2. É algo que muito confunde os portugueses: o sistema político e eleitoral americano é, a um tempo, estimulante e complexo. Complexo, sobretudo, para os portugueses, pois o nosso Estado é unitário – com eleições nacionais, locais e regionais, cada uma a seu tempo e com um âmbito claramente definido. A Assembleia da República é eleita de quatro em quatro anos em “bloco”: isto é, não se altera a sua composição parcialmente de dois em dois anos. Já o Presidente da República é eleito de cinco em cinco anos, por sufrágio directo e universal – não tendo a sua eleição qualquer impacto na composição da Assembleia da República. Nem, ao invés, a vitória de uma maioria diversa da que apoiou o Presidente da República em exercício de funções nas legislativas – terá qualquer impacto no titular deste último órgão de soberania.
3. Já nos Estados Unidos, o Presidente é eleito de quatro em quatro anos, assentando a sua legitimidade directamente no voto popular, ainda que intermediado pela decisão dos grandes eleitores de cada Estado. Isto porque a Constituição dos EUA acolheu tanto o princípio democrático, como o princípio federal: a eleição dos grandes eleitores a nível estadual consiste na forma de articular o direito de participação política de cada cidadão (princípio democrático) com a intervenção dos Estados na designação do Presidente da União (princípio do federalismo). Entenderam, pois, os founding fathers que a intervenção dos Estados no processo de designação do Presidente é, igualmente, um mecanismo de limitação do poder central.
4. Pois bem, é precisamente com base nesta linha de raciocínio que podemos explicar a realização de eleições intercalares, de dois em dois anos, para o Congresso (Senado e Câmara dos Representantes): ao se garantir a renovação das Câmaras legislativas, a Constituição assegura a efectivação do princípio do “governo limitado” (limited government), reduzindo as possibilidades de uma mesma maioria controlar o poder legislativo e o poder executivo durante um período temporal significativo. No fundo, a renovação da composição das câmaras legislativas permite que estas possam funcionar como um contrapeso à administração: concretiza-se, pois, o princípio da separação de poderes, na sua dimensão de “checks and balances”, de pesos e contrapesos. O poder limita, destarte, o poder.
5. Dito isto, o que decidiram, afinal, os americanos no acto eleitoral de ontem? Decidiram dar o controlo do Senado ao GOP (Grand Old Party), designação tradicional do Partido Republicano. Mas será que podemos daqui inferir que os americanos pretenderam, inequivocamente, castigar Barack Obama? Sinceramente, não cremos. Porquê? Vejamos.
6. Em primeiro lugar, porque apenas uma parte do eleitorado norte-americano foi chamado, ontem, às urnas: apenas os eleitores dos estados em que se disputava os lugares respectivos no Senado (ou na Câmara dos Representantes). Quanto aos demais – a maioria dos eleitores – não tiveram a oportunidade se pronunciar e fazer o juízo político sobre o mérito da actuação de Barack Obama.
7. Em segundo lugar, os estados em que se realizaram eleições intercalares ontem – são estados muito favoráveis ao Partido Republicano. A regra, independentemente das circunstâncias políticas históricas do momento em que se realiza a eleição, é o Partido Republicano vencer – e a excepção (para não dizer, em alguns casos, impossibilidade lógica) é o Partido Democrata arrebatar a maioria dos votos. Portanto, os Republicanos partiam a vantagem: bastava conquistarem seis dos estados qualificados como oscilantes (swing states) para conquistar o controlo do Senado. E os estados oscilantes que ontem realizaram eleições são, eles próprios, muito favoráveis aos Republicanos. Logo, o controlo do Senado pelo GOP não é uma surpresa: é apenas uma constatação que há muito se antecipava.
8. Em terceiro lugar, a verdade é que os Republicanos ganharam eleições – mas sem programa, sem compromissos ideológicos ou de medidas concretas que irão adoptar. Por uma razão muito simples: é que a ala moderada (que é a maioritária) do Partido Republicano teve de ceder ao Tea Party, de forma a que esta ala (mais à direita) do partido não apresentasse um candidato próprio. Objectivo: não dispersar o eleitorado que é contra o Partido Democrata, que é contra as políticas de Barack Obama. Ao não assumir um programa ou uma orientação política geral, o Partido Republicano vai fazer uma gestão política casuística, tentando conciliar as várias sensibilidades em casos individuais e concretos. Basta pensar em Mitch McConnell , senador eleito pelo estado do Kentuchy, que nunca se excedeu em promessas, nunca assumiu um discurso excessivamente radical contra o Presidente Obama. Porquê? Porque, volvidas três décadas no Senado, o Senador McConnell será o líder da maioria e, portanto, não lhe convém colar-se a uma sensibilidade do Partido Republicano – nem tão pouco inviabilizar, como princípio de acção política, entendimentos de viabilização pontuais de iniciativas políticas da Administração Obama.
9. Por outro lado, a verdade é que nem se comemorou muito nas hostes republicanas: por exemplo, ouvimos na FOX NEWS, às 5 h da manhã, um assessor político republicano, que trabalhou com Ronald Reagan e depois com George W. Bush, afirmar que o GOP tem um caminho muito longo para percorrer e que precisa de um make up urgente. Afirmou mesmo que caso o GOP fosse uma empresa privada, os seus responsáveis de relações públicas já teriam sido despedidos há muito tempo!
10. Qual foi o único que uniu, nestas eleições intercalares, os republicanos? A oposição à Obamacare. No entanto, é uma causa não muito forte, para não dizer fraca: é que a decisão do Supremo Tribunal que declarou o programa de saúde implementado por Barack Obama não inconstitucional permitiu que surgissem várias lacunas na interpretação da lei, que tem permitido alguns estados contornarem a obrigatoriedade do seguro de saúde e a consequente inscrição no plano da Obamacare. Além disso, como escreveu Paul Krugman na última edição da revista Rolling Stone, a Obamacare será inevitavelmente acolhida pelos Republicanos: é que a opinião pública, que já beneficiou do programa e que já constatou os efeitos benéficos do programa, não aceitará uma eliminação total do programa de saúde universal. Por força das pressões do “mercado eleitoral”, os republicanos acabarão por ceder.
11. Por último, refira-se que, não obstante tudo o que atrás escrevemos, não podemos negar a realidade: Barack Obama hoje está muito mais limitado na sua acção política do que no dia de ontem. O Presidente dos Estados Unidos já não fará nada nos próximos dois anos que ficará para a História. É o início do fim do ciclo Obama.