No maravilhoso mundo dos cogumelos

Todos os anos, Albano Carvalhinho abdica das férias da fábrica de águas onde trabalha para colher cogumelos. É assim desde “há muito”, conta o apanhador de boletos (boletus edulis, segundo a classificação de Lineu) e de míscaros amarelos (os tricholoma equestre), as duas espécies que abundam no pinhal contíguo a Manteigas, em plena Serra da…

No maravilhoso mundo dos cogumelos

Entre Setembro e Novembro, época alta para apanhar estes ‘fungos’ que gostam da humidade do Outono na serra, Albano, homem rústico e alegre, sai de casa antes do amanhecer, pelas 6h da matina e regressa já a noite vai adiantada, “às vezes à meia-noite”. 

Vale a pena: “Em anos bons”, conta o apanhador de 37 primaveras a sorrir, chega a “fazer 400 euros por dia com os míscaros amarelos”. E não são os mais rentáveis: “Se forem boletos, posso chegar aos 700 [euros]”. Mas esses são dias excepcionais. E este ano houve muitos cogumelos nos u campos, por isso, os preços pagos aos produtores são mais baixos.

Não é, portanto, de estranhar que o ‘tartulho’, nome por que também é conhecido o boletus edulis na Estrela, seja a espécie que o apanhador prefere, embora também apanhe ‘sanchas’ (lactarius deliciosus) para vender. 

No mercado dos cogumelos silvestres, o boleto é a espécie dos solos portugueses mais apreciada – e também a mais cara.

Duarte Marques, da Profungi – Associação Portuguesa de Produtores e Recolectores de Cogumelos, dá conta de vários preços. No Norte, conta, esta espécie atinge em média os 10 euros o quilo ao produtor, mas pode chegar aos 15 no centro do país. A disparidade de valores deve-se, explica o responsável ao SOL, ao facto de este ainda ser um mercado desregulado em Portugal, onde existe toda uma economia paralela. Lá iremos.

Albano Carvalhinho que acaba de trazer cerca de 30 quilos de cogumelos ao Míscaros, o Festival do Cogumelo que há seis anos leva turistas a Alcaide para conhecer uma das mais antigas tradições desta pequena aldeia beirã no concelho do Fundão, é um dos milhares de pessoas que, nas aldeias do interior de Portugal, se dedicam sazonalmente à apanha de cogumelos silvestres para vender. Este é sempre um trabalho temporário e incerto, dependendo do clima, explica Duarte Marques, por isso, a apanha serve sempre de “complemento ao rendimento”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Albano Carvalhinho mostra um dos míscaros amarelos que trouxe para o festival)

Cogumelos certificados

A comercialização dos cogumelos é, depois, assegurada por intermediários que, na maioria das vezes, entregam estes frutos em mercados espanhóis ou em empresas de transformação, que os congelam e expedem para a indústria e para os mercados de França e de Itália, sobretudo, continua o responsável, estimando que cada intermediário tenha “entre 20 a 50 apanhadores”.

Paulo da Fonseca, um dos financiadores do festival de Alcaide, onde marca presença anual, é um dos poucos comercializadores de cogumelos silvestres em Portugal (não haverá mais de três ou quatro, segundo a Profungi) que também os transforma. 

Na Naturafunghi, a sua empresa sedeada em Vila do Touro, no Sabugal, vende cogumelos frescos, secos e congelados, além de subprodutos deste fruto, como azeites, compotas e patés. Tem, conta, “dezenas de apanhadores, de norte a sul do país” a quem compra cogumelos. “Há-os todo o ano, dependendo da zona e das condições climatéricas”, refere o empresário, explicando que chega a comprar 400 toneladas de cogumelos num ano, para expedir depois para o mercado interno, mas sobretudo para grossistas em Espanha, França e Itália. “Para o mercado interno, será aí uma tonelada. Ainda se comem poucos cogumelos silvestres no país”. 

Homem bem-disposto e de gargalhada fácil, explica que decidiu investir “a sério” neste negócio, ao qual já se dedicava “de forma intermitente” antes, “há cerca de quatro anos”. 

E nada é deixado ao acaso na Naturafunghi. “Depois da triagem dos cogumelos que os apanhadores me entregam, mando-os para um laboratório em Castelo Branco para análise”, explica. Todos os seus produtos são certificados.
A Naturafunghi é uma excepção, nota o responsável da associação do sector, Duarte Marques. “A falta de controlo sobre o comércio de cogumelos silvestres é um dos problemas com que os produtores se deparam”, diz o responsável – a Profungi foi criada, precisamente, para orgnizar toda a fileira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(O Cãogumelo é o primeiro dos passeios do Míscaro – Festival do Cogumelo de Alcaide )

Uma troca perfeita

A necessidade de regulamentar a apanha e comercialização de cogumelos vai muito para além de uma uma questão económica. 

Num país em que dezenas de milhares de pessoas dos meios rurais apanha cogumelos no campo, sobretudo na floresta, uma vez que os fungos que ‘dão’ os cogumelos estabelecem muitas vezes uma relação de troca com determinadas árvores, como pinheiros, carvalhos, castanheiros, sobreiros e azinheiras, “manter o equilíbrio dos ecossistemas a que estão associados é fundamental”, alerta José Matos, apaixonado por cogumelos, que serve de guia a dois dos passeios micológicos do primeiro dia do Míscaros. 

O primeiro, o Cãogumelo, que serve para ensinar os cães e seus donos a distinguir as diferentes espécies silvestres – em França e Itália, por exemplo, existem os cães trufeiros, treinados especialmente para encontrarem as valiosas trufas que podem atingir dez mil euros por quilo no mercado –, percorre um caminho no pinhal da Serra da Gardunha conhecido pelas gentes de Alcaide, que “quase diariamente” vão apanhar cogumelos, sobretudo míscaros amarelos, a espécie típica de Alcaide. Não para vender, mas para consumo próprio. 

Um objectivo que, sublinha o especialista que começou a estudar a biodiversidade dos fungos da zona há cerca de dez anos, quando reparou na multiplicidade de cogumelos que existiam na sua quinta requer saber. “Saber e muita, muita experiência de campo para conseguir distinguir uma espécie de cogumelo comestível de outra  que pode ser muito parecida e perigosa para a saúde”. 

Durante o passeio no pinhal, onde a Natureza adoptou tons dourados por estes dias, repetem-se os exemplos da diversidade desta espécie que teve direito a um reino próprio, por ter características que a diferenciavam dos outros seres vivos, como os seres do reino animal ou do vegetal – o reino dos fungos. 

Ainda antes de entrar no pinhal, o senhor Zé, como é conhecido por aqui, detecta um trametis, uma das espécies mais comuns do mundo (e que não é comestível). “Antigamente, era utilizado para decorar os chapéus das senhoras”, conta o guia. Ao longo do passeio, muitas outras espécies darão conta da diversidade micológica da Gardunha, serra em que, aponta o senhor Zé, “estão identificadas 400 espécies de cogumelos diferentes”: logo a seguir, vê-se o hypholoma capnoides, que está sempre em grupo; a rússula atropurpurea, que assume tonalidades entre o vermelho e o negro e que pode ser tóxica; e, finalmente, imerso sob a ramagem que despiu os pinheiros, o primeiro cogumelo comestível, a amanita caesarea, assim chamada porque no tempo dos romanos era servida aos césares.

Segue-se o thricoloma colossus, gigante, como o próprio nome indica. José Matos aproveita para falar do vazio legal na protecção dos cogumelos em Portugal: “Em França e em Itália, a população de thricoloma colossus diminuiu e as autoridades proibiram a apanha. Cá ninguém sabe quantos há ou quantos são apanhados, porque ninguém controla a informação”, lamenta o especialista. É por isso, acrescenta, que defende que “todos os apanhadores tenham uma licença”. 

Há, afinal, cuidados a respeitar, como o transporte dos cogumelos em cestos ao invés de sacos de plástico, que impedem que os poros caiam e semeiem novos cogumelos, e a utilização de um canivete francês com o pincel de javali, para ‘limpar’ o cogumelo. E é necessário deixar por colher os cogumelos que não são comestíveis: “Bons ou maus, fazem falta à floresta”, avisa o senhor Zé já durante o regresso a Alcaide, onde fará um show cooking de cogumelos.

Uma surpresa e uma história 

Alcaide não é a única aldeia da zona onde se comem cogumelos há décadas. A meia-dúzia de quilómetros, António Primo mantém a surpresa pelo tamanho do míscaro que encontrou no seu terreno no lugar de Chão da Cruz. “Ainda não tinha visto nenhum tão grande este ano”, conta o homem, acabado de chegar do campo e visivelmente feliz pela descoberta. “Isto assado é muito bom, vou levá-lo para a minha netinha”. Em Fatela, conta o octogenário, as gentes comem míscaros “desde sempre”. Por isso, tem o saber de gerações que os especialistas começaram recentemente a validar: “Corto os cogumelos com a navalha, para deixar lá a semente”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(O 1.º  exportador de cogumelos, Albano Nunes)

Noutra serra próxima, a de Penha Garcia, mais precisamente em Aranhas (Penamacor), a época alta dos cogumelos “já terminou”, avisa logo Albano Nunes, dono de um comércio de aldeia que é café e supermercado. E ele sabe-o bem: é a pessoa que compra os cogumelos aos apanhadores para os vender para Espanha. “Fui a primeira pessoa a comprar em Portugal, já lá vão 29 anos”, afiança o sexagenário. Chegou a estar preso no Sabugal “por contrabando” destes fungos, que deixava perto do ‘rio’, nome por que é conhecida a fronteira com Espanha por aqui, “para os espanhóis virem buscar”. Hoje já não são necessários tais cuidados. Para comprar o míscaro vermelho, próprio destas terras, Albano Nunes só tem de definir o preço em função da qualidade e da quantidade da oferta. “Este ano, os bons já acabaram”, lamenta. Por causa da mosca que os atacou, pagou apenas 1,5 euros o quilo, expedindo-os para os mercados espanhóis no próprio dia. “Carregam-se os camiões pelas 19h e seguem directamente para Madrid”. Onde os cogumelos ‘cozinhados pela Natureza’ se transformam em requintados pratos europeus. 

Em Alcaide, esse requinte faz parte do saber gastronómico há décadas, repara a dona Ermelinda, dona de um restaurante na aldeia. 

sonia.balasteiro@sol.pt