Arrancou a maior reorganização de sempre dos tribunais, mas a Justiça esteve paralisada na última semana, por causa do sistema informático que esteve totalmente inoperacional durante sete dias e depois a meio-gás, com bloqueios e muitas falhas.
Os graves problemas do sistema informático, as obras em curso e mudanças atrasadas em muitos tribunais acabaram por ofuscar os objectivos da reforma dos tribunais, a primeira «em 200 anos», como salientou a ministra da Justiça.
O novo mapa judiciário implicou operações gigantescas: uma reorganização das competências de todos os tribunais consoante o tipo de processos, movimentos e recolocação de todos os magistrados e funcionários judiciais, transferência física de 730 mil processos e reclassificação de 3,5 milhões no sistema informático.
Desde a primeira hora que todos os dirigentes sindicais do sector e os conselhos das magistraturas alertaram para os perigos de a reforma falhar por falta de meios. O sistema informático – o Citius – e a falta de funcionários foram os problemas colocados à cabeça. E reclamou-se uma aplicação da reforma por fases, ou pelo menos mais tempo para o seu planeamento, em vez da entrada em vigor em todo o país ao mesmo tempo, em menos de seis meses (o decreto regulamentar foi publicado em Março e os conselhos de gestão das comarcas só ficaram completos em Junho). A ministra recusou, invocando que «em Portugal há sempre boas razões para adiar uma reforma».
Ministra desdramatiza
«Naturalmente, esperávamos problemas, qualquer sistema informático tem problemas e claro que há dificuldades, como é natural numa reforma desta dimensão», disse Paula Teixeira da Cruz em entrevista à RTP Informação, na quarta-feira, explicando que era «impossível» fazer de outra maneira porque o sistema informático de um dia para o outro teve de mudar da organização antiga para a nova. A ministra, aliás, desvalorizou o problema, assegurando que as falhas do Citius estão a ser resolvidos e o sistema a normalizar.
Desde as zero horas do dia 27 de Agosto que o Citius esteve inacessível, para «intervenções técnicas», quando se previa que isso só acontecesse no fim-de-semana (30 e 31 de Agosto). Entrou-se em Setembro e continuou inoperacional. Apenas os processos urgentes (acções cautelares e autos com presos) continuaram a correr, mas a custo: os poucos julgamentos e diligências voltaram ao papel e às gravações áudio.
Enquanto o sistema não funcionou de todo, os processos não puderam ser arrumados nas secretarias e distribuídos pelos magistrados. Ontem, a situação estava longe de começar a normalizar. «Temos centenas de processos com presos, urgentes, que foram transferidos para aqui, mas nem conseguimos perceber de que se trata. Temos que ir uma a um, é o desespero», desabafou ao SOL uma funcionária do Tribunal de Castelo Branco.
‘Imprevisível’
«Infelizmente, os prognósticos negativos em relação ao Citius confirmaram-se. Os tribunais estão paralisados há uma semana», disse ontem ao SOL Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, que aguarda «explicações» do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, organismo responsável pelo funcionamento do Citius. E lembra que o que está a acontecer é semelhante ao ocorrido nas comarcas-piloto, em 2009, quando o anterior Governo avançou com o seu modelo de reorganização judiciária: «levou meses» até que o sistema informático recuperasse e as secretarias tivessem tudo em ordem.
«Há tribunais que até poderiam estar a funcionar já normalmente porque não tiveram muitas alterações de competências, mas isso não acontece por causa do Citius», diz RuiCardoso, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
Para Mouraz Lopes e Rui Cardoso, «é imprevisível» neste momento quando é que a normalidade voltará aos tribunais – e, então, fazer-se um balanço dos efeitos da reforma.
«Confirmaram-se as nossas preocupações: é o caos. Quando se consegue aceder ao Citius e entrar nos processos, faltam documentos, até sentenças. Em muitos tribunais é uma visão dantesca: milhares de processos empilhados, à espera», diz Fernando Jorge, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais. Ontem, o sindicato marcou uma greve geral para dia 26 e paralisações alternadas por comarca, em todos os dias de Outubro, em protesto pela falta de funcionários e pelas condições de trabalho.
O novo mapa obrigou à realização de obras de adaptação em edifícios, algumas de grande dimensão e em se recorreu em cima da hora a contentores, onde os tribunais funcionarão nos próximos meses. São os casos de Loures, Faro e Vila Real. Pior sorte têm certos tribunais, como Setúbal, que terá de conviver com obras no próximo ano e meio: ontem, decidiu-se que até dia 19 só despachará processos urgentes, pois não há condições de trabalho, devido ao barulho e à poeira. Os magistrados do MP e os funcionários foram dispensados, ficando apenas os estritamente necessários.
A especialização dos tribunais em certas áreas, com magistrados que só tratam de certo tipo de processos ((Família, Trabalho, Comércio, etc.) e a forma de gestão são, de resto, os principais aspectos positivos da reforma destacados pelos operadores judiciários. Já a concentração das acções de maior valor e dos processos-crime mais graves nos tribunais-sede das comarcas é considerada um risco: «criam-se tribunais gigantes, que podem ficar ‘afundados’», diz um procurador.
O encerramento de 20 tribunais e a transformação de outros 27 em secções de proximidade são especialmente criticados pela Ordem dos Advogados, que diz que a reforma torna a Justiça inacessível em muitas zonas do país. A bastonária, Elina Fraga, entregou no dia 1, na Procuradoria-Geral da República, a já anunciada queixa-crime contra o Governo, por alegado crime de atentado contra o estado de Direito, por causa desta reorganização judiciária.
A REFORMA:
23 comarcas sediadas nas capitais de distrito. Porto divide-se em duas (Porto e Porto Este) e Lisboa em três (Lisboa, Lisboa Norte e Lisboa Oeste).
Instâncias centrais os tribunais-sede da comarca, julgam os crimes mais graves (penas superiores a 5 anos) e as acções de maior valor (acima de 50 mil euros) de todo o distrito. Instâncias locais, nos tribunais fora da capital do distrito, julgam acções de menor valor e crimes menos graves da área dos respectivos concelhos.
Mais secções especializadas com magistrados que só decidem certo tipo de processos (Família e Menores, Trabalho, Comércio e, Execuções) e mais 8 Departamentos de Investigação e Acção Penal (total de 14).
20 tribunais encerrados por terem menos de 250 processos/ano. 27 tribunais passam a Secções de Proximidade (apenas com as secretarias a funcionar, ligadas ao tribunal de um concelho vizinho).
Conselho de gestão administra os tribunais da comarca, fixa objectivos anuais e presta contas em relatórios.
730 mil processos mudaram fisicamente de tribunal, transportados por serviços de autarquias, Exército, GNR, PSP e funcionários judiciais.
3,5 milhões de processos reclassificados no sistema informático, correspondendo a 80 milhões de documentos.
6.000 funcionários, 1.400 juízes e 1.500 procuradores movimentados a nível nacional.