A sequência folhetinesca da queda do GES tem sido acompanhada por uma espécie de coro grego de revelações jornalísticas sobre uma fatalidade há muito anunciada mas, ainda assim, parecendo ter apanhado praticamente toda a gente desprevenida e, logo, estupefacta. Como é possível, como foi possível? Deveríamos antes surpreender-nos com a persistente cegueira perante os sinais que se foram acumulando diante de tantos olhos incrédulos.
Eis outra moral da história: a caixa negra onde estavam fechados os negócios letais do GES também aprisionava aqueles que, por incúria ou temor, não os desmontaram a tempo, até a caixa explodir quando era já tarde demais para precaver os efeitos da detonação. Nada que fosse propriamente uma novidade na selva da finança contemporânea, como aconteceu com o crash de 2008 que pôs a nu os desmandos de escroques deixados à solta como Madoff.
Um jornal diário, o i, tem sido o principal mensageiro de um rol crescente de inconfidências registadas nas reuniões dos Espírito Santo: daí resulta um streaptease inédito mas sumamente instrutivo, tendo em conta os pergaminhos familiares e o labirinto tortuoso das ramificações internas e externas do GES (cuja derrocada deu a este caso uma projecção mediática internacional sem precedentes). Também o SOL, o Expresso e o Público vêm trazendo novos elementos para um dossiê estranhamente descurado pela imprensa económica especializada.
Mas se as revelações são muitas vezes chocantes – como o será qualquer striptease de costumes ocultos numa família que se quer respeitável -, o que se extrai dos diálogos e interpelações entre membros do clã é, essencialmente, uma confirmação das suspeitas que qualquer pessoa medianamente informada poderia formular acerca do GES.
Temos, assim, um psicodrama familiar em episódios, no qual o chefe do clã, manietado pela sua megalomania e por um confrangedor diletantismo empresarial, aposta desesperadamente num 'salve-se quem puder' perante a apatia submissa da maioria dos membros da tribo, com excepção mais notória de dois deles cuja animosidade relativamente ao chefe se foi acentuando ao longo do tempo: Ricciardi e Ricardo Abecassis.
O episódio divulgado pelo i na quarta-feira é edificante: Salgado utilizara uma sociedade suíça, a Eurofin, para tirar 800 milhões do BES e tentar cobrir o buraco do GES. Só que a novidade sublinha sobretudo o padrão de comportamento de Salgado, já patente em anteriores reuniões do núcleo familiar: o recurso a expedientes patéticos e tráficos de influência caricaturais, como escapatória desesperada ao colapso a que conduziu o Grupo.
A surpresa é outra: dentro ou fora do GES, Banco de Portugal (BdP) ou Governo – o primeiro por temor reverencial, o segundo por preconceito ideológico – não se deram conta, a tempo e horas, que o comboio estava fora dos carris e ia precipitar-se na ribanceira, provocando a onda de choque e os custos para os contribuintes que hoje se projectam. A caixa negra é uma caixa de Pandora.
A comissão parlamentar de inquérito ao BES iniciará os seus trabalhos a 17 de Novembro com a audição do governador do Banco de Portugal, mas já nesta quarta-feira a Oposição acusava Carlos Costa de ter mentido nas suas anteriores declarações aos deputados (aliás, contraditórias com uma informação do próprio BdP).
Seja como for, o papel do supervisor parece cada vez mais ensombrado pela intervenção – pelo menos titubeante, condescendente e tardia – que teve na maior crise bancária do país. Num clima pesado de perda de confiança, a caixa negra das suspeições ameaça crescer. Porque é que Salgado foi deixado à solta no BES para consumar os últimos e irreversíveis estragos? Eis uma caixa que é preciso abrir.