Em menos de um quarto de hora, Brown fez o que o improvável e desesperado triunvirato Cameron-Clegg-Miliband não tinha conseguido fazer nos dias anteriores: desmontar o discurso separatista do líder autonómico Alex Salmond, compatibilizar o patriotismo escocês com o unionismo britânico e denunciar os riscos da aventura independentista, resgatando a pobre campanha pelo 'Não' dirigida pelo antigo colega de Governo (e inimigo pessoal) Alistair Darling.
Tanto como a eficácia do discurso, o que surpreendeu os britânicos e os que além-mar acompanharam a campanha para o referendo foi o facto de quem o proferiu ter sido um impopular ex-governante tantas vezes ridicularizado pela suposta incapacidade de se dirigir ao eleitorado.
Mas passemos a transcrever a peça central que tornou virais as palavras do trabalhista escocês:
“O voto de amanhã [quinta, 18] não é sobre se a Escócia é uma nação. Nós somos – ontem, hoje e amanhã. Não é sobre se temos um parlamento escocês. Nós temos – desde um referendo realizado há dez anos. E não é sobre se teremos poderes acrescidos – todos já chegámos a acordo e vamos aumentar os poderes.
O voto de amanhã é se sobre se queremos quebrar todo e qualquer laço que nos une – pois eu digo que vamos manter a nossa pensão britânica, vamos manter a nossa libra britânica, vamos manter o nosso passaporte britânico, vamos manter o Estado-Providência britânico.
E digam aos indecisos, aos que vacilam, aos que não têm a certeza, digam-lhes o que alcançámos juntos. Que lutámos duas guerras mundiais juntos. Que não há um cemitério na Europa que não tenha escoceses, ingleses, galeses e irlandeses sepultados lado a lado. E que quando jovens soldados eram feridos nessas guerras, eles não olhavam uns para os outros e perguntavam se eram escoceses ou ingleses – eles socorriam-se mutuamente porque éramos parte de uma causa comum.
E que não vencemos apenas estas guerras juntos, mas que construímos também a paz juntos, que construímos o serviço nacional de saúde juntos, que construímos o Estado-Providência juntos, que construímos o futuro juntos.
E que o que construímos juntos, com sacrifício e cooperando, não deixaremos que sejam destruído por um nacionalismo de vistas curtas”
As perguntas a que Salmond não soube responder
Para além deste emotivo apelo, Brown elencou ainda sete riscos sobre os quais o Partido Nacionalista Escocês não teria esclarecido os eleitores durante a campanha: a incerteza sobre a moeda nacional a adoptar; o risco de bancarrota; a necessidade de gerar provisões à custa do sistema de saúde e da segurança social; a ameaça da inflação; a subida das taxas de juro; o futuro de um milhão de postos de trabalho dependentes da união económica e, por fim, a escassez das receitas petrolíferas face a eventuais riscos financeiros.
Em suma, a mensagem era esta: na dúvida, vote ‘Não’. E a proposta independentista acabaria por ser chumbada por uma margem cerca de duas vezes superior à estimada pelas empresas de sondagem – 55% contra 45% dos votos – quando, a poucos dias do referendo, Londres chegou a temer a derrota.
A vitória do ‘Não’ seria o triunfo de Brown e das suas perguntas e a derrota de Salmond a da ausência de respostas por parte do líder autonómico.
Encontrar a voz aos 63 anos
Há décadas descrito – e satirizado – como um político excessivamente frio, introvertido e cerebral, Brown esteve irreconhecível em Glasgow. Se o discurso de quarta-feira não era propriamente original no argumentário unionista, foi inédito na forma emotiva como foi entregue.
Caminhando de um lado para o outro do palco do alto do seu 1m80, com um semblante grave e gesticulando energicamente, por vezes interrompendo os aplausos dos apoiantes com um erguer de mão autoritário de quem sublinha a importância do momento, o antigo governante dispensou o teleponto para um último apelo de mobilização patriótica.
Para a imprensa britânica, tratou-se da “performance de uma vida”. Nas redes sociais, o tom inspirador e quase religioso valeu comparações a Winston Churchill ou Barack Obama.
Quem não se recorda ou não conhecia o Brown cinzento que teve a tarefa ingrata de suceder ao (outrora) popular Tony Blair dirá que se trata de um exagero. Mas da esquerda à direita, os comentadores sublinham unanimemente o papel central e inesperado que o discurso do antigo primeiro-ministro desempenhou no triunfo unionista da última madrugada.
Um novo Reino Unido redesenhado por Brown
Mas o contributo de Brown para a resolução do diferendo escocês não se fica apenas pela performance de quarta-feira. O antigo primeiro-ministro tem trabalhado numa proposta constitucional que confere autonomia legislativa acrescida não só ao mais setentrional dos países constituintes do Reino Unido como também a Inglaterra, Gales e Irlanda do Norte.
O documento prevê ainda que a Câmara dos Comuns assuma um papel arbitral em eventuais conflitos entre as quatro nações do Reino Unido. A Câmara de Lordes poderá passar a funcionar como um senado integralmente eleito e representativo das várias regiões e nações, à imagem das câmaras altas em verdadeiras federações como os Estados Unidos e a Alemanha.
De acordo com o Guardian, o plano estaria até há poucas semanas condenado ao papelão. No entanto, o restituído prestígio de Brown e o peso das concessões que tiveram de ser prometidas aos escoceses perante o que esteve muito perto de ser o fim do Reino Unido nos seus contornos actuais valorizaram a proposta, que poderá agora conquistar um importante lugar na história constitucional do país.
O plano de descentralização de poderes de Brown terá convencido parte do eleitorado escocês a votar contra a independência, argumenta aquele diário londrino. Até à sua divulgação, a promessa de maior autonomia era vaga e indefinida. Agora, é um projecto tangível.
Brown também aconselhou Cameron na recta final da campanha, como o próprio primeiro-ministro conservador assumiu publicamente, e trabalhou na concertação desde e do seu número dois, o liberal-democrata Nick Clegg, com o líder da oposição trabalhista Ed Miliband.
Há quatro anos, Brown desapareceu como o derrotado e mal-amado líder do centro-esquerda britânico, o rosto do ocaso da Terceira Via e do fim de década e meia de prosperidade socialista no Reino Unido. O seu papel na resolução da crise financeira internacional é recordado por analistas e por alguns dos seus pares no palco mundial, mas não pelo grande público.
Apesar de ter sido eleito para a Câmara dos Comuns por Kirkcaldy e Cowdenbeath (Escócia), as suas presenças em Westminster foram pouco frequentes. Termina agora a sua travessia do deserto e adiciona um capítulo a uma biografia que está por escrever. Para já, escreve uma nova página na história do Reino Unido.
pedro.guerreiro@sol.pt