Virados do Avesso – que conta a história de um escritor (Diogo Morgado) que um dia acorda e se esquece de que é gay – é o seu primeiro filme mainstream. Sendo um realizador independente, também acordou um dia ‘virado do avesso’?
É evidente que existe aqui uma componente de encomenda, como já tinha havido no telefilme Oito Oito, que fiz em 2001 para a SIC. Neste caso foi a Cinemate que me propôs o guião e eu achei interessante explorar o ponto de vista de alguém que perde a sua identidade sexual.
Uma boa história chega para o convencer a fazer um filme popular?
Achei que era um modelo excelente para alternar com o modelo com que trabalho normalmente, que é o do cinema de autor. Permitiu-me fazer coisas que nunca faria por iniciativa própria. Mas não é aqui que uma pessoa se está propriamente a vender. Na maior parte das vezes, aquela ideia ‘fazes um filme comercial vais ganhar mais’ não é verdade. Este filme é de iniciativa privada e, como tal, é um low budget. Há filmes de autor bastante mais dispendiosos. A questão aqui foi mais o desafio de fazer um filme popular. Claro que preferia ter o filme criado de raiz por mim, mas adoro desafios e se o filme for popular atingiu o seu objectivo.
Teve de haver cedências?
Uma percentagem muito grande do casting foi totalmente pacífica, mas houve negociação com a distribuidora e com a produtora. Não estive 100% de acordo, mas mesmo assim tive um naipe de actores muito confortável. O problema não está nas figuras principais, está em todos os secundários que numa comédia são o sustentáculo da galhofa.
Daí actores como Nuno Melo, Marina Albuquerque e Miguel Borges, com quem trabalha regularmente?
Sim, mas também foi importante ter um leque de actores que não conhecia. Nesse aspecto adorei fazer o casting porque houve actores imediatos, que percebi logo a química entre eles e a câmara. O Jorge Corrula, por exemplo, foi logo escolhido. Não o conhecia, nunca tinha visto nenhum trabalho dele, e soube logo que dava para aquela personagem [Carlos, o namorado da personagem interpretada por Diogo Morgado]. Se quiserem avaliar alguma coisa sobre a minha marca identitária neste filme é a encenação e a montagem. Senti-me uma espécie de realizador convidado numa série que ainda não existia, mas que já tinha tudo preparado. Fui lá mais encenar do que filmar. Por isso não há movimentos de câmara sofisticados, é quase tudo à mão e a câmara segue os actores para contar a história de forma linear.
Exactamente o oposto do que normalmente faz nos seus projectos.
As comédias, para funcionarem, têm de jogar com as convenções. A minha atracção natural é sempre não contar uma história pela ordem mais comum, mas neste caso o mais importante era, dentro de cada cena, tornar o sketch interessante cinematograficamente.
A Janela (Maryalva Mix), de 2001, é uma comédia, mas a narrativa é tudo menos convencional.
Sim, é verdade, mas acho que A Janela teria uma aceitação maior se tivesse sido feito hoje. Em 2001 não havia o YouTube, só apareceu em 2006. A partir desse momento as pessoas começaram a ver online os seus vídeos caseiros, no segundo seguinte viam o que um tipo no Irão publicou e depois o trailer de um filme, e deu-se uma viragem. De repente teve-se acesso a todo o tipo de imagens no mesmo instante e a dicotomia entre cultura popular alta-baixa desapareceu, porque as imagens passaram a concorrer todas umas com as outras. Em 2001 ainda não era assim. Hoje sinto que o meu trabalho está mais facilitado por causa da geração internet.
Há realizadores que consideram a comédia o género mais difícil de todos. É o seu caso?
Para mim o mais difícil é o melodrama. Mas em Portugal temos essa coisa de pôr o pessoal a chorar. Somos fadistas em várias áreas artísticas, não é só na música que há fado. Fiz O Barão [2011], que tem uma estética mais expressionista, mas de resto o território onde me sinto mais confortável é na farsa, na ironia. Interessa-me pôr as pessoas a pensar através de contradições, de excentricidades, e o lado excêntrico é muito mais explorado quando está ao serviço da comédia. As personagens do Virados do Avesso são só caricaturas e há algumas que vão mais longe. É nessa excentricidade de personagens que as pessoas podem identificar o estilo ‘pêriano’.
Para o ano completa 30 anos de carreira e já fez de tudo um pouco: curtas e longas-metragens, documentários, videoclips, filmes institucionais, tempos de antena e, agora, este filme mainstream. Mover-se em diferentes áreas sempre foi um objectivo?
O Virados do Avesso tem a ver com essa vontade de experimentar o máximo de coisas. Quando fiz o Oito Oito fiquei com vontade de fazer mais produções destas, mas passaram-se 13 anos, é demasiado tempo. Sinto que se houvesse a oportunidade de estar constantemente a fazer filmes, sendo uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hide consoante os meses do ano, ia fazer filmes melhores em ambas as áreas. Mas para isso tem de haver muito mais dinheiro e não se pode pôr no mesmo saco cultura e entretenimento. Actualmente vão todos ao mesmo saco, ao Instituto do Cinema e do Audiovisual, quando devia haver muitos mais sacos porque o cinema ultrapassa a cultura. O cinema também é entretenimento e enquanto entretenimento já é uma área completamente diferente, com outras regras. Só haver dinheiro para o cinema de autor é, no fundo, o mesmo que dizer que o teatro de revista não faz sentido.
Isso leva-nos para a eterna discussão do que é mais válido: cinema comercial ou autoral?
As duas áreas são válidas e um realizador pode trabalhar livremente em ambas. Só num país muito pequeno é que se dividem assim as coisas. Nos Estados Unidos ninguém vai criticar o Martin Scorsese por fazer um filme mais comercial e, logo a seguir, outro mais autoral. Até porque o cinema de autor é descoberto dentro do cinema industrial. Hitchcock mostrou ser possível criar produtos populares com uma marca autoral forte. Mas em Portugal, tirando filmes como o Virados do Avesso, estamos privados de trabalhar para o grande público. Não sei se O Barão é um filme de grande público porque em Lisboa só estreou numa sala e não teve nem um centésimo da promoção que este tem. Não é possível saber o que é realmente popular sem se ter tentado, mas para isso são precisas campanhas massivas, tornar isto um negócio com organismos que financiem a indústria e, por outro lado, com o Estado a apoiar o cinema que cria património para o futuro e assegura a preservação de uma identidade.
Em Portugal, os cineastas normalmente são bastante sectários. O Edgar está no meio?
Sempre me custou esta divisão, acho uma coisa muito irracional e enquanto existir muito dificilmente seremos respeitados. Mas eu sempre fui um desalinhado, a minha vida foi sempre feita por entre os pingos da chuva dos lóbis. Percebi logo na escola de cinema que não ia conseguir ser um alinhado, daqueles que acabavam o curso, iam ser assistentes de um realizador que lhes desse algum estatuto e, depois, conheciam os júris e beneficiavam dos lóbis instituídos. Nunca quis fazer esse caminho e é por isso que o meu reconhecimento é sempre marginal. Em 30 anos de trabalho só tive dois filmes subsidiados: A Janela e O Barão.
Os júris estão viciados?
Não faço ideia como se pode propor júris mais interessantes, porque desde que trabalho houve sempre lóbis e sinto que sou penalizado por conseguir resolver problemas, por conseguir fazer filmes com menos dinheiro. A ideia generalizada é ‘o Pêra desenrasca-se’. Agora também acho piada pensarem que enlouqueci por fazer um filme normal. Mas isso até me parece coerente com o estar desalinhado.
É esse desalinhamento que o faz usar materiais tão diferentes como película, vídeo, VHS, Super 8, 35 mm, 3D…
Sempre tive imensa curiosidade de ver como as coisas funcionam, um lado quase de cientista. Pegava no que tinha à mão. Nos últimos três anos tenho filmado tudo em 3D porque é outra maneira de ver a realidade, de representar a imaginação. Mas quando comecei, em 1985, com as câmaras de vídeo, ninguém me levava a sério. Na altura o vídeo era muito desconsiderado e estava sempre a ouvir ‘quando é que trazes uma câmara a sério?’, ‘enquanto não filmares em película isso não é cinema’. Ouvi isto imensas vezes no Rock Rendez-Vous, mas hoje sou o único que tem um filme sobre aquelas bandas, o Punk Is Not Dead. Dizia-se isto para continuar a haver uma casta de pessoas que decidiam o que é ou não cinema e para desqualificar todas as pessoas que tentavam fazer filmes pelos seus próprios meios.
Durante vários anos chamaram-lhe 'video artist' e não realizador?
Poucos realizadores alinhavam nessa linguagem. Mas depois o Paulo Rocha, um entusiasta de novas ideias, telefonava-me a perguntar como fazia as coisas, se lho podia explicar. Queria estar informado.
Sentia-se um outsider?
Sentia o preconceito. Ser desalinhado foi involuntário, mas não ia copiar os que mais gostava e não tinha meios para grandes aventuras, por isso criei a minha linguagem. É mais fácil fazer poemas do que romances e com os meios que tinha mais valia aproximar-me das artes plásticas e fazer uma coisa com sentido dentro desse universo, em vez de ir pelo cinema de entretenimento ou pelo de autor convencional. Até porque o meu sentido de humor nunca seria bem aceite dentro do cinema austero e as minhas experiências formais dificilmente seriam absorvidas por aqueles que não querem ter de pensar que estão a ver um filme. É curioso, mas isso só acontece no cinema. Na pintura ninguém questiona um risco e no teatro uma mudança de luz. No cinema tem de estar tudo explicadinho, se não perturba o espectador. Mas esse também é o dever do artista. Além de entreter, mostrar e perturbar.
Antes de entrar para a Escola de Cinema do Conservatório Nacional frequentou o curso de Psicologia. Terminou?
Fiz as duas coisas ao mesmo tempo porque achei que Psicologia podia ajudar-me a construir um olhar, mas depois não aguentei mais e abandonei o curso. A minha mãe sofreu muito com essa decisão e tenho pena que não tenha chegado a ver nem metade das coisas que consegui fazer. Morreu há 17 anos, nem A Janela viu. Mas o meu pai ainda é vivo, tem 94 anos já e, de vez em quando, aparece nos meus filmes.
Qual era o fascínio pelo cinema?
A paixão pelo cinema vem com o 25 de Abril. Tinha 13 anos e, de repente, começa aquela movimentação social toda, aquele estado de ebulição, de transe constante, quase como se estivéssemos numa rave 24 sob 24 horas, só que era uma rave em que as pessoas liam poesia, viam filmes. Lembro-me que no liceu íamos em grupos de 20/30 pessoas às sessões no Palácio Foz da Cinemateca. Às tantas não fazia mais nada, via quatro, cinco filmes por dia. Tornei-me um cinéfilo inveterado. O cinema tinha um lado de utopia que fazia eco no que tinha u vivido aos 13 anos. De repente estava a ler Karl Marx, Wilhelm Reich, Sartre… Comprava imensos livros e também confiscava das livrarias outros tantos [risos]. Hoje não passa pela cabeça de um miúdo de 13, 14, 15 anos tentar perceber por que os homens são explorados, por que existem revoluções.
Juntou-se a algum partido político?
Militante nunca fui. Na adolescência aproximei-me de vários movimentos, mas mal acabei a adolescência desvinculei-me de tudo. Percebi que tinha de fazer política com as minhas próprias armas, que eram os meus filmes. O cinema alimentava esse lado utópico e os livros de ficção científica, que lia imenso, também. No liceu até fazia concursos de quantos livros de ficção científica conseguia ler por dia.
Acabou a Escola de Cinema em 1984 e, no ano seguinte, assinou o videoclip de ‘Dunas’, dos GNR. Que ligação era essa à música?
O Rui Reininho foi meu colega no Conservatório e dávamo-nos muito bem. Também fui colega do Pedro Ayres Magalhães em Psicologia e ficámos os melhores amigos. Conheci-o quando ele ainda tinha os Corpo Diplomático, antes dos Heróis do Mar. Acompanhar a carreira toda dele influenciou-me porque via, de um lado, os meus colegas de cinema sentados no café à espera que lhes caísse o dinheiro no colo e, por outro, estes músicos todos a desenrascarem-se, a darem concertos, a fazerem discos. Esta atitude da malta do cinema irritava-me ao ponto de decidir seguir o exemplo das bandas com quem andava, apostar no ‘do it yourself’.
Essa filosofia do faça você mesmo tinha o seu epicentro no Frágil?
Nessa altura não saía do Bairro Alto. Ia para as aulas e terminava quase sempre a noite no Frágil. Éramos um grupo grande de pessoas que conspirava, que procurava um lado ideológico para defender as suas opções estéticas, mas as coisas davam todas resultado. Cada um na sua área acabou por fazer aquilo que queria.
Mas demorou a afirmar-se como realizador. A Janela só chegou 15 anos depois de ‘Dunas’…
Fiz vários videoclips, mas depois percebi que não me interessava trabalhar com uma equipa. Primeiro tive de descobrir a minha própria linguagem e só depois dirigir os outros. Tive de me libertar de tudo o que tinha aprendido e começar de novo.
O Conservatório foi tempo perdido?
A Academia foi útil para ter um sentido histórico das coisas, mas depois há formulas. Como têm de ensinar alguma coisa, ensina-se o consenso, mas o consenso não serve para toda a gente. No meu caso não serviu mesmo. Não sabia lidar com mais pessoas e, durante muito tempo, tive de fazer tudo sozinho. Quando fiz A Janela já sabia trabalhar em equipa, dirigir actores.
Já fez mais de 40 filmes e ideias para novos filmes não lhe faltam.
Não me posso dar ao luxo de estar parado. Se parar as coisas deixam de acontecer, quem não aparece é esquecido. Volta e meia tenho uma encomenda que me permite viver mais seis meses, mas nem sequer usufruo porque canalizo parte desse dinheiro para fazer outros filmes. Não faço grandes férias, o meu único luxo é comprar livros. Mas não me queixo. Actualmente sinto-me mais proactivo, mas também porque casei e tive um filho.
Tem 54 anos. Teve um filho só agora?
Há 21 meses. Fui pai tardíssimo, mas também casei-me tarde. Comecei a namorar há três anos e um mês e casei-me há três.
Qual a urgência? Sente o tempo a encurtar?
Foi tudo por amor, de outra forma não fazia sentido. Desde os 30 que pensava em ter filhos, mas só encontrei a pessoa certa agora.
alexandra.ho@sol.pt