No Itamaraty (ministério das Relações Exteriores do Brasil), aguardarão despacho mais de uma centena de pedidos de visita de chefes de Estado e líderes de governo. Passos Coelho chegou a anunciar uma deslocação de quatro dias ao país, em Junho, para assistir ao Portugal-Alemanha do Mundial de futebol. A viagem do primeiro-ministro, no entanto, acabaria por ser cancelada na sequência de uma decisão de Tribunal Constitucional. Mas, apurou o SOL, Dilma Rousseff não terá dado garantias de que recebia o primeiro-ministro. O chefe do Executivo português podia regressar do Brasil sem ter tido oportunidade de cumprimentar a sua ‘homóloga’, contrariamente ao que aconteceu em 2011, quando foi recebido a pedido por Dilma em Brasília, numa breve paragem antes de voar para o Paraguai para participar na XXI Cimeira Ibero-Americana. “Nós oferecemos alguns horários e o gabinete do primeiro-ministro português outros. Mas não conseguimos um calendário que fosse compatível. Foi uma questão de logística e de horários”, garante ao SOL fonte do Itamaraty.
Dilma esteve três vezes em Portugal. Só numa circunstância foi recebida por Cavaco Silva, Passos Coelho e António José Seguro, então líder do PS. Foi em Junho do ano passado, por altura do encerramento do Ano do Brasil em Portugal e da entrega do Prémio Camões de Literatura a Mia Couto, no dia 10. Para trás, ficava a tentativa de visitar o país durante três dias, em 2011. A segunda visita oficial da Presidente do Brasil, depois de visitar a Argentina, acabaria por ser marcada pelo inesperado: a demissão de José Sócrates na véspera da visita (“Mas não terá Presidente para me receber?”, perguntou Dilma a Miguel Sousa Tavares, numa entrevista à SIC, quando confrontada com a notícia), e a morte de José Alencar, vice-presidente de Lula da Silva entre 2003 e 2011. Dilma regressou a Brasília com Lula, que a acompanhava na viagem para receber o honoris causa na Universidade de Coimbra, um dia depois de aterrar na Portela. Sócrates, amigo pessoal de ambos, ao ponto de ter assistido recentemente a uma caminhada da candidata do PT no centro de São Paulo, não os recebeu publicamente.
Se é certo que “este ano foi atípico porque as eleições tiraram o foco da política externa do Brasil”, segundo a mesma fonte do Itamaraty, também é verdade que Dilma e Passos Coelho nunca estreitaram uma relação que fosse além do aperto de mão institucional. O contacto entre os dois líderes é inexistente e está circunscrito a acontecimentos públicos. Durante a campanha, Dilma Rousseff usou Portugal – e a Europa – como um exemplo a não seguir em termos de política económica, num autêntico discurso contra o Velho Continente. Em vários comícios, lembrou os números do desemprego em Portugal e os efeitos do resgate financeiro do FMI, para garantir que não governa para os mercados. Em Portugal, já tinha manifestado o seu desacordo com a política de austeridade. Mas o tom da crítica foi então abafado pelo apoio do Governo português à candidatura do brasileiro Roberto Carvalho de Azevêdo para a direcção-geral da Organização Mundial do Comércio, quando a União Europeia e a Croácia apoiavam outro candidato, o mexicano Herminio Blanco.
Recuperar relações
As eleições de domingo, de onde sairá o nome que vai liderar o Brasil nos próximos quatro anos, não são indiferentes para Lisboa. Na primeira volta, a 5 de Outubro, Aécio Neves, 54 anos, candidato do PSDB que ameaça a continuidade de Dilma no Palácio do Planalto, bateu a candidata à reeleição em número de votos somados junto dos eleitores brasileiros que votam em Portugal. O adversário de Dilma já sinalizou que a aproximação à União Europeia “deve ser uma obsessão para o futuro governo” do Brasil.
Ainda em jovem, como secretário pessoal do seu avô, Tancredo Neves, Aécio acompanhou o recém-eleito Presidente do Brasil, em 1985, a Coimbra, onde recebeu as insígnias da Universidade de Direito. Mário Soares, amigo de Tancredo, era o primeiro-ministro de Portugal.
Segundo uma assessora de longa data, Aécio também manteve uma relação próxima com o fundador do PS enquanto foi deputado federal por Minas Gerais, entre 1987 e 2003. O ex-senador, aliás, tem origem materna em Angra do Heroísmo, nos Açores, através de José António das Neves, um ouvidor da Coroa portuguesa enviado para Minas Gerais.
Gigi Reino, proprietário do restaurante Gigi, na praia da Quinta do Lago, é testemunha da afeição de Aécio por Portugal. “A primeira vez que Aécio foi ao Algarve foi a 9 de Setembro de 2005. Ainda não era governador do Estado de Minas Gerais, mas já era rico da parte do pai e herdeiro carismático do avô Tancredo Neves. Nessa altura, tornámo-nos amigos. É das pessoas mais dinâmicas que conheço, é um homem sério, incorruptível, desinteressado materialmente”, elogia o dono do famoso restaurante algarvio. “Depois disso, acabei por estar com ele várias vezes em Portugal. Ficou fascinado pelo Algarve. Adorou Albufeira e a Quinta do Lago. Depois, já como governador de Minas Gerais, veio fazer uma apresentação a Lisboa. Jantei com ele no La Trattoria e no Alcântara Café. Ficámos e continuamos amigos desde então”.
Já Dilma Vana Rousseff, de 66 anos, filha de pai búlgaro e mãe brasileira, não manteve ao longo do seu percurso relações de amizade com Portugal, à excepção de José Sócrates, que lhe foi apresentado por Lula e a quem Dilma terá convidado para representar empresas brasileiras de topo em Portugal e na União Europeia. Ao contrário do seu opositor, Dilma não dá sinais de querer avançar nas negociações para um acordo de livre comércio entre a Europa e o Mercosul, apesar de os “conselheiros do Itamaraty defenderem este acordo”, garante uma jornalista que acompanha o Itamaraty há 13 anos. Esta especialista em relações internacionais adianta ainda que o “não envolvimento de Dilma Rousseff nas questões da CPLP – a Presidente não participou em nenhuma cimeira da Comunidade, nem no encontro que ratificou a adesão da Guiné Equatorial ao bloco – tem valido amplas críticas dentro do próprio ministério”. A agenda de contactos da Presidente do Brasil em Lisboa é limitada à representação diplomática na capital portuguesa.
Privatizações, mas poucas
Para Clovis Rossi, jornalista e colunista da Folha de São Paulo que acompanhou deslocações de Fernando Henrique Cardoso e de Lula da Silva a Portugal, “as relações entre Brasil e Portugal saíram da agenda” nos últimos anos. “Dilma Rousseff não gosta de política externa e isso é da natureza mais íntima dela. Está mais interessada em acordos comerciais com os países da América do Sul do que com os países da União Europeia, nomeadamente com Portugal. Não creio que venha a mudar o seu posicionamento, se vencer as eleições”, explica. O jornalista recorda as reuniões bilaterais de outros tempos “marcadas pelas relações de carinho” entre os respectivos governos, das quais saíam propostas comuns e interesses partilhados. Na mesma linha, Miguel Relvas, ex-ministro de Passos Coelho e, segundo reportagem da Visão publicada em 2011, amigo de Aécio Neves, lamenta o “momento de indiferença institucional” entre Brasil e Portugal, protagonizada por um governo brasileiro que se “afastou de Portugal e da Europa”, em sentido contrário aos de “Fernando Henrique Cardoso e a Lula da Silva que são amigos de Portugal”.
Menos crítico, Marcelo Rebelo de Sousa confessa-se “optimista” e lembra que “não houve muitos líderes europeus a visitar o Brasil”. Para o comentador político, “a diplomacia faz-se hoje por outros canais, por via dos canais económicos”. O desfecho da fusão OI/PT não abona a favor da relação entre dois países que admitem interesse em estabelecer parcerias estratégicas. De acordo com fonte do Itamaraty, Dilma “não se envolveu directamente nesta parceria, nem depois da questão do BES. Quando um governo participa directamente nas negociações, essa participação acaba por ter encargos para o próprio governo”. A mesma fonte frisa que a influência do governo brasileiro nos acordos comerciais passa por “divulgar oportunidades em Portugal porque os interesses estratégicos são privados”. A visita a Lisboa no ano passado teve um propósito muito claro, segundo noticiou a imprensa: tratar das privatizações inscritas no memorando de entendimento com a troika, como as da TAP, dos Correios, da EDP, da REN ou da ANA. As empresas brasileiras não faltaram à chamada para a mesa das negociações mas acabaram fora das adjudicações.
Não obstante o arrefecimento dos investidores nos activos portugueses nas mãos do Estado, Francisco Ribeiro Telles considera que “o Brasil está a redescobrir Portugal”. Num artigo publicado no Diário Económico a 3 de Outubro, o embaixador de Portugal em Brasília sinaliza o interesse de empresas como a Embraer, a Camargo Corrêa ou a TV Globo por Portugal, onde se instalaram. Destaca ainda o aumento de 27% em relação a 2013 das trocas comerciais entre os dois países entre Janeiro e Agosto de 2014 e as mais de 600 empresas portuguesas que estão instaladas no Brasil e que empregam cerca 110 mil trabalhadores. Daniela Guiomar, directora-geral da Câmara Portuguesa em São Paulo, sublinha ao SOL a procura de empresas nacionais pelo centro de negócios instalado na Casa de Portugal e inaugurado por Pires de Lima em Junho. Entre as que mais pedem informações para entrar no mercado brasileiro com a ajuda do centro estão empresas do sector das tecnologias da informação e serviços de internet, num ano em que o Brasil só ficou atrás da China nos investimentos em Portugal através dos ‘vistos gold’, criados há precisamente dois anos.
Incidentes diplomáticos
Para a memória futura do mandato de Dilma Rousseff ficam alguns ‘incidentes’ políticos e diplomáticos que envolveram Portugal, como a suspensão de Portugal do programa Ciências Sem Fronteiras, com o argumento de que os estudantes deveriam aproveitar a experiência no estrangeiro para aprender outra língua que não o português, mesmo que Portugal estivesse entre as primeiras escolhas dos brasileiros, e a passagem inesperada de Dilma Rousseff por Lisboa em Janeiro para uma escala técnica do avião que a levava de Davos, na Suíça, para Havana, em Cuba. Os custos da paragem não anunciada na capital por menos de 24 horas – Dilma e a sua comitiva de cerca de 45 pessoas ficaram hospedadas em dois dos hóteis mais caros de Lisboa – colocaram Portugal na agenda dos grandes meios de comunicação, nos quais foram publicados críticas à postura de Dilma. Aécio Neves, líder da oposição, já em pré-campanha, aproveitou para criticar a sua adversária e expressou a sua “indignação” com os excessos.