Um sobressalto que vem na sequência de outros que têm acontecido pelo continente fora nos últimos anos: elevadíssima abstenção, ressurgimento de partidos da extrema-direita ou mesmo neofascistas, vitória da extrema-esquerda (Syriza) numas eleições na Grécia, resultados surpreendentemente altos de candidatos-clown, como Beppe Grilo ou José Manuel Coelho.
Tudo isto mostra desconfiança nos políticos, cansaço dos cidadãos e descrença na democracia.
Há razões para esta descrença que estão à vista de todos: os políticos fazem promessas que depois não cumprem – e o eleitorado, após ser enganado uma vez, duas, três, começa a não acreditar em nada.
Lá diz o ditado: «À primeira cai qualquer, à segunda cai quem quer, à terceira cai quem é parvo».
Podemos estar a chegar a esse ponto.
Existe a sensação de que a confiança das pessoas nos políticos (sobretudo, os do sistema) está a esgotar-se.
Muita gente já não acredita no Governo mas também não acredita na oposição tradicional.
Há uma certa ideia de ‘pântano’, como dizia Guterres – e, perante isto, é perfeitamente natural que se comecem a procurar alternativas fora das soluções habituais.
Mas, por detrás dessa falta de confiança nos políticos, está outra razão mais funda que condiciona tudo: na Europa deu-se um clique que pôs os ponteiros do relógio a andar ao contrário.
Durante séculos a Europa cresceu continuamente – e, à sombra desse crescimento, os políticos puderam ir oferecendo sucessivas benesses: saúde e educação gratuitas, redução das horas de trabalho, um mês de férias pago a dobrar, legislação laboral favorável ao trabalhador, etc.
Estas regalias sofreram um grande impulso a partir da 2.ª Guerra Mundial.
De facto, após a vitória das democracias sobre o totalitarismo nazi, intensificou-se o discurso assente nas virtudes da liberdade – mas essas palavras eram sempre acompanhadas por rebuçados para distribuir aos eleitores.
Os políticos, a par das tiradas bonitas, ofereciam aos cidadãos novas regalias.
Foi neste período de crescente bem-estar que se impôs e vulgarizou em toda a Europa o ‘rotativismo’, um modelo que vinha do século XIX mas que fora interrompido pela ascensão de partidos totalitários de direita ou esquerda em vários países europeus no intervalo das duas grandes guerras.
O rotativismo significa a alternância no poder de dois partidos moderados, um mais à esquerda e outro mais à direita, e é o modelo adoptado pelas democracias bem-sucedidas.
Em Inglaterra, alternam no Governo trabalhistas e conservadores; em Espanha, sucede o mesmo com PSOE e PP; em França, revezam-se o PSF e os gaullistas; na Alemanha, o SPD e a CDU (que, por acaso, estão agora ocasionalmente coligados).
E nos EUA passa-se o mesmo com o Partido Republicano e o Partido Democrata.
Este modelo, repito, funcionou bem enquanto houve benesses para distribuir.
Sucede que, depois de a Europa entrar em estagnação, os políticos começaram a não ter nada para dar.
Pior: nalguns países – como Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha, Itália – os governos passaram a ter de ‘roubar’ regalias às pessoas.
E aqui é que bate o ponto: como convencer os cidadãos a votar em quem não oferece nada?
Esta é a questão crucial com que hoje se debate a democracia na Europa.
E que pode favorecer partidos ou figuras radicais, como está a acontecer.
Resta saber se estes partidos ou figuras alternativas terão condições para se impor e ter sucesso.
Julgo que não – e desejo que não.
Julgo que não, primeiro, porque as sociedades têm instinto de sobrevivência – e, com raras e dramáticas excepções, acabam por recusar os aventureirismos e jogar pelo seguro.
Mas mesmo que esse instinto não funcione, quer a extrema-esquerda quer a extrema-direita terão enorme dificuldade em exercer a governação.
Uma coisa é ser oposição e dizer mal – outra coisa, muito diferente, é ser capaz de governar.
Os partidos extremistas têm projectos ideológicos, não têm projectos de poder.
Vivem na lua, mergulhados em discussões estéreis, faltando-lhes pragmatismo e realismo.
E o excesso de ideologia leva a que se desagreguem – mesmo depois de, com muito esforço, terem conseguido unir-se.
Veja-se o caso do Bloco de Esquerda – que resultou da fusão de três partidos, que por sua vez já tinham resultado de outras fusões.
O BE apareceu de rompante, subiu, chegou a ultrapassar o PCP – mas, passado pouco tempo, entrou em rampa descendente e começou a desagregar-se, pulverizando-se outra vez numa série de grupos e grupelhos.
Os extremismos acabam sempre assim: desfeitos por dentro, divididos por questões ideológicas que só para eles são ‘importantíssimas’.
E se por acaso chegam ao poder, é a tragédia.
Veja-se o que sucedeu com o partido nazi na Alemanha ou com o partido comunista na União Soviética: a imposição às sociedades de modelos ideológicos construídos na cabeça de alguns iluminados redundou em terríveis catástrofes humanas; como a teoria não encaixava na realidade, torceram a realidade à bruta, com as consequências conhecidas.
Deus nos livre de novas experiências destas!
Para isso – e porque a Europa já não vai voltar aos bons velhos tempos da abundância –, os partidos com vocação de poder têm de mudar o seu funcionamento e a relação com os eleitores.
Têm de ser mais frontais e honestos.
Os semeadores de ilusões, tipo Sócrates – que fazia inaugurações diárias onde nos convencia de que o país estava florescente, quando já estávamos à beira do precipício –, têm de acabar.
As próximas eleições legislativas serão um óptimo momento para aferir do estado de espírito dos portugueses: se querem mudar de rumo e acreditam no PS para fazer essa mudança, se querem manter o rumo dando a vitória ao PSD, ou se querem embarcar numa aventura apostando num ‘Podemos’ qualquer que surja até lá.
Entretanto, talvez não fosse mau que uma força extremista chegasse ao poder num país da Europa – porque isso poderia funcionar como uma vacina.
A experiência, segundo penso, seria tão traumática que ninguém mais quereria seguir-lhe o exemplo.