Mas as comemorações deste fim de um mundo coincidem com uma viragem de sentido oposto. Declarada extinta com o colapso da União Soviética, a Guerra-Fria está de volta, como nos mostram as convulsões na Ucrânia e a arrogância imperial da Rússia de Putin. Sinal dos tempos: o mesmo homem que encarnou o início da democratização no Leste europeu, Mikhail Gorbatchov, aparece hoje a justificar o novo expansionismo russo.
Entretanto, uma onda crescente de instabilidade e incerteza varre outras regiões do mundo, com destaque para o Médio Oriente, onde se assiste ao fanatismo bárbaro do chamado Estado Islâmico (EI) ou a mais um reacender do conflito israelo-palestiniano. E mesmo quando se anunciam compromissos auspiciosos, o que prevalece são as crispações embrulhadas em retórica diplomática, como se verificou na última cimeira das potências do Pacífico, reunidas esta semana em Pequim.
Dias antes do aniversário da queda do Muro, Barack Obama sofria a derrota decisiva do seu segundo mandato, às mãos do radicalismo acéfalo do Partido Republicano. É o crepúsculo melancólico de quem representou a maior esperança da política internacional nas últimas décadas, um homem cuja popularidade irradiou por vários continentes – e muito especialmente na Europa –, a quem se atribuíram virtudes visionárias e um carisma capaz de empolgar a América e o mundo.
Obama enfrentou a crise financeira e social mais grave vivida pelos Estados Unidos desde a Grande Depressão e seria uma injustiça enorme negar-lhe o mérito de ter reconduzido o seu país aos caminhos da recuperação económica e de uma baixa acentuada do desemprego, sem esquecer o empenho no combate à pobreza e a reforma do sistema de saúde. Mas, injusto ou não, os americanos manifestaram-se frustrados com esse legado, porventura devido ao excesso de expectativas que Obama suscitou.
Com a passagem do tempo, o líder mobilizador foi dando lugar a um político frio e distante, desgastado pelas batalhas do establishment de Washington. E, no campo internacional, o sonho e o verbo inspirado, que fizeram vibrar multidões desde Berlim até ao Cairo, diluíram-se num realismo político sem chama, numa inesperada pusilanimidade ou até numa inépcia chocante (perante os massacres na Síria e o sectarismo do anterior governo iraquiano que favoreceram a irrupção do EI).
A dois anos do fim do mandato, Obama parece definitivamente condenado a sair de cena como o protagonista de uma grande desilusão que projecta sobre a América a sombra inquietante de um beco sem saída, enquanto cresce o obstrucionismo vazio e retrógrado do Partido Republicano.
Mas se o futuro da América nada oferece de risonho, se o caos ou o regresso às ditaduras matam as promessas das Primaveras Árabes, que diremos da Europa, com os seus sistemas políticos cada vez mais bloqueados e entregues ao populismo xenófobo da extrema-direita ou ao voluntarismo de uma extrema-esquerda que parece esgotar-se na crispação ideológica?
Em França, Hollande e o Governo socialista registam recordes inéditos de impopularidade, favorecendo sobretudo a Frente Nacional. Em Espanha e na Grécia, a esquerda radical ameaça ultrapassar a esquerda e a direita tradicionais. No Reino Unido, conservadores e trabalhistas mostram-se progressivamente reféns do movimento eurocéptico. E os exemplos poderiam multiplicar-se em variantes menos agressivas, mas ainda assim perturbadoras, noutros países.
No entanto, o que agora ameaça ferir o coração institucional da Europa é a perda de autoridade do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Jun- cker, depois das informações sobre a evasão fiscal no país onde ele foi primeiro-ministro durante o período em que centenas de multinacionais aí se instalaram num regime de excepção.
Trata-se de um ‘segredo de Polichinelo’, já que o estatuto de ‘paraíso fiscal’ do grão-ducado luxemburguês não era desconhecido por ninguém. Mas a dimensão e significado do escândalo, publicitado uma semana depois da posse de Juncker como chefe do Executivo europeu, afecta gravemente a sua credibilidade política, ainda por cima numa altura em que a Comissão Europeia enfrenta os maiores desafios da sua história.
Com Obama e Juncker tão duramente enfraquecidos, a América e a Europa têm pela frente um perigoso horizonte de desesperança democrática.