não se encontra perante o choque concreto; a verdade é que ninguém sabe do que seria ou não capaz em situações-limite.
A morte surpreende-nos e assusta-nos, embora seja a única coisa segura que temos na vida; se nos habituássemos a viver com esse alerta permanente aceso entre o consciente e o subconsciente, talvez aprendêssemos a ser mais felizes (e menos cobardes, o que seria logo uma alegria). Comigo, pelo menos, o exercício tem resultado; quando começo a enervar-me com as pequenas e médias injustiças ou decepções do quotidiano, acendo o cronómetro interior e decido não dar importância ao pivete do mal – que, embora pareça granuloso, também se desfará em pó um destes dias.
Deixando que a sombra da morte me faça companhia, tenho esperança de me tornar também mais capaz para detectar a ronda do desespero nos olhos dos outros e, de algum modo, auxiliá-los a rir e a sobreviver ao apelo do abismo.
De resto, é por isso que escrevo – para adiar e contornar a morte. Sei que sobre esta esperança cairão os rótulos de candura ou presunção; porém, com a idade, deixei de ter paciência para os que troçam da candura e se pretendem despidos de presunções – façam bom proveito do rame-rame desse hamburger composto pelas sobras da inteligência que é o cinismo.
Quando alguém se suicida, ao espanto da morte soma-se uma espécie de culpa, mais ou menos forte consoante a proximidade que tínhamos da pessoa que escolheu morrer. Nesta terça-feira em que escrevo suicidaram-se uma mulher que eu conhecia desde há muitos anos e um actor de cinema que eu admirava também desde há décadas. Interrogo-me sobre o perigo de contágio que pode ter a notícia do suicídio de uma figura de sucesso.
O eufemismo da ‘doença prolongada’ quando alguém morre de cancro é simplesmente estúpido e hipócrita; mas, em caso de suicídio, creio que a ocultação do motivo da morte protegerá muitos desesperados por esse mundo (e não só os jovens, como paternalisticamente se costuma dizer). Se nem ele aguentou, porque hei-de eu aguentar? Se ele teve coragem para se matar, também eu hei-de arranjá-la. Etc., etc. A infelicidade tem artes de se fazer solidária, sobretudo em abstracto.
Nunca saberemos se o suicídio foi realmente uma escolha ou o ímpeto de um momento de pânico específico. Penso nessa mulher ainda nova e apaixonada pela literatura que fui encontrando pela cidade, em celebrações culturais diversas.
Os livros não conseguiram salvá-la, provavelmente porque o trabalho em torno da literatura – revisões, traduções, textos – é miseravelmente pago. Vergonhosamente: abaixo do serviço doméstico. E escasso, cada vez mais escasso. Cada suicídio contém um enigma e uma acusação. Sei é que são cada vez mais os portugueses de mérito atirados para o lixo e os videirinhos sem escrúpulos catapultados para os diversos mandos. E isso gera um universo árido onde a vontade de viver se some – mesmo ou sobretudo quando o Sol brilha, indiferente, num céu longinquamente azul.
inespedrosa.sol@gmail.com