“Nunca esperei chegar aos 70 anos”

Na segunda parte da entrevista, Joaquim Letria recorda os anos passados fora de Portugal, o 25 de Abril, os debates televisivos e a longa relação com a RTP, de onde saiu acusado de racismo.

Começou a trabalhar como jornalista no Diário de Lisboa e depois foi contratado pela Associated Press (AP), que diz ter sido a sua licenciatura. Porquê?

Foi a minha grande escola. Já estava há alguns anos no Diário de Lisboa e colaborei com a AP em Lisboa. Depois fui convidado para trabalhar para eles e fiquei uns sete anos, divididos por Lisboa, Rio de Janeiro e Nova Iorque.

Nessa altura trabalhou muito na América Latina.

Sim. Estive na Bolívia depois da morte do Che Guevara, apanhei as fases piores da ditadura militar do Brasil… Mas aí ninguém sabia que eu era comunista, apesar de manter alguns contactos.

A entrevista que ficou por fazer foi a Fidel Castro?

Não, foi ao próprio Che. O Fidel, depois de Sierra Maestra, transforma-se num burocrata. Mas acabei por entrevistar o homem que teve a ver com a morte de Che Guevara, o Presidente da Bolívia, o René Barrientos. Ele deu-me uma boleia de helicóptero de La Paz para Cochabamba, conversámos bastante e acreditei que a ordem não foi dele, foi dos americanos. Mas ele não a impediu.

Por que volta para Portugal?

A AP fez-me uma proposta para ir para São Paulo, mas o meu filho mais velho era um miúdo e a cidade era muito violenta. Não fiquei em Nova Iorque pelo mesmo motivo. A família falou mais alto e fui outra vez para o Diário de Lisboa. Depois de uns anos cá aparece um anúncio para a BBC, a pedir um Program Assistant para a secção portuguesa, em Londres. Respondi, mas sem fé. Passado algum tempo obtive resposta e começou aí um processo de quase um ano.

Como foi viver em Londres?

Foram os melhores anos da minha vida, mas o princípio foi muito difícil. A minha mulher e o meu filho podiam cá ter ficado e eu ia primeiro, porque a BBC tinha um departamento para ajudar os estrangeiros a instalarem-se. Mas aqui o Quimzinho, esperto, levou logo a família toda e, como não encontrava casa, fomos para um hotel e comecei a ficar sem dinheiro. Até que um camarada da secção disse para irmos para casa dele. E sou salvo pelos pastéis de bacalhau.

Como assim?

Havia uma coisa chamada a Liga do Ensino e Cultura Portuguesa, que era uma coisa de emigrantes que fazia uns bailes aos fins-de-semana. Um dia disseram-me que, se queria comer comida portuguesa, nomeadamente pastéis de bacalhau, tinha de ir a uma dessas tertúlias. E lá fui. Na Liga, encontrei uma senhora portuguesa que trabalhava para uma inglesa com um andar para alugar. O andar era óptimo – ficava em Chelsea a dois passos de King's Road -, a senhora era um encanto e a portuguesa ainda hoje é minha amiga.

Mas dá-se o 25 de Abril. Chegou a noticiar a revolução?

Não, porque não estava em Londres… Só soube do 25 de Abril no dia 27, quando vi, na recepção da estalagem onde estava, um jornal com um grande retrato do Spínola, a falar de uma revolução em Portugal. Isto tudo porque tinha uma namorada da secção grega da BBC…

Mas já não estava com a sua primeira mulher?

Estava… Mas fui aprender grego com a Maria Soteriades, que tinha uns olhos lindos, violeta. A Maria resolveu aceitar uma ideia minha de irmos os dois para Kitzbuhel. Mas não foi andar de ski, que eu não sabia… [risos] Quando cheguei à secção estava em alvoroço porque não sabiam de mim. A minha mulher, mãe do meu filho mais velho, por quem tenho um carinho especial porque me aturou coisas muito difíceis ao longo de 20 anos, também não sabia de mim. Ninguém sabia de mim. Na BBC chegaram a pôr a hipótese de eu estar envolvido no golpe e ter fugido para Portugal. Foi uma barraca. Tinha dito que a BBC me tinha enviado num serviço, mas entretanto a BBC ligava para casa à minha procura… Foi um problema em casa, mas a festa do 25 de Abril ajudou a ultrapassar.

Quando volta a Portugal?

Só a 19 de Maio e por um motivo triste: a morte do meu avô paterno. Assim que cheguei, a secção pirou-se para Portugal e eu tive de ficar a aguentar o serviço. Nessa altura acontecem as negociações de Portugal com a Guiné-Bissau e eu vou fazer a cobertura porque tinha muitos amigos nos movimentos africanos em Londres, o Amílcar Cabral, sempre que ia a Londres ia à secção portuguesa, tal como gente próxima do Presidente Agostinho Neto. Durante essas negociações, a RTP pediu-me para lhes fazer um serviço e foi na sequência dessa colaboração que me convidam para voltar.

Que país encontrou?

A morte do meu avô custou-me muito. Sobretudo porque ninguém me disse que ele estava doente. E, de repente, ligam-me a dizer que morreu. Quando o meu avô precisou não estive cá e isso magoou-me muito. Mas entro no avião para vir para o funeral e encontro uma tripulação em festa. E depois percebi que Lisboa toda  estava em festa.

Foi visitar o PCP?

Não, não. Já não tinha nada a ver com o partido. Embora compreendesse, e respeitasse muito o Álvaro Cunhal, não concordava com o alinhamento do partido com a União Soviética. Foi por isso que me afastei.

Quando regressa a Portugal, estreia-se na televisão, algo que sempre disse nunca ter pensado fazer.

Antes só estava na televisão quem estava feito com o regime. Mas agora tínhamos uma televisão democrática. Vinha para colaborar com um país novo. Vim para a direcção de informação da RTP e, quando há a tentativa de autonomizar o canal 2, passo para lá. É nesta altura que crio o Teledomingo.

Ao fim de 15 dias acaba despedido pelo Spínola. Afinal ainda não era um país assim tão livre?

Foi uma entrevista que fiz ao Pedro Pires, que para o Spínola era um terrorista. Já o tinha entrevistado nas negociações entre Portugal e a Guiné-Bissau. Aliás, lembro-me de, na apresentação, dizer que este era o primeiro terrorista a falar na televisão portuguesa. Mas o Spínola, que tinha sido governador da Guiné, disse logo: 'Aquele tipo da barba nunca mais aparece na televisão'. Nunca percebi como, mas de repente fiz um Telejornal e não aconteceu nada, por isso continuei.

O Teledomingo foi a estreia do formato debate na televisão portuguesa. Onde foi buscar a inspiração?

Foi uma das coisas que os ingleses me ensinaram a fazer. Vi, e participei nas equipas de produção, de muitos debates em Inglaterra, feitos pelos melhores, como Robin Day, David Frost, Michael Parkinson. Na democracia estes formatos são muito importantes.

Os debates são sempre propícios a episódios caricatos, como quando mandou calar Durão Barroso…

Tinha de o mandar calar. Era um programa sobre educação e ele saca de um monte de folhas e diz que tem uma deliberação de uma RGA e que está mandatado para ler 17 páginas. E eu disse que estava mandatado pelos espectadores e portanto ele tinha de se calar. Mas ele não se calava e aí dei a palavra ao tipo da União de Estudantes Católicos. Mal acabou o programa, tinha umas 300 pessoas do MRPP à porta a gritarem 'Estudantes de Direito exigem falar na televisão!'. E a chamarem-me social-fascista. Hoje em dia dou-me bem com ele e até já falámos deste episódio e rimo-nos.

Já no debate Soares – Cunhal, teve de começar com uma mentira?

Foi uma mentira piedosa. Eles não queriam, mas eu achava que tinham de discutir os dois na televisão. Pedi para falar com o Soares e menti: 'Vou dizer que o senhor não aceitou, porque o Álvaro Cunhal já aceitou'. Ele disse que já me ligava e passados uns minutos disse que aceitava. Liguei ao Cunhal a dizer que o Soares aceitava e ele disse que sim. Se não tivesse mentido não tinha havido debate.

Os bastidores de um debate como esse são muito tensos?

Havia tensão, mas mais das pessoas que acompanhavam cada um deles. Fiz sempre as coisas à inglesa. Nunca houve cronómetro. Sempre achei que, quem deitasse a mão ao debate, ganhava porque era melhor que o outro. Mas eu é que dirigia o debate. E sempre me ensinaram que, no estúdio, temos sempre razão. Os debates de hoje são mal feitos. Mas a causa principal nem são os moderadores, é a falta de qualidade dos intervenientes.

Nunca teve nenhum nome vetado?

Não, nem pedia autorização a ninguém. Mais tarde houve tentativas. Nesse campo, a minha opinião é que o PS foi o pior.

Já disse inúmeras vezes que, no que toca ao poder imiscuir-se na comunicação social, não há pior do que o PS. Porquê?

Disse e digo. Nessa fase, só não foi pior porque estava lá um homem, presidente da RTP, um socialista, mas um homem sério, o João Soares Louro. E tive, e tenho, outros grandes amigos no PS, como o Salgado Zenha. O João Soares também é um tipo de quem gosto, com sentido de humor. Uma vez, a propósito de um comentário que fiz no Cobras e Lagartos, sobre a falta de urinóis em Lisboa, mandou-me um penico em loiça vidrada.

'O Cobras e Lagartos', programa de 1996, da RDP, foi o episódio mais negro da sua carreira, em que acabou despedido da estação e acusado de racismo.

Aquilo é uma montagem sinistra. Há um ouvinte que está sempre a dizer 'Os pretos isto, os pretos aquilo…'. Eu, quando respondo, uso a expressão do ouvinte. De repente, aparece uma montagem em que só se ouve a mim. E o Albarran emite aquilo na TVI. Pela maneira como lançou as imagens, só posso acreditar que estava feito com quem montou isto.

Que sempre disse ter sido o PS. Por que acredita que se tornou nesse alvo?

Não faço ideia. Acho que era desnecessário. Quando ganharam as eleições perguntei se queriam que parasse com o programa e disseram-me que não. E depois fazem aquilo. Porquê? Não me esqueço que ia buscar as coisas a um cacifo – que era a única coisa que tinha na RDP – e havia ordens para nem me deixarem entrar. De um dia para o outro. Isso não se faz. E depois vem o Jorge Coelho dizer-me que não teve nada a ver com isso. Não sei quem foi, se foi ele, o Sócrates… Eles eram os peões de brega. Não acredito que fosse o engenheiro Guterres, que deveria ter mais em que pensar.

Concorda com a privatização da RTP?

Não. O estado deve ficar com um canal generalista como a RTP1, e a RTP2 devia ser um serviço público de excelência.

A RTP2 ainda é a menina dos seus olhos?

Sim, sempre foi. Sobretudo pelo êxito que foi o lançamento da autonomia da 2, com o Fernando Lopes a dirigir, eu na informação e o Mega Ferreira nos programas. Conseguimos, muitas noites, ter mais audiência. Além disso, na 1 sentia-me imposto. Na 2 sabia que, se me viam, era porque me queriam mesmo ver.

O que vê na televisão?

Filmes, séries e futebol. Sou benfiquista desde o tempo do Coluna, do Eusébio, do Germano… Fui amigo deles todos. Mais uma coisa que devo à poliomielite. Não havia Alcoitão, e tive um massagista, o Mão de Pilão, que era o massagista do Benfica. Ia ao Estádio da Luz ser massajado por ele e criei amizades que mantenho até hoje. E mais, como eles viviam no lar do Benfica, fazia-lhes contrabando de cigarros, que eu comecei a fumar aos nove anos.

Em 1978 regressou à RTP para dirigir a informação do canal 2 e, entre outros programas, criou o Tal & Qual, um dos seus maiores sucessos, que incluía uma rubrica de Apanhados. Mas o programa tem um final súbito. O que aconteceu?

O Tal & Qual, além dos Apanhados que era algo que tinha trazido de Londres e que servia como chamariz, tinha uma outra rubrica que era a entrevista histórica. Nesse episódio, a personalidade histórica foi um cónego e censor da Real Mesa Censória. Depois desse episódio, o Carlos Cruz, director de programas, diz-me que tinha recebido ordens da administração, do Victor da Cunha Rêgo, do PS, para acabar com o programa porque aquilo tinha melindrado a Igreja. Não acredito que tenha sido a Igreja, até porque, mais tarde, estive com o Cardeal e ele disse-me que não era verdade. Acho que é um caso parecido com o Cobras e Lagartos e que envolve outra vez o PS. O programa parou imediatamente e eu criei o jornal Tal & Qual.

É verdade que o jornal foi criado num jantar?

Sim, na noite de Santo António. Estávamos em Alfama, eu, o Rocha Vieira, o Ernâni Santos e o Ramon Font, a comer sardinhas e o Ramon disse que devia fazer um jornal com aquele título porque seria um sucesso. Na mesma semana, no dia em que o programa deveria ter ido para o ar, o jornal estava nas bancas. A primeira página da primeira edição foi a história do Sá Carneiro com a Snu, com o título 'Enfim Juntos' e uma fotografia deles num evento oficial. Começámos com 150 mil exemplares e foi logo um sucesso.

Como conheceu Ramalho Eanes?

O Eanes entra no mesmo dia que eu na RTP, a seguir ao 25 de Abril: ele entra para os programas e eu para a informação, ele tinha vindo de Angola e eu de Londres. Conhecemo-nos na sala de espera do presidente da RTP. Algum tempo depois ele é nomeado presidente da RTP. Almoçávamos juntos todos os dias. Ele vinha da Lapa, onde era a sede da RTP, passava pelos estúdios do Lumiar e íamos almoçar à Quinta de São Vicente. Construímos uma relação, por isso, quando ele foi injustamente acusado de estar envolvido no golpe de 11 de Março de 1975 e saiu da RTP, eu, por solidariedade, juntamente com o Álvaro Guerra, demito-me. Isso aproximou-nos muito. Em 1976, quando ele se candidata pela primeira vez à presidência, tive a surpresa de me convidar para o apoiar.

Por que não aceitou?

Porque não consegui apoiar uma pessoa – que apoiava pessoalmente – mas cujos apoios públicos incluíam o PSD e o CDS. Expliquei-lhe as minhas razões e acho que ele não ficou melindrado. E havia outro motivo: tinha acabado de criar O Jornal. E estar ligado a um jornal e apoiar um candidato não me pareceu bem. Mas ele até me perguntou se eu achava que ele devia avançar. Eu disse que sim. É um homem sério e capaz.

Nos anos do primeiro mandato de Eanes, voltou à RTP, teve o Tal & Qual e, em 1980, na recandidatura, ele volta a desafiá-lo, mas para porta-voz. Já não teve dúvidas?

Também hesitei. Fui a Paris para falar com o Pierre Salinger, um grande jornalista da CBS e que tinha sido porta-voz do John Kennedy. Tínhamos amigos comuns e consegui arranjar um encontro. Almoçámos num bistrot bem simpático e disse-lhe que tinha este convite, mas que era jornalista, que nunca tinha saído do jornalismo, e que não sabia o que fazer. E ele disse-me: 'Aceita porque nunca vais aprender mais do que vais aprender ali'. E confirmou-se. Não me arrependo nada.

Sentiu anticorpos, até da própria classe jornalística, por passar para o outro lado?

Quando se vai só se ouve 'já sabes que estou com vocês, tudo o que precisares, diz ao general que é o que quiserem!'. Quando se volta é que há esses anticorpos. Mas não entendo. O que não se pode é ser tudo ao mesmo tempo, não se pode ser jornalista e andar a fazer os fretes que muitos fazem. A mim ninguém me requisitou, eu demiti-me e vendi o Tal & Qual para ir para Belém.

O mandato de Ramalho Eanes terminou em Março de 1986. De seguida fez a campanha, também para a presidência, de Salgado Zenha, e em 1989, participou na campanha de Marcelo Rebelo de Sousa, para a Câmara Municipal de Lisboa. Hoje em dia participaria numa campanha política?

Se gostasse do candidato, mas não vejo nenhum de quem possa gostar. Mas devo dizer que dá muito gozo fazer uma campanha. É das coisas mais interessantes que há. Aprendi muito com o responsável pelas campanhas do Willy Brandt e do Helmut Schmidt. Eu não sabia nada. É fascinante ver a evolução de um candidato. Não esqueço nunca a campanha do Salgado Zenha – foi uma campanha suja que fizeram contra ele. Gente do PS, contra gente do PS. Mas foi uma campanha interessantíssima e perdida resvés. O Zenha era um ser superior.

São três homens com visões muito diferentes. Não é necessário haver uma identificação com o candidato? Ou é só um trabalho?

Com o candidato e com as ideias. Fazer campanha por expediente, do género 'está aqui um senhor para fazer uma campanha', não.

Mas como é possível identificar-se com projectos de espectros políticos tão distintos?

Tenho de me identificar com as pessoas. O Marcelo, politicamente não me identifico de maneira nenhuma com ele, mas achei que dava um presidente de câmara divertidíssimo. Mas nesse ano tive um choque. Já tinha dito que sim ao Marcelo e, de repente, sei que o meu amigo Jorge Sampaio se candidata ao mesmo. Mas não ia mudar de um para o outro.

E votou em quem?

Acho que votei no Marcelo. Não me lembro.

Vota?

Sempre. E sinto-me cada vez mais empurrado para o PCP. São os únicos que nunca me enganaram.

Em 1987 regressa ao jornalismo na equipa fundadora da Sábado. Já tinham passado muitos anos longe da imprensa escrita. O que encontrou ali?

Foi o Santana Lopes que me convidou. A equipa já estava escolhida quando fui para lá e encontrei gente, como a Constança [Cunha e Sá], de muita qualidade. Mas não conhecia ninguém. Foi nesta altura que voltei a trabalhar como produtor independente de televisão e fiz, para a RTP, o Já Está, o Café Lisboa e, mais tarde, o Conversa Afiada, que foi o último programa que fiz na televisão, em 1995. Um ano depois fui fazer o Cobras e Lagartos, na RDP.

Tem dois filhos, de dois casamentos. A dedicação ao trabalho prejudicou a sua vida familiar?

Acho que não. E já sou avô de uma neta e um neto. E gosto muito desse papel. Tive as melhores referências de avós. Não almejo a ter a qualidade que os meus tiveram.

Tem 70 anos. Como encarou esse número?

Nunca esperei chegar a esta idade. Andei sempre com a ideia que era como Cristo, que ficava nos 33. Quando comecei a ver os anos a passarem, pensei que a partir daí era sempre ganho. Não me sinto angustiado com a ideia da morte. Mas há certas coisas que sinto que já não vou ter tempo para fazer.

raquel.carrilho@sol.pt