Na noite da sexta-feira em que saiu essa crónica, José Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa, acontecimento que as televisões ilustraram com imagens fantasmagóricas incessantemente repetidas de movimentos de automóveis, no interior de um dos quais seria suposto encontrar-se o ex-primeiro-ministro. O conteúdo das imagens era manifestamente nulo, mas indicava que teria havido uma fuga de informação e que os media tinham sido previamente avisados da detenção de Sócrates na sua chegada à Portela.
É a partir daqui que se desencadeia uma onda febril de especulação, suspeição e até de histeria aparentemente imparável, extremando os campos entre os que condenam a escandalosa manipulação do caso pelo poder judicial – com os riscos inerentes de uma deriva justicialista – e os que gulosamente aproveitam a oportunidade para ajustar contas com uma das figuras mais polémicas da democracia portuguesa.
Chegou até a falar-se de um desmoronar do regime e, pelo menos, de uma crise política sem precedentes – com repercussões profundas no Partido Socialista e nas próximas eleições legislativas. Apesar da sábia prudência com que António Costa – eleito nesse mesmo dia secretário-geral do PS, uma coincidência de mau agoiro num filme de coincidências improváveis – quis separar as águas, ninguém acredita que o PS e a perspectiva de uma normal alternância política em 2015 escapem aos efeitos devastadores da tempestade.
Continuo a considerar que se tem generalizado a tentação da imunidade e impunidade entre os poderosos, facilitada pela longa história de inoperância da Justiça (veja-se o caso dos submarinos, só para dar um exemplo). Mas o circo mediático e justicialista montado em volta da detenção de José Sócrates ameaça assemelhar-se a um ajuste de contas político e corporativo, no interior do próprio sistema judicial, entre os que agora pretendem tirar a desforra daqueles que no passado foram complacentes com Sócrates nos vários casos em que o ex-primeiro-ministro apareceu envolvido (embora acabando sempre por manter-se imune e impune).
O pior que pode acontecer à Justiça é os seus agentes aparecerem como actores escondidos de manipulações mediáticas que propiciam julgamentos vingativos na praça pública enquanto os acusados não dispõem de um direito de defesa proporcional. E mesmo que estes sejam efectivamente culpados das acusações, essa culpa não pode ser objecto de uma condenação antecipada que anula a presunção de inocência – por muito que esta tenha sido usada e abusada pelos que se refugiaram atrás da muralha da imunidade e da impunidade.
Não sejamos hipócritas. Não é só em Portugal que se verifica uma contaminação entre a investigação judicial e a investigação jornalística e que as fronteiras entre uma e outra tendem frequentemente a diluir-se. Nem se imagina como poderia ser radicalmente de outro modo, a não ser num regime autoritário de segredo e censura que tornaria a opacidade ainda maior e as situações ainda menos escrutináveis. Por isso, não vale a pena investigar fugas de informação só para lavar as mãos de responsabilidades, como pretende a PGR, sabendo-se que a preservação do segredo das fontes está associado ao direito à informação.
O problema está, em larga medida, no desequilíbrio excessivo entre a disseminação e a vulnerabilidade de um poder mediático sem meios próprios de investigação e um poder judicial extremamente concentrado e poderoso (de que é exemplo o juiz Carlos Alexandre, quase um émulo de Baltazar Garzón, embora este se expusesse muito mais à transparência da informação judicial).
Como é sabido, não tenho simpatia política ou pessoal por José Sócrates e não sou imune às suspeitas que recaem sobre as consequências dos abusos do poder associados ao seu carácter arrogante e autoritário, com que o PS – e os portugueses – longamente pactuaram. Mas é preciso não subverter a ordem das coisas – e da Justiça – e evitar esse perigo altamente corrosivo para a democracia que é um Estado de suspeição.