Um dos trunfos de A Tribo é o trabalho de raiz desenvolvido com não-actores surdos-mudos. Por exemplo, o protagonista, Grigoriy Fesenko, foi retirado de um quotidiano ligado ao álcool e ao crime. Já a Yana Novikova, Slaboshpitskiy pediu total disponibilidade psicológica e física.
A Tribo (que ainda não tem assegurada distribuição nacional) podia ser um western, uma trama de gangsters transposta para o realismo ucraniano. Conta a história de um jovem solitário (Fesenko) que chega a uma instituição de ensino especial para surdos-mudos onde enfrentará rituais de iniciação, praxes e a relação com o poder instituído pelo gang local. Pelo caminho, desenvolve uma paixão por uma jovem que se prostitui mas que acalenta o sonho de partir para Itália.
Num trajecto que começou no passado festival de Cannes, na Semana da Crítica, onde ganhou três prémios, A Tribo tem coleccionado troféus atrás de troféus em países como a Rússia, a Arménia, Eslováquia e Croácia. O realizador falou ao SOL acerca destes prémios, da linguagem do cinema e de como o sexo e a violência são universais.
O que esteve na origem deste filme conceptual sem diálogos e com pessoas que não ouvem nem falam?
Reflecti sobre o conceito de filme mudo quando estava ainda na escola de cinema, na década de 90. Nessa altura fomos todos influenciados por uma moda pós-modernista. Mas acho que desde o tempo do cinema mudo que se fazem imitações. Hoje o exemplo mais conhecido é, claro, O Artista. Mas foi o português Tabu, de Miguel Gomes, que mais me fascinou. Fiquei surpreendido como ninguém tinha pensado nisso antes. Em todo o caso não me inspirei em nenhum filme mudo em concreto. Na verdade acho até que filmei um western.
Sente que A Tribo é uma evolução das suas curtas Deafness [Surdez] e Nuclear Waste [Lixo Nuclear]?
Acho que isso foi uma coincidência. Quando me pediram para fazer um filme sobre o que quisesse, mas sem orçamento [Deafness custou 300 euros], decidi tentar este modo de contar uma história. Deafness teve a sua estreia mundial em Berlim e foi coroado de sucesso. Depois em 2010 recebi o dinheiro do Hubert Bals Fund do festival de Roterdão para desenvolver outro filme. Quanto à curta Nuclear Waste, é verdade que não existem diálogos, mas por outros motivos. Apesar de termos ensaiado com actores e com diálogo, não gostei muito do resultado. E por isso achei que seria melhor excluir diálogos.
Há quem diga que A Tribo é um filme demasiado longo e que não tem montagem. A crítica parece-lhe justa?
Cortámos 30 minutos à versão final. Antes disso tinha quase três horas. Acho que a questão aqui é mais a percepção individual. Há quem diga que não sentiu as 2h10 do filme. Talvez graças à atmosfera criada, à câmara móvel e, mais importante ainda, aos planos fixos. Tudo contribui para uma imersão maior no filme. O espectador passa por diversas experiências hipnóticas, precisamente pela forma como o filme está feito. De certa forma é um filme com um apelo global porque toda a gente que assiste está na mesma posição. Usei a linguagem gestual, mas apenas como pantomima, pois acredito que as pessoas não comunicam por palavras, mas por emoções e sentimentos. E os sentimentos genuínos não necessitam de tradução. Esse foi para mim um dos maiores desafios – que as pessoas percebessem o filme sem tradução. Aliás, está no acordo de distribuição do filme que ninguém poderá usar legendas, dobragem ou qualquer outro tipo de ajuda. Pode soar algo pomposo, mas queria fazer um filme sobre a linguagem do cinema e que desencadeasse reacções efectivas. Outra questão importante era trabalhar com estes actores não profissionais.
Imagino que teve tradutores para a linguagem gestual.
Sim, tivemos um tradutor. Mas isso não fez qualquer diferença. Toda a gente faz essa pergunta, mas a minha resposta é pouco interessante: ensaiámos muito, mas durante seis meses fomos apenas uma… tribo.
Esta história está relacionada com a realidade ucraniana ou é apenas fruto da sua imaginação?
O filme pode ser interpretado de duas formas. Num primeiro nível, tem a construção de um western clássico: um estrangeiro chega a uma cidade controlada por um gang. O estrangeiro junta-se ao gang, apaixona-se pela mulher do líder, etc. O segundo nível, que os críticos têm citado muito, é uma metáfora do poder da mafia. Quanto à veracidade dos eventos, eles não aconteceram por esta ordem nem com estas pessoas. Mas a história é uma compilação de acontecimentos, memórias da minha escola e experiência como repórter de crimes.
Pode explicar essa experiência?
Foi um trabalho breve que desenvolvi entre 1995 e 1996, em que produzia notícias de crimes para a televisão. Basicamente colaborávamos com a polícia, bombeiros e equipas de emergência. Escutávamos as mensagens sobre crimes ou acidentes e deslocávamo-nos ao local o mais rápido possível para registar as ocorrências.
Tanto o Grigory como a Yana são grandes revelações. Qual foi a abordagem para trabalhar com eles?
São ambos muito talentosos. Durante todo o período das filmagens estiveram afastados da sua vida normal. Com Yana isso foi fácil. Como é de Kiev, viveu desde o início num apartamento alugado. No caso do Gregory, tirámo-lo da escola, dos gangs e dos pais. Proibimo-lo de beber álcool, de subir aos telhados e de viajar entre carruagens de metro. Em suma, privámo-lo de tudo aquilo que ele tanto gostava… Estávamos sempre, sempre a representar. Num frenesim.
Yana comparou o seu trabalho ao de Abdellatif Kechiche [realizador franco-tunisino de A Vida de Adèle]. Considera isso um elogio?
Este filme tem sido comparado com muito outros. Desde o Elephant do Gus Van Sant aos primeiros filmes do Haneke. Mas claro que encaro isso como um elogio. O Kechiche é um grande realizador. E eu, pessoalmente, gosto muito de Vénus Negra. Provavelmente, a Yana falou-lhe dele porque, para a convencer a fazer as cenas de sexo, enviei-lhe A Vida de Adèle. Ela ficou fã do filme e do realizador. Sinto que devo algo a esse filme.
As cenas de sexo e de violência são alguns dos momentos mais fortes do seu filme. Que relevância tinham na sua mente?
Tentei fazer um filme universal. E acho que a violência e o sexo são, provavelmente, o que de mais universal existe. Nós fazemos sexo mais ou menos da mesma forma como lutamos ou morremos. Isto é, de forma igual uns aos outros, independentemente da cor, religião ou raça. Por isso achei essas cenas apropriadas.
O filme teve uma tremenda resposta crítica. Estava preparado para ela?
Parece-me que este filme me ultrapassou a mim próprio. Não estava preparado para isso. A minha vida mudou completamente. De certa forma, para reorganizar a minha vida comecei a trabalhar no meu próximo filme.
Que significado têm para si os prémios que já ganhou?
Não vou ser hipócrita, fico muito satisfeito com todos os prémios. E percebo que foi devido a eles, principalmente aos de Cannes, que poderei mais facilmente financiar o meu próximo filme.
Sente que depois deste trabalho ficou com vontade de abordar novos estilos?
Não acho que deva fazer outro filme sobre mudos… Mais: acho que já não faz sentido ninguém fazê-lo. Agora estou a desenvolver um projecto sobre Chernobyl. E o 'piloto' poderá ser a curta Nuclear Waste. Mas ainda estou numa fase muito embrionária. Se tudo correr bem talvez possa ver o filme em 2016, no 30.º aniversário do desastre de Chernobyl.