Foi um presente caído do céu para as bancadas da maioria, acossadas pelas contradições clamorosas do primeiro-ministro sobre a reposição dos cortes nos salários dos funcionários públicos. Os líderes parlamentares do PSD e do CDS, secundados pela ironia cáustica de Paulo Portas, não deixaram escapar a oportunidade para iludir a evidência de um Orçamento colado com cuspo e mascarar as dissidências estratégicas entre os partidos do Governo.
Sócrates e o peso do passado socialista passaram a ser o bombo da festa para os tenores da coligação. O PS prestara-lhes um imenso favor, quase eclipsando as trapalhadas discursivas do primeiro-ministro.
Perante o nervosismo crescente nas hostes da direita sobre a perspectiva de verem os socialistas ganhar as próximas eleições por maioria absoluta – bastando a Costa permanecer mudo, quedo e quiçá morto até ao sufrágio – o PS parece agora empenhado em emprestar uma inesperada esperança de vida à coligação.
De facto, por maiores que tenham sido os esforços subjectivos de Sócrates e seus pares para evitar a intervenção da troika, foram a cegueira persistente e a arrogância incurável do antigo primeiro-ministro, prosseguindo uma política de novo-riquismo despesista, que conduziram o país a esse beco sem saída. Assim, a reivindicação do legado socrático tenderá a levar os eleitores a temer pelo retorno a um passado de má memória, com a repetição de políticas cujos custos ficaram à vista de todos (a não ser à dos que nada aprenderam com isso).
O regresso ao passado tem, além do mais, outro inconveniente flagrante: o de que é vaga e incerta a aposta no futuro. A invocação saudosa de Sócrates – vivamente aplaudida, aliás, pelos deputados socialistas – pode convidar os eleitores a desconfiarem de que, afinal, por detrás do novo líder visível do partido se perfila a sombra de um líder invisível, sebastiânico.
Assim, não é nada certo que António Costa possa fingir de morto até que a maioria absoluta lhe caia na bandeja.
Pelo contrário, o profundo desencanto do eleitorado não será superado por uma aposta no vazio, embora encarnado por uma cara nova. Quanto mais Costa refina os seus golpes de manobrador, mais corre o risco de alimentar a suspeita de que propõe uma nova encenação política e não uma verdadeira alternativa. O actual flou socialista explica-se pela fase de transição em que o partido se encontra – como pretende Costa – ou traduz uma realidade mais insondável?
No recente debate parlamentar, Vieira da Silva evitou comprometer-se com a devolução dos cortes aos funcionários e foi preciso Costa ser desafiado por Pacheco Pereira na Quadratura do Círculo para afirmar que essa reposição derivava de um imperativo constitucional. Já no dia seguinte, no Parlamento, Ana Catarina Mendes anunciava um compromisso socialista nesse sentido. Foi apenas um acidente da transição ou um tique do tacticismo costista, já patente nos avanços e recuos do PS sobre a reestruturação da dívida?
Ferro Rodrigues afirmou no Parlamento que Passos e Portas são “os gémeos siameses da austeridade”. Só que é muito mais vasta a confraria dos siameses da política portuguesa.
Ainda agora, as diatribes de Passos Coelho contra os jornalistas e comentadores fizeram curiosamente lembrar…José Sócrates. Aliás, à medida que o tempo passa, os tiques de obsessão, soberba ou cinismo aproximam dois líderes aparentemente muito diferentes no estilo mas irmanados por um comum autismo político.
E se recordarmos os currículos respectivos, as redes das amizades (Sócrates com Vara e Passos com Relvas, por exemplo) ou até os antigos expedientes profissionais (designadamente a Tecnoforma de Passos e os projectos municipais de Sócrates) verificamos uma perturbante irmandade de comportamentos, senão mesmo uma irmandade genética. Irmandades de que Costa precisa de demarcar-se para poder existir com uma verdadeira marca de diferença e sem a sombra de passados comprometedores.