O Vale e Azevedo da política

Há quatro anos, era José Sócrates ainda primeiro-ministro, escrevi uma crónica onde lhe chamei «o Vale e Azevedo da política».

Porquê?

Conhecia pessoalmente os dois, falei com eles em várias ocasiões, e percebi que tinham uma característica em comum: não distinguiam entre a verdade e a mentira. 

Diziam verdades e mentiras exactamente com a mesma cara e a mesma convicção.

Não se podia afirmar que ‘mentiam’, pela simples razão de que os seus códigos mentais eram outros. 

Um dia, num almoço a dois no Pabe, Sócrates disse-me que tinha decidido abandonar a política e ia fazer um mestrado em Londres.

Confidenciou-mo de coração aparentemente aberto, dizendo-me que a política era uma actividade madrasta, que todos saíam de lá mal (Guterres tinha-se demitido pouco tempo antes), pelo que decidira seguir outra vida.

Quando cheguei ao jornal, comuniquei isto à jornalista que acompanhava o PS, para fazer uma notícia.

Perante a minha surpresa, ela respondeu-me: «Isso é falso. Sócrates está neste momento a fazer contactos para concorrer à liderança do PS».

Tive dificuldade em acreditar.

Mas poucos meses depois Ferro Rodrigues demitia-se, Sócrates candidatava-se ao seu lugar e conquistava a liderança socialista.

Palavras para quê?

A propósito, como se sentirá Ferro depois de, com tanta emoção, ter elogiado Sócrates em pleno Parlamento?

Mas, voltando ao nosso Vale e Azevedo, quando comparei José Sócrates ao ex-presidente do Benfica não o fiz inocentemente: sem o dizer, quis sugerir que ele poderia ter o mesmo fim. 

E disse-o a vários familiares, para que ficasse registado: «Depois de Sócrates sair do Governo vai ser preso, como foi Vale e Azevedo depois de sair do Benfica».

Esta previsão assentava em quê?

No conhecimento pessoal que tinha de Sócrates e no que sabia dos sucessivos casos obscuros em que o seu nome aparecia sempre envolvido.

Fora o aterro da Cova da Beira, o Freeport, o Face Oculta, o Tagus Park…, já não falando do diploma da Universidade Independente e dos mamarrachos.

No Freeport tudo apontava na sua direcção – e acabou por escapar por entre os pingos da chuva.

O Face Oculta foi uma vergonha, com a tentativa de silenciar alguns jornais e de usar a PT para comprar a TVI, para expulsar Manuela Moura Guedes e José Eduardo Moniz. 

O Taguspark constituiu um escândalo que nunca foi devidamente valorizado: Sócrates ‘aceitou’ ser apoiado por Figo no mesmo dia em que este celebrava um contrato milionário com uma entidade pública!

Por estas e por outras, foi-se percebendo que José Sócrates, tal como não distinguia entre a verdade e a mentira, não destrinçava entre o bem e o mal, podendo envolver-se nas maiores trapalhices.

E a cumplicidade com pessoas que foram caindo nas malhas da justiça, como Armando Vara ou José Penedos, não ajudava nada. 

O aspecto mais estranho nesta história é a total falta de cautela com que agiu, como se estivesse certo da sua impunidade.

Os passos que foi dando tornaram-no um suspeito óbvio aos olhos da Justiça. 

Como é que um homem que esteve ininterruptamente na política durante 15 anos, com rendimentos modestos, poderia comprar um andar num edifício de luxo, adquirir um apartamento em Paris no XVI bairro, viver um ano sem trabalhar numa cidade caríssima, oferecer almoços e jantares a numerosas pessoas em bons restaurantes, viajar constantemente em Executiva, comprar um carro topo de gama?

Como?

José Sócrates expôs-se em demasia.

Claro que, até ser condenado, será presumivelmente inocente.

Mas a quantidade de informação que a investigação acumulou sobre ele é esmagadora.

Esta detenção está a ter um impacto enorme na Europa, onde não me lembro de um ex-primeiro-ministro ser detido por suspeitas de corrupção.

É quase inimaginável que o homem que ocupa o topo da hierarquia executiva de um país receba pessoalmente dinheiro para cometer ilegalidades.

Houve primeiros-ministros suspeitos ou detidos por fraude fiscal, ou por financiamentos partidários ilícitos, mas por corrupção não me lembro de nenhum.

Internamente, as ondas de choque desta notícia provocarão tremendos abalos. 

António Costa estará aflito: depois de acusar António José Seguro por não ter defendido o legado de Sócrates, vê esta herança desabar fragorosamente.

E a detenção do antigo líder é um tiro de canhão nas suas hostes, que integram pesos pesados do socratismo como Vieira da Silva, Pedro Silva Pereira ou Augusto Santos Silva. 

Sócrates era um daqueles políticos em relação aos quais ninguém ficava indiferente: ou se amava ou se odiava.

Os que o odiavam estão radiantes: finalmente prova-se que eram fundadas todas as críticas que lhe faziam.

Os que o amavam estão de rastos: o homem que os entusiasmou (e que conseguiu, não o esqueçamos, a única maioria absoluta da história do PS) caiu do altar.

E não foi por razões políticas.

Foi por suspeitas de se ter vendido por um prato de lentilhas.

Pior não podia ser.

jas@sol.pt