Celebrar os vivos

As ruas de Penafiel transformam-se, por estes dias, em páginas de livros: caixotes com contos pelos passeios, mensagens gigantes penduradas nas varandas, montras decoradas com o universo de um escritor, obras de arte alusivas a esse universo espalhadas pelo espaço público, personagens encenando os seus dramas e comédias no meio das praças, através do corpo…

É esta a beleza singular do Escritaria, que até ao próximo domingo animará a cidade. Haverá também espaço para conferências e leituras. Algumas obras de arte permanecerão, recordando a passagem do Festival e a obra do escritor. 
Nesta sexta edição, é Lídia Jorge a homenageada. Uma homenagem justa – como foram as edições anteriores, dedicadas a Urbano Tavares Rodrigues, José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Mia Couto, António Lobo Antunes e Mário de Carvalho. 

Esse elemento essencial da justiça que é a celeridade raramente nos ocorre quando se trata de reconhecer o trabalho alheio; Portugal gosta de celebrar defuntos – gente quieta e calada, que não lembrará inconveniências e, sobretudo, não ensombrará os pedestais dos precários sobreviventes. 

Estado de carência em que vivemos agora tem vindo a aguçar-nos a memória e a necessidade de partilha; se é verdade que a desgraça envilece, não é menos verdade que a desgraça prolongada acaba por arrancar do fundo da escuridão o melhor das capacidades humanas. E é nisso que estamos: a encontrar forças que não sabíamos que possuíamos, de modo a sobreviver à ditadura da culpa e do sacrifício que pretenderam impor-nos. 

Começamos a recordar que todas as mudanças do mundo nasceram da criação da linguagem e das ideias por ela fixadas – não da economia. A felicidade não é filha do dinheiro, mas da esperança, que é a matéria-prima de qualquer obra de arte, por mais desesperada que possa parecer.    

Assim é que, subitamente, se têm sucedido as homenagens aos vivos, neste país acostumado a fazer de morto. Há dias, a Fundação Gulbenkian teve lotação esgotada para honrar o trajecto de um homem voluntariamente pobre, simples, culto, alegre e bom: frei Bento Domingues. 

Que a bondade tenha deixado de ser antónimo da inteligência já é qualquer coisa de excepcional, num país que encontra no sarcasmo avulso a senha de acesso ao aplauso. 

Escritaria nasceu em 2008 com o objectivo de celebrar a vida e a obra de escritores de Língua Portuguesa – um por ano. 
Idealizado pelo arquitecto e designer António Castanheira em colaboração com a editora e associação cultural Cão Menor, o projecto foi prontamente acolhido pelo  então presidente da Câmara, Alberto Santos (aliás, também escritor), do PSD – e os dois primeiros escritores homenageados eram militantes comunistas. O município de Penafiel é hoje dirigido pela coligação PSD-CDS, e o Escritaria continua o seu trajecto, imune aos vícios da partidarite. 

O talento de Lídia Jorge, reconhecido internacionalmente, é testemunhal e profético; os seus livros interrogam os caminhos da História e da política contemporâneas, apontando para a possibilidade de um contrato mais harmonioso entre o íntimo e o social. 

Neste ano em que publicou Os Memoráveis, romance que analisa as luzes e sombras deixadas pela revolução dos cravos, esta celebração adquire uma força particular.

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