Repouse em Paz

Hesitei muito antes de fazer esta crónica, porque Emídio Rangel não me era uma personagem simpática. Essa ‘antipatia’ não resultou de nenhum preconceito ou parti-pris, pois de início tinha boa impressão dele. Mas a vida afastou-nos irremediavelmente.

Decidi, no entanto, escrever após a sua morte, porque nos cruzámos em momentos decisivos da comunicação social em Portugal e acompanhei factos cujo conhecimento público terá algum interesse.

Uma das primeiras vezes que me falaram de Rangel foi em 1988, quando a TSF estava para ser lançada. Teresa de Sousa, minha jornalista no Expresso, descreveu-me com entusiasmo esse projecto (em que viria a colaborar), porque tinha em grande conta o seu impulsionador: Emídio Rangel.

De facto, a TSF revolucionaria a informação radiofónica em Portugal, confirmando a previsão de Teresa de Sousa e a capacidade de Rangel para lançar projectos.

Julgo que a segunda pessoa que me falou de Rangel foi Margarida Marante. Ela trabalhava na altura num escritório de advogados nas Amoreiras, e a sede da TSF era na mesma torre. Referiu-se a Rangel com grande admiração, realçando o seu trabalho na rádio de uma forma tão entusiástica que me pareceu haver ali algum fascínio. Que, de facto, haveria de confirmar-se anos depois.

Mas eu nunca tinha estado com Rangel pessoalmente. Um acontecimento fortuito propiciou, entretanto, esse encontro. Um dia, num jantar do Prémio Pessoa, no Hotel de Seteais, Francisco Pinto Balsemão veio falar-me, preocupado, de uma notícia difamatória que iria sair a seu respeito no extinto semanário Tal & Qual. Como ele estava hospedado no hotel em regime de 'clausura', pediu-me para tentar evitar a publicação.

Não conhecendo ninguém no Tal & Qual, lembrei-me de telefonar a Emídio Rangel, que sabia ser amigo de pessoas de lá. Liguei-lhe, convidei-o para almoçar no Pabe, contei-lhe o que se passava, ele concordou que a notícia envolvendo Balsemão era da esfera pessoal e não tinha interesse público, dispondo-se a interceder. E, de facto, a notícia não saiu.

Contei depois a Balsemão o sucedido, realçando que ele ficara a dever um favor a Rangel. E daí a umas semanas Balsemão convidou-o, efectivamente, para uma conversa que teve lugar no seu gabinete do Expresso, na Duque de Palmela, em que também participei. Balsemão fez-lhe várias perguntas sobre a TSF – e não sei se terá nascido aí o seu interesse pela estação. Balsemão falava, há muito, da importância de ter uma rádio no seu grupo. E o certo é que, não muito tempo mais tarde, formalizaria a intenção de adquirir a TSF. O negócio, porém, gorar-se-ia, visto que – segundo me explicou – a estação estava afogada em dívidas e era economicamente inviável.

Em 1992, nas vésperas do nascimento da SIC, Balsemão convidou-me para um almoço no English Bar, no Estoril, cujo tema não antecipou. Depois de estarmos sentados à mesa, disse-me que já tinha um director de programas para o futuro canal de TV – a Maria Elisa – e perguntou-me se eu tinha alguma ideia sobre quem poderia ser o director de informação. Respondi espontaneamente: “O José Eduardo Moniz”. E adiantei: “Contrata um bom nome e rouba o director ao seu principal adversário, a RTP”. Mas Balsemão levantou objecções. Disse que Moniz não encaixava no tipo de informação que estava a pensar para a SIC (mais próxima do modelo brasileiro) e a conversa ficou por aí. Combinámos novo almoço no mesmo local para a semana seguinte, em que ambos traríamos propostas. Não sei exactamente a data deste almoço, só posso adiantar que se tratava de uma quarta-feira, pois era esse o dia da semana em que Balsemão ficava em casa a trabalhar, na Quinta da Marinha, pelo que lhe dava jeito almoçar na zona de Cascais.

Encontrámo-nos, de facto, uma semana depois, e mal nos sentámos à mesa Balsemão perguntou-me: “Então, já tem um nome?”. “Já – respondi -, o Joaquim Vieira”. Este era na altura meu director-adjunto no Expresso, o que levou Balsemão a retorquir, com um sorriso maroto: “Ora, isso é porque você se quer ver livre dele no Expresso!”. Expliquei que não, que era um excelente jornalista, já com experiência na TV, que podia fazer um bom tandem com Maria Elisa.

Balsemão torceu o nariz, fez uma pausa e perguntou: “O que acha do Emídio Rangel?”. Levantei os olhos para ele e respondi de imediato: “Não pense em mais ninguém. É a pessoa ideal. Um bulldozer, com experiência em lançar projectos novos, como se viu na TSF”. O nome de Rangel ficou, assim, logo ali firme. Pouco depois seria convidado, aceitaria, a seguir entraria em choque com Maria Elisa, esta seria sacrificada – e Rangel tornar-se-ia o senhor todo-poderoso da estação.

Como se sabe, o arranque da SIC foi arrasador, ganhando sucessivamente terreno à RTP até a ultrapassar, poucos anos mais tarde. Rangel vencia Eduardo Moniz, o nome que eu tinha proposto a Balsemão!

A partir daí, a minha relação com Emídio Rangel começou a degradar-se. O crítico de TV do Expresso, Jorge Leitão Ramos, fazia críticas a programas da SIC que irritavam Rangel – que se ia queixar a Balsemão. Este transmitia-me as queixas – que eu justificava, naturalmente, com a liberdade do crítico para criticar.

Cada vez mais irritado, Rangel decidiu 'responder' com uma crónica inserida no programa A Noite da Má-Língua, cujo genérico incluía o Expresso a ser atirado para uma sanita. Era uma vingançazinha infantil.

Margarida Marante fez então, generosamente, várias tentativas para nos aproximar. Houve um almoço a três na Doca de Alcântara, onde Rangel reiterou as suas queixas. Entretanto, Marante tinha-se separado de Henrique Granadeiro para viver com Rangel, e eu ia tomando conhecimento de factos envolvendo os três. Soube que um dia Granadeiro procurou Rangel na SIC para lhe dizer, cara a cara, que se algo de mal acontecesse a Margarida teria de se haver com ele. Foi Marante quem me contou este episódio.
 
A história das relações entre o Expresso e a SIC, no tempo em que eu e Emídio Rangel estivemos à frente das respectivas direcções, nunca deixou de ser atritiva. No entanto, foi com surpresa que, numas férias de Verão, recebi a notícia de que Balsemão tinha entrado em colisão com ele e queria despedi-lo. Balsemão considerava-o muito gastador e as relações pessoais entre ambos também se tinham degradado. Ainda assim, Rangel saiu da SIC com uma indemnização milionária de 200 mil contos (1 milhão de euros).

Mas não ficou desempregado. José Sócrates, então ministro de Guterres, com quem Rangel tinha uma relação próxima – até porque Marante e a namorada de Sócrates, Fernanda Câncio, eram amigas -, ofereceu-lhe o lugar de director-geral da RTP, onde Rangel intentou grandes mudanças (que não teriam, porém, sequência, pois o Governo caiu logo a seguir).

A partir daí, a deselegância de Emídio Rangel manifestou-se em várias ocasiões. Uma vez em que fui entrevistado no programa Grande Entrevista de Judite Sousa, Rangel escreveu um lamentável artigo no Correio da Manhã onde, entre outras coisas, dizia que eu usava “um casaco cor de m…”. E após a ruptura do casamento com Margarida Marante, vim a saber por ela de agressões físicas. Depois foi o cancro de Rangel e os tristíssimos episódios do consumo de drogas que Margarida Marante trouxe a público – percebendo-se que a relação entre os dois fora brutalmente destrutiva para ambos. Após a morte de Margarida, Rangel chegou a dizer que não lamentava o seu desaparecimento, pelo mal que ela lhe fizera.

Depois de José Sócrates chegar a primeiro-ministro, Emídio Rangel foi convidado para um programa de debate na RTP, onde se assumiu como seu indefectível. Atacou os adversários de Sócrates e defendeu-o com unhas e dentes. Algumas intervenções suas eram penosas de ver pela indigência dos argumentos. Mas é provável que estivesse diminuído pela doença que o atingira (e que parecia, na altura, ter ultrapassado). Não podia ser o mesmo homem que fundara a TSF e a SIC. Recentemente, o mal voltou – e desta vez foi fatal. Apesar da inimizade que me votava, desejo sinceramente que repouse em paz. Que encontre a paz que lhe faltou em vida.

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