A parábola dos Espírito Santo

A leitura em fascículos, na imprensa, das actas e de outros relatos acessórios das reuniões privadas do clã Espírito Santo dispensa o trabalho criativo aos mais argutos guionistas de novelas pelos tempos mais próximos.

Basta-lhes 'olhar à volta', como explicava um dia, em ameno convívio, o grande Jorge Amado, ao descrever como chegara aos seus inesquecíveis Capitães da Areia.

São outros os 'capitães' que dominaram a praia lusitana durante décadas, movimentando milhões, afeiçoando o poder político através de um teia complexa, juntando fortunas e mais-valias que os deslumbraram a ponto de desembocarem, paradoxalmente, num estranho suicídio colectivo.

Sem ficção, aquilo a que assistimos – e que vai prosseguir nos meses próximos – configura um reality show com consequências muito mais dramáticas do que os arrufos dos participantes nas várias séries da Casa dos Segredos, que animam os serões dos portugueses, viciados em espreitar pelo buraco da fechadura.

Neste caso, nem precisam dessa artimanha. A porta da nova Casa dos Segredos escancarou-se, e os vários actores, que tínhamos por respeitáveis, mostram-se em público, em cenas que aconselham reserva de pudor aos espíritos mais sensíveis.

A imprensa, os media, vão ter muito com que se entreter, sem o menor esforço, graças às continuadas fugas de informação.

A comissão parlamentar, de inquérito, à qual presidirá um antigo juiz, vai ter muito que ouvir. O striptease promete…

Adivinham-se capítulos com cenas pouco edificantes, se validarmos os relatos já transcritos das reuniões do clã.

Estaríamos, contudo, bem se o problema envolvesse apenas uma crónica de famílias desavindas. Já tivemos outras em conflito, que se arrastaram pelos tribunais.

Mas a vaga de revelações é profunda e, tal como o 'canhão da Nazaré' que fascina os surfistas, pode provocar um impacto que ninguém se atreve a prever.

Na ressaca do desmoronamento do Grupo Espírito Santo – que,para desgraça e vergonha do país, ainda está só no começo -, o que impressiona nem são tanto as actas e as acusações mútuas na família, que têm inundado as páginas dos jornais. Menos, ainda, o afastamento compulsivo de Zeinal Bava pelos accionistas brasileiros da Oi, depois de ter acontecido o mesmo a Granadeiro na PT.

Impressiona, sim, desde já, o eclipse da Portugal Telecom, como a conhecemos, uma das raras 'jóias da coroa' que, num destes dias, vai ser vendida ao desbarato por um grupo brasileiro que passou, num ápice, da situação de minoritário para uma posição de mando.

A PT, que foi modelar – desde as infraestruturas de telecomunicações à inovação na tecnologia e nos serviços -, arrisca-se a ficar nas mãos de estrangeiros, que hão-de subordiná-la às suas prioridades estratégicas, incluindo Portugal somente naquilo que lhes aproveitar.

Têm razões os trabalhadores da PT para se sentirem preocupados. O efeito dominó, que empurra o que foi o império Espírito Santo para uma cascata de insolvências, perspectiva um rosário longo de vítimas.

Basta ler o (tardio) relatório da comissão de auditoria interna da Portugal Telecom, datado de Julho, para se perceber como foi possível a empresa ser capturada pelos interesses próprios de um dos accionistas de referência.

Bem pode o ministro Pires de Lima vir agora a terreiro dizer que “o momento fatal para a PT foi o Governo de José Sócrates só ter acedido à venda da Vivo pela compra, a um preço exorbitante, da Oi, que era uma empresa de terceira classe. Esse movimento destruiu muito valor e, segundo se sabe, foi uma exigência directa de Sócrates”. Tarde demais.

A subordinação da PT ao BES e a Ricardo Salgado deu no que deu.

A insólita aplicação de 900 milhões, decidida com o beneplácito de Granadeiro, numa empresa em dificuldades do universo GES, foi o último prego no caixão. E deixou os brasileiros da Oi a cantar de galo.

Quando hoje o mesmo governante critica a anterior liderança da PT por ter sido “submissa a interferências políticas”, fala do óbvio. Como é óbvio que ache “chocante que há uns anos se tenha questionado tanto a possibilidade de a PT ser comprada pelo grupo Sonae, que fez uma OPA valorizando a empresa em 10 mil milhões”. Foi a mesma submissão que hoje contamina outras vendas apressadas.

Belmiro de Azevedo não diz menos e até já aconselhou os jornalistas a investigarem o que se passou. Pelos vistos, o Público, o seu jornal, nunca o esclareceu…

Em resumo: o desbaratamento do valor da PT ilustra o jogo escondido de accionistas e de gestores. É a ruína de um pilar que se exibia com orgulho. O leilão, a preços de saldo, do que sobra do desvario, torna progressivamente o país mais irrelevante e periférico. A parábola do ocaso do clã Espírito Santo está para durar…