O seu interesse por ruínas vem de longe?
Lembro-me de já em criança perguntar: 'Ó pai, o que foi aquilo?' ou 'Avô, o que era aquela coisa?'. E muitas vezes não me sabiam responder.
E como nasceu o projecto Ruin'Arte?
Penso que nasceu naturalmente. Se bem que teve um grande empurrão num dia em que vinha da Trofa e, no meio de nenhures, num apeadeiro no meio da Linha do Oeste, vi uma igreja extraordinariamente grande com uma chaminé industrial e árvores no telhado. É um espectáculo demasiado rocambolesco para uma pessoa ficar indiferente. Na altura era fotógrafo amador e não foi difícil perceber as oportunidades fotográficas que aquilo poderia trazer. Mas ninguém me soube dizer o que aquilo era. Pessoas que eu conhecia, formadas em História, História da Arte e por aí fora, nunca tinham ouvido falar. Está ali uma autêntica página arrancada à história de Portugal.
Foi então que fundou o blogue?
Não. Entretanto profissionalizei-me como fotógrafo de publicidade e arquitectura, e a coisa nunca mais se proporcionou. Até que um dia quis o destino que eu fosse para aquelas bandas. Perguntei a um revisor da CP pela localização de determinado monumento e lá fui eu parar a Santa Maria de Seiça, onde iniciei este projecto em 2008. As pessoas passam pelas ruínas como se elas fizessem parte da nossa paisagem natural, e já nem sequer se questionam.
O seu objectivo passa também por desenterrar as histórias destes locais, não é?
Desenterrar essas histórias, perceber o porquê e tentar tornar a coisa de certa forma rentável o mais depressa possível. Imagine uma fábrica abandonada. Está ali um terreno que até é perigoso, abriga marginais, animais e outros que tais. Ao fim e ao cabo não contribui em nada para a sociedade. E por que não fazer ali um ninho de empresas, um centro de artes, uma casa de meninas até? Qualquer coisa que possa dar uma nova vida. Só para ter uma ideia, há um milhão e meio de habitações devolutas em Portugal. Um milhão e meio, e só no parque habitacional. Não ponderaram o património clerical, nem o industrial, nem o militar. Nada, só o parque urbano. Se temos dez milhões de habitantes e um milhão e meio de ruínas, alguma coisa está errada. Se formos ver que a Europa se reabilitou de duas guerras mundiais em cem anos e Portugal ainda está a sofrer mazelas do terramoto de 1755, vemos que a nossa política de recuperação de património é praticamente nula.
Limita-se a documentar as ruínas ou também pretende contribuir para a sua reabilitação?
De momento estou a germinar um projecto a que tenciono chamar Re-Cooperação. A lei dos solos obriga qualquer proprietário a dinamizar ou a ceder a sua propriedade a quem o faça. E a ideia que eu tenho é criar um cadastro e colocar online todas estas propriedades identificadas pelo INE, com uma quantidade de profissionais, desde a advocacia aos avaliadores, consultores, agentes imobiliários, arquitectos, construção civil, engenharia. No fundo 'levantar hoje de novo o esplendor de Portugal'.
Considera que o trabalho de chamar a atenção para este problema já está feito?
Foi inaugurada há três meses na internet uma página de locais abandonados, e em três meses angariaram 12 mil seguidores. Sei que há seis anos eu era o único. De certa forma acabei por estimular toda essa gente.
Existe alguma estimativa do contributo que uma política de reabilitação poderia dar à economia nacional?
Tenho um bom amigo aqui no Porto, o José João Castanho, que adquiriu recentemente um edifício onde fez um hostel que no primeiro ano ganhou cinco prémios mundiais. Deu emprego a 12 famílias. Ele foi funcionário na CGD e formou-se no INE: é uma folha de Excel com pernas e está sempre a pensar em números. O José João Castanho fez uma viagem de Lisboa a Évora e, sabendo quanto custa cada quilómetro de auto-estrada, começou a fazer contas. Se tivessem economizado uma faixa para cada lado, teria dado, e em função do investimento que ele fez no hostel – aquisição do prédio e obras de reabilitação – e dos lucros que teve, com o dinheiro de uma faixa de auto-estrada para cada lado daria para recuperar quase todo o património português, gerando no primeiro ano vinte mil milhões de euros.
O problema das ruínas nos centros urbanos pode ser resolvido?
É como um dente cariado. Se for tratado agora, vai lá uma brocazinha, mete um chumbinho ou uma massa e está feito. Daqui a uns tempos tem de arrancar a dentadura toda. Tanto Lisboa como o Porto são sítios bonitos, com história, mas os centros históricos estão ao abandono e a desmoronar. Às vezes digo: 'Imaginem o que era a Claudia Schiffer com os dentes podres'. Se temos orgulho naquilo que é nosso, também devemos ter vergonha pelas nossas incompetências. Como é que se explica a um alemão o estado em que se encontra o Pátio do Dom Fradique, que é um pátio do século XV em Lisboa? E como é que a câmara o expropriou e passados sete anos aquilo está coberto de cimento para travar a derrocada? É demasiado estúpido para se pensar que estamos num país civilizado.
Estes edifícios abandonados também são uma forma de desperdício…
Muitas vezes uma pessoa passa por uma quinta e vê um palacete. 'Ai, que mal empregado palacete'. Mas não é só o palacete. E os campos que estão à volta? Os 50 hectares de campo em que ninguém pega? Também são uma forma de ruína. Mas até compreendo que haja pessoas que não queiram investir na reabilitação porque compraram determinado prédio e depois ficaram cinco ou dez anos à espera de uma autorização.
Há muita burocracia?
Testemunhei um caso, que é o seminário de Santa Teresinha, em Pombeiro de Ribavizela – um edifício colossal, uma coisa extraordinariamente bonita, quer em termos de arquitectura, quer em termos de localização. A empresa que o comprou iria dinamizar aquela zona. Em dez anos, dos 24 pareceres necessários para o projecto, foram aprovados quatro pela câmara. Quatro.
Também costuma visitar e fotografar os interiores destes edifícios. Alguma vez encontrou coisas de valor?
Já tenho encontrado algumas coisas, mas as pratas, os quadros e outros valores as pessoas costumam levar. Acontece muito em empresas é que o arquivo fiscal tem um valor extraordinário. E normalmente é deixado para trás. Já têm feito umas coisas engraçadas, que são aquelas cápsulas do tempo, em que metem uma data de objectos contemporâneos para abrir dali a cem anos. Deveriam pensar nisso mais vezes.
Quando entra numa ruína destas também sente que entra numa cápsula do tempo?
Sem dúvida. As pedras falam e têm muitas memórias impregnadas. É uma adrenalina extraordinária a pessoa estar sozinha num sítio que não só poderá estar quase a cair como pode ter alguma coisa lá dentro, pode haver gente que não conheço de lado algum – bons ou maus, não faço ideia. Para todos os efeitos é sempre uma invasão de propriedade. Devemos ter sempre muito cuidado, mais não seja porque o equipamento fotográfico é caro que se farta. Esta actividade pode ser muito perigosa.
Alguma vez teve problemas mais sérios?
Graças a Deus, até agora soube evitá-los. Já andei nos supostamente piores bairros de Lisboa e do Porto. No fundo não passo de um betinho com uma câmara ao pescoço, o que acaba por ser um petisco para muita gente. Mas nada melhor do que entrar, aproximar-me das pessoas e falar. Antes que alguém diga 'Chavalo, anda cá' vou lá eu e digo-lhe isso. Ainda outro dia estive na Cova da Piedade. Disseram-me 'Não vás para aí que são ciganos'. Fui, falei com eles, tirei-lhes fotografias e quando saí disseram 'Volte sempre que quiser'. Todos temos calor cá dentro e basta esfregar um bocadinho que ele aparece.
Vai sozinho?
Costumo dizer 'antes bem acompanhado do que só' mas nem sempre tenho essa sorte. Em 80 ou 90% dos casos fui sozinho. E às vezes tenho a sorte de levar um bom amigalhaço. Antigamente tinha o meu cão, o Edgar, que além de 'cãopanheiro' também era modelo fotográfico. Hoje em dia tenho outro cão mas ainda vai ter de comer muita ração para chegar ao nível do outro. Não é cão de ruinólogo.
Ruinólogo é o nome que dá a si próprio?
Não sou só fotógrafo, também investigo, também escrevo. De maneira que seria injusto chamar-me fotógrafo apenas. O Júlio de Castilho – sem me querer comparar com esse grande vulto – inventou a Olissipografia. Eu, olha, inventei a 'Ruinologia' [risos].
Ser ruinólogo é uma actividade lucrativa?
O que tenho ganho, e nisso estou certamente mais rico do que o Belmiro de Azevedo, é do ponto de vista emocional. Agora do ponto de vista financeiro estou em ruínas. Digo na brincadeira que neste momento estou cingido ao meu código postal. Aquilo que eu fiz mais ninguém o fez até agora. Já devo ter fotografado – por alto – umas 1300 ruínas. Imagine quantos quilómetros já terei feito e quantas vezes arrisquei a vida para que isso acontecesse. Estive seis meses a enviar emails e telefonemas para o Secretário de Estado da Cultura, até que fui finalmente atendido por um imbecil chamado João Vintém, e o João Vintém não só desvalorizou todo este projecto como disse 'Você faz porque quer'. O que é que uma pessoa pode dizer mais? Contactei quatro gasolineiras para me darem um bidon de gasóleo e levei três ou quatro manguitos na mesma tarde.
Como faz a pesquisa sobre a história de um edifício?
Normalmente é difícil uma pessoa sozinha perceber que ruína era aquela. Começo pelos vizinhos, vou à procura de quem tem as memórias mais frescas, e acabo no arquivo municipal. Passando pelos descendentes, que vou encontrar no site de genealogia, no Facebook ou nas páginas brancas electrónicas. Às vezes sei mais do que essas pessoas, porque já apurei uma série de coisas e as memórias vão normalmente até à segunda geração, uma pessoa sabe quem era o avô, o bisavô, talvez, o trisavô já ninguém faz ideia. Tenho depois os meus mecanismos de pesquisa, vou fazendo o cruzamento das várias histórias que vou ouvindo e fazendo a triagem das várias aldrabices com que me vou deparando – também acontece muito.
É uma espécie de detective das ruínas…
Já desmistifiquei uma série de dogmas. As pessoas dizem 'Aquilo era o palácio tal' e uma pessoa vai a ver e não era. Não me quero gabar, mas até já ouvi historiadores de algum nome repetirem a mesma asneira.
Só fotografa ruínas em estado calamitoso?
Hoje em dia pode ser perigoso expor uma casa que ainda não seja uma ruína total. Penso duas vezes antes de o fazer. Há tipos que são autênticos vândalos. Andam à espera e à procura, ou para roubar azulejos, ou para roubar o cobre, ou simplesmente para partir. Há duas semanas fui a um hotel em Vidago em que não há uma louça sanitária que esteja em pé, está tudo em cacos, as mobílias todas destruídas, os corrimãos completamente arrancados, vidros partidos, vandalismo puro. Soube que uns espanhóis estiveram lá, fotografaram e meteram na internet. Passada uma semana, foram lá outros espanhóis e deram cabo daquilo. É preciso ter muito cuidado com o que se mostra hoje em dia, porque podemos estar a condenar uma autêntica pérola.