O efeito mágico repetiu-se agora, depois das declarações de Draghi recentemente, numa reunião de banqueiros centrais nos Estados Unidos. Roubando o protagonismo à anfitriã do evento, a presidente da Reserva Federal, Janet Yellen, Draghi voltou a provocar reacções eufóricas nos mercados e nas bolsas, incluindo baixas acentuadas das taxas de juro, apenas por ter prometido que o BCE “está pronto para ajustar mais a sua política”. Isso foi interpretado como a confirmação de que o Banco Central Europeu preparava uma viragem estratégica até ao final do ano e estaria disponível para comprar dívida soberana no mercado secundário, rompendo com a vigente ortodoxia germânica nessa matéria.
As palavras de Draghi foram enquadradas numa conjuntura onde se destacam os preocupantes sinais de deflação na zona euro, a acentuada retracção da procura e do crescimento económico – que já atinge a Alemanha – e os efeitos recessivos das políticas de austeridade (como o desemprego). Com efeito, enquanto os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, estimulados pelas políticas dos respectivos bancos centrais, reencontram o caminho do crescimento, a Europa do euro tende a ver agravados os riscos de estagnação e perda de competitividade internacional.
Evidentemente, o que diz Draghi – de forma sinuosa e ambígua como é seu timbre – presta-se a interpretações divergentes, e não faltaram vozes a relativizar o alcance das suas palavras. Uma das mais influentes foi a do ministro das Finanças alemão, Wolfgang Shauble, que invocou o seu conhecimento pessoal de Draghi para desmentir as interpretações de dissensão com a ortodoxia germânica.
Em todo o caso, Draghi não deixou de sugerir que as políticas orçamentais devem desempenhar um papel mais activo na promoção do crescimento, defendendo por isso uma maior flexibilização dessas políticas e uma atenção redobrada ao fenómeno persistente do desemprego. Ou seja: o BCE não constitui uma instância miraculosa cuja intervenção possa dispensar o empenho mais activo dos governos europeus numa estratégia orçamental adequada à saída da crise. O recado, embora indirecto e cauteloso, tinha Berlim como um óbvio destinatário.
A ortodoxia germânica vem derrapando perante o bloqueio financeiro, económico e social europeu, uma evidência cada vez mais gritante, inclusive dentro da própria Alemanha. E o facto de não existir ainda uma convergência política na Europa com capacidade para enfrentar a hegemonia alemã não significa que os sinais de uma situação insustentável possam continuar a ser iludidos sem o risco de rupturas perigosas. É também por isso que as declarações – embora tardias e constrangidas – de Draghi têm o tal efeito mágico na sensibilidade dos mercados.
A recente crise governamental em França mostra que no segundo país mais poderoso da Europa se chegou já a uma 'linha vermelha' de instabilidade política cujos efeitos poderiam alastrar ao conjunto da zona euro – e para além dela.
Por mais arcaico, 'soberanista' e antiglobalização que seja o demissionário ministro da Economia, Arnaud Montebourg, as suas posições contra o que ele chamava, numa entrevista ao Le Monde de domingo passado, os “axiomas ideológicos da direita alemã”, tenderão a encontrar um eco cada vez maior não apenas em França, mas através da Europa. E é indiscutível, como Montebourg afirmava nessa entrevista que precipitou a sua saída do Governo, que “o crescimento é nulo entre nós, é negativo entre os nossos vizinhos e existe um grave risco deflacionista na zona euro”.
Por curiosa coincidência, Montebourg lembrava também que o BCE devia “pôr-se a fazer o que fazem todos os bancos centrais do mundo, nomeadamente dos países que souberam retomar o crescimento, como adquirir dívida pública”. Ora, Mario Draghi, antes ainda da publicação da entrevista do ex-ministro francês, acabaria por dar razão àquilo que Montebourg preconizava, provocando o tal efeito mágico no optimismo dos mercados financeiros. Um outro sinal de que os “axiomas ideológicos da direita alemã” já estão divorciados da tão celebrada religião dos mercados.